17/08/2015 - 13ª - CPI do Assassinato de Jovens - 2015

Horário

Texto com revisão

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O SR. PRESIDENTE (Telmário Mota. Bloco Apoio Governo/PDT - RR) - Havendo número regimental, declaro aberta a 13ª Reunião da Comissão Parlamentar de Inquérito criada pelo Requerimento nº 115, de 2015, com a finalidade de, no prazo de 180 dias, investigar o assassinato de jovens no Brasil.
Conforme convocação, a presente reunião destina-se à realização de audiência pública com os seguintes convidados: Dr. Thiago André de Ávila, Promotor de Justiça do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, o qual convidamos para compor a mesa. (Palmas.)
Outro convidado ilustre é o Coronel da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, Ibis Silva Pereira, o qual convidamos para compor a mesa. É uma honra. (Palmas.)
A nossa pressa em tê-los aqui é tanta que esquecemos de pedir ao pessoal da mesa para conduzi-los, mas é uma honra tê-los conosco para debater esse assunto tão importante.
A título de informação, esta audiência pública será realizada em caráter interativo, com a possibilidade de participação popular. Por isso, pessoas que tenham interesse em participar com comentários ou perguntas podem fazê-lo por meio do portal e-Cidadania, no endereço www.senado.leg.br/ecidadania, através do Alô Senado, pelo número 0800-612211. Para organizar os nossos trabalhos, informo que, após a exposição dos convidados, a palavra será concedida aos Senadores e às Senadoras na ordem de inscrição. Terão preferência para o uso da palavra, na seguinte ordem, o Relator, o Presidente e os membros titulares e suplentes da Comissão.
Inicialmente, concedo a palavra ao Promotor de Justiça, Dr. Thiago André. Vamos sugerir 15 minutos para cada orador. Se for necessário, o assunto realmente exige, nós teremos uma tolerância para que a gente possa concluir as informações.
O SR. THIAGO ANDRÉ PIEROBOM DE ÁVILA - Boa noite a todos e a todas. Gostaria de agradecer, na pessoa do Senador Telmário Mota, o convite que me foi formulado, de estar participando desta CPI tão importante para a discussão de um problema social grave, sério, no Brasil, relativo à violência praticada contra a juventude, de forma muito especial contra a juventude negra.
Eu me permitiria, portanto, fazer uma breve apresentação inicial. Meu nome é Thiago Pierobom, sou Promotor de Justiça do Distrito Federal e Territórios; atualmente, sou Coordenador do nosso Núcleo de Direitos humanos. Tenho doutorado pela Universidade de Lisboa, com a temática do Controle Externo da Atividade Policial pelo Ministério Público, uma pesquisa que acabou também trilhando diversos caminhos também pelo problema da violência policial, da corrupção policial e dos desafios para termos uma polícia mais eficiente da que temos na atualidade.
Eu trago aqui alguns dados de pesquisas relacionadas à percepção da população relativamente à atuação policial. É óbvio que, quando vamos falar de atuação policial, é muito importante que tenhamos em mente, primeiro - e esse é o ponto de partida da nossa discussão -, não existe nenhuma democracia no mundo que exista sem uma polícia forte, reconhecida, bem equipada, valorizada. Esse é o ponto de partida. Ninguém aqui não gosta da polícia. Aliás, estamos aqui para discutir esse tema exatamente porque reconhecemos a importância das instituições policiais, mas problemas relacionados à atividade policial existem no Brasil, isso é fato notório, e existem em qualquer lugar do mundo. A França, a Alemanha, a Itália, os Estados Unidos têm problemas com as suas polícias, problemas de violência, problemas de corrupção, igualmente. É óbvio que aqui no Brasil o problema é mais grave, mais crônico, pela nossa própria história e por uma série de outros fatores, mas também existe nesses outros locais.
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Então, farei pontualmente algumas críticas à atuação do policial, mas fica, desde já, o meu reconhecimento e valorização desses profissionais que, muitas vezes, arriscam suas vidas em nome da segurança.
Em 1997, o Ibope realizou uma pesquisa nacional que documentou que 70% dos brasileiros disseram não confiar nem um pouco na polícia. E a maioria considerou que a qualidade dos trabalhos da polícia piorou ultimamente e 92% das pessoas entrevistadas naquela oportunidade disseram que temem que o policial faça mal a seus parentes.
Em 2012, o Ipea fez uma nova pesquisa e chegou a resultados, infelizmente, semelhantes: 53,5% dos brasileiros consideram que os policiais no Brasil não respeitam os direitos dos cidadãos; 63% das pessoas consideram que os policiais tratam as pessoas com preconceito e discriminação; 12% dos entrevistados afirmaram que já sofreram algum atendimento policial e tiveram problemas de truculência durante esse atendimento, como xingamentos ou agressões.
Uma outra pesquisa, de 2013, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública documentou que ao menos cinco pessoas morrem por dia em confrontos com a polícia e que 70% da população brasileira não confiam na polícia.
Quando nós confrontamos esses dados com os de outros países, como o de que na Inglaterra 82% das pessoas confiam na polícia, nós verificamos que temos um problema sério em relação à atuação policial. Ainda segundo informações preliminares da Pesquisa Nacional de Vitimização da Senasp, Ministério da Justiça, divulgada em 2013, 7,2% dos cariocas entrevistados afirmam terem sido vítimas de extorsão policial, 7,2% das pessoas entrevistadas naquele contexto específico afirmam que já foram vítimas de extorsão policial.
Infelizmente, a história brasileira é recheada de incidentes de graves violações de direitos humanos relacionadas à atuação policial. Poderíamos citar incidentes como Carandiru, em 1992; Candelária; Vigário Geral; Eldorado do Carajás; Urso Branco; Queimados. Recordo-me de que, em 2006, depois que o PCC fez aqueles atentados às delegacias de polícia de São Paulo, seguiu-se uma onda de assassinatos na sequência, como se fosse uma resposta da polícia em relação àquele atentado, que, obviamente, é uma grave violação aos direitos humanos dos policiais, mas que também, igualmente, não se justifica.
Há um relatório da Polícia Civil de São Paulo que indica que, no período de 2006 a 2010, cerca de 150 homicídios na capital paulista foram praticados com o envolvimento de policiais militares em grupos de extermínio. E ainda havia a suspeita, naquela oportunidade, de que cerca de cinquenta policiais estavam diretamente envolvidos no tráfico de drogas e no controle de jogos de azar.
Goiás todos sabemos que tem sérios problemas com grupos de extermínio, inclusive com a participação de policiais militares. Infelizmente, mais pessoas desapareceram em Goiás durante a democracia do que a quantidade de pessoas que desapareceram durante a época da ditadura militar.
Nós conhecemos casos de agentes públicos que foram diretamente alvo dessa violência. Recordo que, em 2011, a juíza Patrícia Acioli foi assassinada e um dos motivos desse assassinato foi seu envolvimento na investigação de um grupo de extermínio praticado por policiais. No mesmo ano, uma juíza de Pernambuco, Fabíola Moura, foi vítima de um atentado à vida praticado, presumidamente, por policiais militares relativos a um grupo de extermínio, que também é um problema sério lá no Estado de Pernambuco.
Não sem razão a Anistia Nacional estabelece que, hoje, uma das mais sérias violações aos direitos humanos no Brasil está relacionada com o padrão violento, truculento de relacionamento da polícia com a sociedade civil.
Bom, quando nós discutimos esses temas com os dirigentes de instituições policiais, normalmente a resposta que nós recebemos é: "Olha, essas pessoas são maçãs podres. Elas divergem dos valores da nossa instituição, então o que nós temos que fazer é atacar as maçãs podres. Temos que retirar essas maçãs do barril, que nós vamos resolver o nosso problema".
Bom, toda a literatura internacional relacionada ao controle da atividade policial é muito clara no sentido de indicar que problemas como violência policial ou corrupção policial não são problemas de maçãs podres. Elas são problemas de barris podres.
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Eu posso retirar essas maçãs e colocar outras no local. Se o barril estiver podre, qualquer maçã que for colocada nesse barril tem o risco de se contaminar com aquele defeito.
Em outras palavras, não é um problema de um policial individualmente, isoladamente, que desvia do padrão. O problema é que os mecanismos de controle nos quais esses policiais estão inseridos acabam, em certa medida, fomentando, dando espaço para que ocorram esses episódios de desvio na atuação policial.
Portanto, o que nós temos que pensar é qual é o modelo de segurança pública que está construído, no qual esses policiais estão inseridos, quais são os incentivos que são diariamente fornecidos a esses policiais, os contraincentivos para não cederem a tentação de agirem com truculência, com agressividade, no exercício da sua função.
Todos os estudos de criminologia da atuação policial indicam que, quando policiais são colocados em áreas de elevada criminalidade em que estão expostos a situações de desrespeito e de eventualmente atentado a sua integridade física, existe uma tendência natural de uma relação de alteridade, como se fosse: a comunidade está lá e a polícia está aqui, a polícia não faz parte da comunidade, a polícia é chamada para manter a ordem sobre essa comunidade.
Quando nós acrescentamos a esse relacionamento demandas de maior eficiência na atuação policial, demandas que vêm de múltiplas fontes, muitas vezes a própria comunidade exige mais segurança, os superiores na instituição, a mídia exige mais segurança, eu gero uma pressão para que esses policiais sejam mais eficientes.
O nosso problema é que hoje nós temos um ciclo interrompido na atuação policial. A Polícia Militar faz só policiamento preventivo, a Polícia Civil faz só a investigação de crimes. E, quando eu chego para os policiais militares e falo: olha vocês têm que proporcionar mais segurança neste local, o primeiro incentivo que eu dou para esses policiais militares é a única coisa que eles podem fazer, para intervir num crime que está acontecendo, que é fazer uma prisão em flagrante.
Hoje a maioria das nossas prisões em flagrante são ou por porte de armas, ou por porte drogas. Então, gera-se uma pressão nesses policiais para serem mais incisivos na apreensão de armas, na apreensão de drogas, porque são as hipóteses em que eles podem atuar numa prisão em flagrante ordinariamente. E isso acaba fomentando uma série de episódios que eventualmente podem evoluir para a truculência na atuação policial, como violações de residências sem mandados de busca e apreensão domiciliar, aumento na abordagem de pessoas que são estereotipadas como possíveis suspeitos.
Eu gostaria de abrir um parêntese. O nosso mapa da violência, na sua última edição, tem um recorte muito claro do viés racial com o problema da letalidade da atuação policial. Enquanto os homicídios de jovens negros têm crescido sistematicamente ao longo dos anos, os homicídios de jovens brancos têm, de forma inversa, diminuído ao longo dos anos. Quando nós analisamos os índices de letalidade da polícia em relação à sociedade, majoritariamente as vítimas da atuação letal policial normalmente são jovens, homens, negros, residentes nas periferias das grandes cidades.Então, existe claramente um viés racial.
Por que eu digo isso? É porque infelizmente, no Brasil, nós somos um país marcado por diversos fatores de discriminação. Somos um país machista, somos um país racista, somos um país elitista, somos um país adultocêntrico, sem falar de outras formas inúmeras de discriminação, como a homofobia, etc. Somos um país racista e, muitas vezes, não nos reconhecemos como um país racista. Infelizmente ainda existe o mito da chamada democracia racial, de que, no Brasil, sofremos a miscigenação. Então, todos nós temos alguma coisa de branco, negro, índio nas nossas veias e formamos uma sociedade em que todos convivem bem. Isso não é a verdade.
Quando nós olhamos para as estatísticas, claramente os negros estão subinseridos no mercado de trabalho, têm salários mais baixos, têm um índice maior de desemprego, a nossa população pobre é majoritariamente composta por pessoas negras, a nossa exclusão social tem cor no Brasil. Basta olhar para as pessoas em situação de rua e ver qual a cor majoritariamente dessas pessoas.
Portanto, num quadro racista de sociedade, nós não podemos ter a ilusão de que policiais não vão ter a mesma tendência de raciocinar assim como todas as outras pessoas da sociedade, porque policiais não vieram de Marte.
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Eles vieram da sociedade que está aí. Se a sociedade tem esses valores, naturalmente eles vão refletir esses valores. Certa vez me perguntaram se essa eventual atuação racista da polícia seria um fator consciência. A minha resposta é que normalmente não. Dificilmente um policial vai se reconhecer como racista. Normalmente esses elementos de atuação racista operam num nível inconsciente, porque, se o policial tem que abordar alguém como suspeito, e o que se considera como fundada suspeita é um índice marcado pela discricionariedade, inconscientemente o policial, ao abordar duas pessoas, uma branca e outra negra, vai tender a imaginar que muito provavelmente aquele indivíduo negro é alguém que é mais suspeito, que tem uma maior propensão a eventualmente estar envolvido em algum ilícito.
E da mesma forma, se durante essa abordagem essa pessoa negra esboçar alguma reação, muito provavelmente o policial vai, ainda que inconscientemente, tender a imaginar que aquilo é uma reação violenta à sua intervenção e, portanto, ter uma escalada no uso da força em relação àquela pessoa que pode eventualmente evoluir para um resultado letal.
Eu estou me esforçando ainda para construir um cenário de um policial bem-intencionado, que quer fazer realmente a sua função, sem considerar aqueles outros casos que, ainda que residuais, não podem ser desconsiderados, de policiais que claramente iniciam a sua intervenção já com um propósito de realizar um resultado letal. E talvez o maior exemplo que nós tenhamos pelo menos de um momento histórico disso me parece retratado naquele filme Tropa de Elite, em que os membros do Bope já subiam o morro cantando a sua música: "Homens de preto, qual é sua missão? Subir na favela e deixar corpo no chão." Essa era a música que eles cantavam em seu treinamento e para o qual eles se condicionavam.
(Soa a campainha.)
O SR. THIAGO ANDRÉ PIEROBOM DE ÁVILA - Caminhando já para minha conclusão, qual é o papel do Ministério Público dentro desse fenômeno muito mais amplo de controle da eventual violência praticada no âmbito policial e de forma mais ampla da mortalidade da juventude, especialmente da juventude negra? O Ministério Público tem duas atuações muito importantes: a Constituição Federal, no art. 129, inciso II, fala que uma das atribuições do Ministério Público é zelar para que todos os órgãos públicos e a sociedade civil respeitem os direitos previstos na Constituição. Então, o Ministério Público é concebido no paradigma constitucional como o grande fiscal do respeito ao sistema de direitos fundamentais. Isso se aplica na área da saúde, da educação, da assistência social e também na área da segurança pública. Aliás, não sem razão o art. 5º da Lei Complementar nº 75 estabelece que uma das áreas de atuação do Ministério Público deve ser na fiscalização das políticas de segurança pública. E esse é um ponto em que eu faço a minha mea-culpa como integrante do Ministério Público. O Ministério Público precisaria avançar mais dentro dessa temática de fiscalização dessas políticas de segurança pública.
A outra área de atuação do Ministério Público vem prevista igualmente no art. 129, inciso VII da Constituição Federal, que estabelece que uma das atribuições do Ministério Público é exercer o controle externo da atividade policial. Novamente esse é um ponto que precisa ser avançado na atuação do Ministério Público. Nós temos várias experiências no Ministério Público de avanço no controle da atividade policial. Normalmente, as experiências de avanço que existem elas ocorrem nos Estados que criaram estruturas especializadas dentro do Ministério Público para exercer a função de controle externo da atividade policial.
E aí eu me situo num local que eu diria talvez privilegiado, porque o Distrito Federal foi a unidade pioneira no Brasil de criação de uma unidade especializada, com membros em dedicação exclusiva apenas para pensar a temática de controle externo da atividade policial e para realizar a investigação de crimes praticados por policiais. É fato público e notório que houve uma resistência gigante por parte das instituições policiais ao exercício do controle externo. É óbvio que nenhuma instituição gosta de ser controlada; especialmente a Polícia tem uma tendência, não só a brasileira, mas em qualquer local do mundo, de se insular, de fechar, de dizer que eles são os especialistas da segurança pública e só eles vão discutir essa temática, quando todos sabemos que numa democracia a discussão das políticas públicas tem que começar no Parlamento e, enfim, passar por toda a sociedade civil.
Então, nós temos, aqui no Distrito Federal, desde o final da década de 1990, o Núcleo de Controle Externo e um Núcleo de Investigação de Crimes de Tortura Praticados por Policiais e foi isso que fomentou os grandes avanços que tivemos no Distrito Federal. Alguns outros Estados têm avançado na criação dessas unidades, mas o fato é que, de forma geral, no Brasil, infelizmente,a maioria dos Estados ainda não criou essas unidades especializadas.
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Hoje este é um tema central de preocupação no âmbito do Conselho Nacional do Ministério Público, e falo isso porque também sou membro colaborador da Comissão de Controle Externo do Conselho Nacional do Ministério Público. Hoje há uma diretriz para que todos os Ministérios Públicos criem órgãos especializados para exercer o controle externo da atividade policial e para investigar ou acompanhar a investigação de crimes praticados por policiais. Especificamente em relação à morte decorrente da intervenção policial, está hoje em tramitação no Conselho Nacional do Ministério Público uma resolução que procura criar a obrigação de que todos os Ministérios Públicos criem procedimentos para fiscalização e acompanhamento das hipóteses de morte decorrente da intervenção policial. Portanto, que haja a abolição dos chamados autos de resistência, numa hipótese de confronto com a polícia em que há morte de uma pessoa. O procedimento antigo era que se lavrava um auto de resistência, presumindo que, se a pessoa morreu no confronto com a polícia, foi porque ela resistiu à atuação policial. E aquilo era sumariamente arquivado numa delegacia de polícia, não havia nenhum tipo de investigação. Obviamente, esse procedimento atenta contra as diretrizes tanto da ONU quanto de nosso ordenamento jurídico, no sentido de se investigar efetivamente todo e qualquer episódio de confronto na atuação policial.
Há uma resolução do Conselho Nacional de Direitos Humanos, a Resolução nº 8, especificamente sobre este tema dos autos de resistência, da importância de haver uma efetiva investigação. E a ideia é que, com essa nova resolução do Conselho Nacional do Ministério Público que está em tramitação, possamos avançar também na regulamentação dessa obrigação por parte do Ministério Público em ser eficiente no acompanhamento desses episódios.
De forma geral, sintetizaria que a nossa contribuição e a contribuição do Legislativo para auxiliar o Ministério Público a exercer essa função é de consolidar esse papel do Ministério Público, para realizar investigações independentes dos crimes praticados por policiais. Toda vez que sentamos para conversar sobre esse tema, há uma forte resistência das instituições policiais, especialmente no âmbito da Polícia Civil, em relação às investigações conduzidas pelo Ministério Público. Mas essa é uma tendência internacional. Em qualquer local do mundo, se há controle externo da atividade policial, o órgão de controle externo precisa investigar os crimes daquele que é controlado. Há uma recomendação da ONU no relatório Philip Alston de que o Ministério Público seja ainda mais eficiente no sentido de investigar essas mortes praticadas por policiais.
Enfim, de forma geral, essas seriam as considerações, já pedindo desculpas por ultrapassar o prazo que me foi inicialmente concedido. Estou à disposição para as eventuais indagações e colocações que a plateia ou a Mesa vierem a fazer.
Muito obrigado.
O SR. PRESIDENTE (Telmário Mota. Bloco Apoio Governo/PDT - RR) - Obrigado.
Aqueles que chegaram agora e que estão ligando a TV Senado, estamos aqui na 13ª Reunião da Comissão Parlamentar de Inquérito criada pelo Requerimento nº 115, de 2015, com a finalidade de, no prazo de 180 dias, investigar o assassinato de jovens no Brasil.
Acabamos de ouvir um dos nossos convidados, o nosso promotor público da Justiça do Distrito Federal e Territórios, Dr. Thiago André. Esta audiência é interativa, com a possibilidade da participação popular. Por isso, as pessoas que têm interesse em participar, de fazer perguntas, comentários, podem fazer por meio do portal e-Cidadania, no endereço www.senado.leg.br/ecidadania e também pelo Alô Senado, através do número 0800-612211.
O costume do cachimbo bota a boca torta. Como eu trabalhei por 18 anos no Bradesco, falei aqui Alô Bradesco em vez de Alô Senado. Eu era auditor e quando havia a denúncia, eu dizia: liguem para o Alô Bradesco. Então, queria fazer a correção, porque agora não sou mais auditor, sou Senador, e aqui liguem para o Alô Senado, participem.
Vamos agora ter a oportunidade também, todo mundo aqui, os universitários ficaram nervosos, trocaram tudo. Está corrigido. Vamos ouvir outro convidado, nosso ilustre coronel da PM do Estado do Rio de Janeiro, que tem uma larga experiência e que vem hoje a esta Comissão com o propósito de colaborar, de ajudar neste nosso relatório, nosso trabalho, no sentido de que possamos reduzir substancialmente essa criminalidade, assassinato do jovem brasileiro.
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Ouvimos o promotor público e teremos aqui inúmeras perguntas ao promotor, como, com certeza também, surgirão já inúmeras ao Coronel Ibis Silva Pereira, que está com a palavra agora.
O SR. IBIS SILVA PEREIRA - Senador Telmário Mota, Dr. Thiago André, meus caríssimos e minhas caríssimas, inicialmente eu gostaria de dizer do privilégio que é para mim poder falar nesta Casa e sobre um tema tão doloroso como esse. A cada dez minutos, um brasileiro é assassinado neste País. A cada dez minutos! Imaginem o tempo que vai decorrer, até o final desta audiência, e calculem o número de brasileiros que terão morrido apenas enquanto nós estamos aqui reunidos.
Eu devo me confessar um pouco triste, porque eu imaginava que esta sala estivesse lotada, com pessoas sentadas no chão, acotovelando-se nos corredores, porque viver num país em que, a cada dez minutos, uma pessoa é trucidada, nisso que o professor e Senador que muito honrou esta Casa, Darcy Ribeiro, dizia, ele criou uma expressão fantástica para traduzir o Brasil. Ele dizia que o Brasil era "um espantoso e prodigioso moinho de espremer gente, de triturar pessoas". São quase 60 mil pessoas assassinadas. Homicídio doloso. Esse que acontece com a intenção manifesta de matar.
Eu diria, meus senhores, que pior do que viver num país que apresenta hoje esses dados é olhar para a história e, talvez, imaginar que essa barbárie é ancestral. É ancestral. Se nós tivermos oportunidade de ler, por exemplo, esse prodigioso relatório que praticamente inaugura a história das barbáries praticadas apenas durante a República, e eu me refiro a essa grande obra da literatura brasileira, que é Os Sertões, talvez a gente encontre ali uma pista para começar a pensar por que chegamos a esse ponto tão terrível, com indicadores tão pavorosos. E, ainda assim, e apesar disso, a gente não consegue mobilizar as pessoas. Parece que viver num país em que quase 60 mil pessoas são trucidadas anualmente não é capaz de nos indignar, de mobilizar tanto as pessoas assim, para cessação dessa tragédia.
Euclides viu uma coisa, no final do século XIX, que creio que ainda está presente hoje, quando ele falava na triste sina, no triste destino daqueles patrícios retardatários. Eu diria que essas pessoas que estão morrendo hoje são, da mesma maneira, patrícios retardatários. São pessoas que estão excluídas do nosso modelo de sociedade e que estão condenadas a ficar assim, a permanecer assim. O direito de punir no Brasil, talvez, historicamente, esteja sendo usado ou venha sendo usado como forma de administrar a exclusão. Parece-me que isso pode explicar um pouco do que o nosso promotor público falava, desse direito penal subterrâneo que existe aqui, para utilizar uma expressão do Prof. Zaffaroni. Entre nós, existe um direito penal subterrâneo, que se aplica para uma parte da nossa população e não se aplica para a outra.
Aqui, no Brasil, historicamente, a legislação tem sido aplicada, sim, desde que a colonização começou. Quando Martim Afonso de Sousa chegou aqui, em 1530, vigorava entre nós o quê? As ordenações manuelinas. No entanto, ele recebe uma carta de El Rei dizendo o seguinte: "O Direito Penal você pode aplicar e não precisa recorrer a mim - isso está escrito na carta de amplos poderes que ele recebeu -, desde que o réu não seja fidalgo. Se o réu for fidalgo, aí, não. Este você tem que trazer para mim."
De algum modo, essa infâmia continua.
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Como a polícia, no Brasil, pode matar tanto?! No meu Estado, ela tem tantos fiscais! No meu Estado, ela tem uma ouvidoria, tem duas corregedorias, uma interna e uma externa, e tem o Ministério Público como seu grande e poderoso fiscal. Como é que, com tantos fiscais, podemos ter esses indicadores alarmantes de autos de resistência? Talvez porque, e me socorro aqui de um pensador italiano do qual eu gosto muito, que é o Agamben, quando ele fala no homo sacer, aquela pessoa que está dentro e que está fora da ordem jurídica.
Acho que o criminoso no Brasil, e muito particularmente o traficante de drogas ou todas as pessoas que direta ou indiretamente fazem do tráfico de drogas um meio de conseguir sobreviver neste País, de algum modo, essas pessoas são ou representam a figura do homo sacer, da qual nos fala Agamben: estão dentro e estão fora da ordem jurídica. Não é para matar, porque, afinal, a Constituição diz que a dignidade da pessoa humana vale para todos, mas, se matar e uma emissora de televisão, um jornal imediatamente vincular aquela vítima ao tráfico, ao crime, esta morte estará justificada. E os primeiros a justificarem isso serão os membros do Ministério Público e da nossa Magistratura, porque os autos de resistência não podem ser arquivados, e auto de resistência não é licença para matar, não significa o fim da investigação.
Penso que esses homicídios querem dizer duas coisas para nós. A primeira, temos uma obra da escravidão em pleno funcionamento, neste início de século XXI, entre nós. Aquilo que o Nabuco dizia, em O Abolicionismo, quando ele nos alertava que é preciso, sim, libertar os escravos, cessar com essa infâmia, agora, mas é preciso também fazer cessar a obra da escravidão. A obra da escravidão ainda se faz sentir entre nós. Quando olhamos o perfil dessas vítimas, desses quase 60 mil, são jovens entre 15 e 29 anos, negros e pobres, moradores das muitas favelas do Oiapoque ao Chuí. São excluídos, são losers, como dizem os norte-americanos, os fracassados, aqueles que estão fora da nossa sociedade de mercadorias e que estão condenados a permanecer fora. Então, temos aqui uma obra da escravidão entre nós, que precisa ser deslindada.
Outro ponto que me parece que esses homicídios querem nos dizer é o seguinte: o nosso sistema de justiça criminal fracassou. Ele é um fracasso colossal! Em 1988, quando fizemos esta Constituição que aí está e dissemos que o princípio estruturante dela, um deles, é a dignidade da pessoa humana, não conseguimos levar esta lógica estruturante para o art. 144 da Constituição, que, aliás, é a primeira Constituição republicada a ter um capítulo próprio para o tema da segurança pública. Estranhamente, quando olhamos para esse capítulo, só enxergamos polícias. Primeiro engano, primeiro equívoco terrível: reduzir segurança pública à polícia. Segurança pública é muito mais do que polícia. E falo da minha, particularmente. Tenho 32 anos nela. Exerço polícia ostensiva no Rio de Janeiro há 32 anos, na cidade do Rio de Janeiro.
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E quando a gente olha para a atividade que o legislador de 88 nos deu está lá escrito: que cabe à Polícia Militar a preservação da ordem pública. E o que é isso? O que é isso? Que tipo de ordem? Que tipo de atividade? Nós precisamos conceituar melhor as atribuições policiais e o próprio sentido de polícia. O que é polícia em um Estado que se diz democrático e de direito? O que é polícia? O que é o Judiciário? Qual a função do Judiciário em um Estado democrático de direito que quer construir uma sociedade livre, justa e solidária? É preciso dizer isso. É preciso definir isso melhor, porque, de 88 para cá, este Estado que quer construir uma sociedade livre, encarcerou como nunca!
Do final dos anos 90 para agora, nossa população carcerária multiplicou-se por sete, senhores, por sete. No início dos anos 90, nós tínhamos pouco, alguma coisa em torno de 110 mil presos neste País. Hoje nós temos quase 800 mil, Senador. É assim que nós vamos querer...? É assim que nós estamos construindo uma sociedade livre? É deste jeito: encarcerando?
A principal função do Poder Judiciário no Estado democrático de direito é impedir, é frear o poder punitivo. Frear o poder punitivo. E aí eu concordo inteiramente com o nosso promotor de justiça aqui, porque nós não podemos nos iludir com isto: o fato de a Constituição dizer que somos um Estado democrático de direito não significa dizer que, no dia 6 de outubro, nós passamos automaticamente a ser um Estado democrático de direito. Não. E eu penso que essa calamidade, esse morticínio é a maior prova do quanto nós temos que caminhar para efetivamente sermos um Estado democrático de direito.
Então, eu penso que passou da hora - eu concordo inteiramente com o nosso Dr. Thiago -, passou da hora de discutirmos uma mudança significativa, substancial na política criminal deste País, notadamente aquela de drogas. Nós temos que parar de pensar no enfrentamento dessa questão de droga pelo viés bélico, pela perspectiva da guerra.
Nós, poucas vezes, paramos para pensar o que representa para um servidor público, para um policial participar de uma guerra; como a guerra altera a sua subjetividade; como a guerra altera os marcos morais dessa pessoa - porque altera. A guerra embrutece, a guerra embrutece. Ela transforma qualquer um de nós, qualquer um de nós aqui, qualquer pessoa que esteja me assistindo agora sentado em sua sala. Qualquer um que seja submetido a esse processo de embrutecimento tem a sua humanidade machucada, violentada. E o que sobra dessa alma humana está invariavelmente... Tem a sua humanidade, é isto que eu quero dizer, tem a sua humanidade comprometida.
Há uma pensadora francesa que dedicou sua vida a pensar a questão da violência: Simone Weil. Simone Weil escreveu uma obra fantástica, um ensaio, A Ilíada ou o Poema da Força. Ela olha para a Ilíada, essa grande obra que funda a literatura do ocidente, e diz: "Olha, o protagonista aqui não é Aquiles, não é Heitor, não é Agamenon, o protagonista aqui é a força, e o que a força faz com todos, com todas as pessoas a quem ela morde".
Nós olhamos aqui o que a força, o que a violência fez com 56 mil brasileiros, o que ela faz com 56 mil brasileiros. E o que ela faz com a alma daqueles que são os algozes? O que ela faz com a alma ou o que ela fez com a alma de todos nós que crescemos numa sociedade que ainda pensa em termos de senhor e de escravo?
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O que ela fez com as nossas almas? Porque cada violência que um escravo sofreu neste País, a alma do seu senhor, do seu algoz, também era violentada. Isso se estendeu para todos nós. Somos um povo corrompido por quatrocentos anos de escravidão, corrompidos moralmente por quatrocentos anos de escravidão. Por isso, vamos assistir a um filme como Tropa de Elite e batemos palma para cenas de tortura. Eu assisti aquele filme em quatro cinemas diferentes, de quatro bairros diferentes, e o comportamento da plateia foi o mesmo: rindo, Senador, batendo palmas. É por isso que, quando um traficante ou alguém ligado ao narcotráfico morre, é executado pela polícia, a sociedade é a primeira a apoiar. Isso não a atinge, isso não a indigna, isso não a incomoda. Herança da escravidão!
Então, a questão dessa obra maldita que está aí para ser equacionada não é só nas vítimas em potencial do crime, é também na alma dos algozes, na alma de todos nós que não nos indignamos com isso e não lotamos esse plenário para discutir essa questão, que é uma verdadeira vergonha para a nossa jovem democracia.
Obrigado. (Palmas.)
O SR. PRESIDENTE (Telmário Mota. Bloco Apoio Governo/PDT - RR) - Quero registrar aqui a presença da nossa Senadora Lídice da Mata, que é a Presidente desta Comissão, Senadora pelo Estado da Bahia, que honra este Congresso, que honra o povo baiano, o povo brasileiro e que vai já assumir a Presidência desses trabalhos.
Antes de passarmos a Presidência a quem de justiça e de direito, vamos encaminhando umas perguntas aos nossos convidados, interagindo pelo e-Cidadania, recebemos aqui algumas perguntas dirigidas ao Promotor Thiago André, da Isabela Cristina. Faço questão de fazer essa pergunta, por conta do que os dois expositores colocaram.
A Isabela é de São Paulo e diz o seguinte: "Duas dúvidas, promotor: assassinatos de jovens inocentes ou bandidos? Por assassinato, é bandido matando bandido, pois a polícia, quando mata bandido, está fazendo o trabalho dela. São essas as minhas questões." É uma pergunta que a Isabela fez. No final, ela faz uma colocação conclusiva.
Aline Vieira também pergunta ao promotor, dizendo o seguinte: "Boa noite, Senadores e convidados. Meu nome é Aline, 28 anos, estudante de pedagogia. Pertenço à classe trabalhadora e simples. Lembro o final da adolescência, como foi difícil arrumar emprego. Minha pergunta: até que ponto podemos aumentar o desemprego pelo aumento da violência?" Isso ao promotor.
As outras perguntas ao nosso coronel. A mesma Isabela Cristina, de São Paulo, pergunta: "O desemprego não é a causa da morte de jovens; é a impunidade. O Código Penal é uma droga, feito para o benefício dos bandidos. Na média, o pior dos assassinos não passa mais de 12 anos preso. Isso inclui ser solto em seis anos, pela provisória. Um código pífio é a causa." Ela dá contundência nisso.
E Aline também pergunta ao coronel: "Com os procedimentos da CPI, será que chegaremos a algum ponto em que possa ser possível pensar na desmilitarização da polícia no País?"
Bom, antes da resposta dos nossos convidados, convidamos a Senadora Lídice para ocupar a nossa Presidência.
Uma salva de palmas para ela. (Palmas.)
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A SRª PRESIDENTE (Lídice da Mata. Bloco Socialismo e Democracia/PSB - BA) - Antes de passar a palavra aos dois convidados, eu gostaria de agradecer enormemente ao Senador Telmário, que, como integrante desta Comissão, além de ser assíduo, tem dado grande contribuição ao nosso trabalho.
Hoje estamos com uma dificuldade a mais, porque o nosso Relator, o Senador Lindbergh, está em missão fora do País, está no Uruguai, participando do Parlasul, já que é um dos membros do Brasil no Parlasul. Além disso, eu também tinha um compromisso político na Bahia e não havia meio de modificá-lo. Assim sendo, o nosso Senador Telmário deu-nos essa grande contribuição de abrir a reunião, acompanhar e participar, com muito vigor, dos nossos trabalhos.
Quero dizer que ouvi parte da fala do Promotor Thiago, no trajeto do aeroporto para cá, e também parte do que disse o Coronel. Então, já que vocês, neste momento, responderão às perguntas, eu também queria fazer algumas perguntas, que, na verdade, servirão para levarmos adiante o nosso roteiro de organização do futuro relatório.
Há uma questão, Dr. Thiago, que é justificativa inclusive de sua presença, de sua vinda aqui que, no processo de discussão, em que vamos tomando conhecimento dos processos, principalmente em relação aos autos de resistência, há uma afirmação, denúncia de diversas entidades que aqui participaram do nosso debate, em relação ao Ministério Público. E o próprio trabalho do Dr. Zaccone dá mais sustentação ainda a essa tese de certa conivência - não sei se a palavra fica pesada, mas, em última análise é isso - com a tese justificatória das mortes a partir dos autos de resistência. Portanto, há uma paralisia do Ministério Público em relação ao prosseguimento das investigações. Todos os dados demonstram, além do contato que tenho com diversos promotores, alguns deles já reconhecem isso como uma realidade. O que, então, está fazendo o Ministério Público? Como tem tratado isso? Como o Conselho Nacional do Ministério Público tem abordado essa questão?
Creio ser isso questão fundamental, porque nós não podemos mudar a política sem ter uma adesão das instituições à essa tese.
Então, eu gostaria que o senhor tratasse dessa questão.
Há outra questão: nesse sentido, quais as medidas que o Ministério Público tem tomado para tornar mais transparente as suas ações de apuração desses crimes, ou mesmo as suas sugestões para mudança dessa conduta?
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No que diz respeito também - dirijo-me ao Coronel Ibis - ao enfrentamento à violência, além de políticas estruturais de longo alcance, como a inserção social dos jovens das áreas de risco ou a valorização dos profissionais de segurança pública, existem políticas de curto prazo que podem ser executadas sem grandes investimentos financeiros e sem mudanças legislativas, entre elas o Plano de Redução de Homicídios, a diminuição da letalidade policial, a adoção de um novo modelo de patrulhamento preventivo permanente e o fortalecimento das corregedorias policiais. Qual a visão da polícia nesses temas?
Também há outra questão. É que a ação da polícia se torna uma coisa tão contraditória e tão polêmica que inspira, por exemplo, a nossa internauta a caracterizar como dever da Polícia matar os bandidos, quando ninguém tem o dever de matar. O dever que, talvez, resulte em matar é o dever do Exército numa guerra, para se defender, atacando, impedindo de ser morto.
Portanto, nós que vivemos nas grandes cidades - isto ocorre nas pequenas também, mas, principalmente, nas grandes e médias cidades - vivemos uma dualidade: há a população que deseja a ação da polícia para coibir a bandidagem, digamos assim, mas essa mesma população que deseja a proteção da polícia tem medo da polícia, principalmente nas áreas de periferia, nas áreas populares. Há uma discussão mais profunda na polícia sobre isso?
O Governador do Estado da Bahia, agora, tem ido muito às áreas populares acompanhado da Polícia e sempre fala da necessidade de se reconhecer o policial não apenas como alguém que está vestindo uma farda, mas também como um pai ou como uma mãe de família igual a todos os outros moradores que estão ali. E diz também isso para os policiais. Assim também são aqueles que cometem delito e que, eventualmente, têm família, têm mães, têm pais, têm filhos. É uma tentativa de sensibilizar nos dois sentidos. Mas a verdade é que temos uma polícia que está entre as que mais matam no mundo, mas também é uma polícia que está entre as que mais morrem.
O que o senhor sugere como política para essa situação? A desmilitarização basta? Ou é preciso mais do que isso?
Passo a palavra aos senhores.
O SR. THIAGO ANDRÉ PIEROBOM DE ÁVILA - Eu queria novamente agradecer à Senadora Lídice da Mata o convite que me foi formulado e a honra de dividir a Mesa com a sua pessoa e com os demais integrantes deste auditório.
As perguntas são muito pertinentes. Primeiro, há o problema dos autos de resistência. Esse é um problema que não tem uma única razão e uma única solução. São muitas as razões que levam ao problema da violência policial, como falei mais cedo. Portanto, focamos agora nas soluções: o que fazer para resolver esse problema?
Sem dúvida, precisamos investir em protocolos e em rotinas de intervenção que garantam uma investigação isenta e imparcial desses episódios de mortes decorrentes da intervenção policial e que, portanto, assegurem o desenrolar da atuação do Ministério Público.
Existem inúmeros estudos que indicam que investigar um crime praticado por policial, por definição, é uma das hipóteses mais complexas da investigação criminal. É diferente de outro crime comum, tem suas peculiaridades que a tornam, por definição, difícil. Por quê? Primeiro, em crimes praticados por policiais, normalmente, não há outras testemunhas. Só os outros policiais envolvidos numa diligência é que vão testemunhar em relação àquele crime. Quanto aos outros policiais, ainda inconscientemente, há uma tendência de espírito de corpo de favorecer o colega. Há aquela racionalidade: quando estamos na rua, você me protege, e eu o protejo. E isso, eventualmente, é levado para outras esferas.
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Ainda que eu tenha uma vítima que é sobrevivente, quem é, normalmente, essa minha vítima da intervenção policial? Normalmente, não é nenhum santo. É alguém que morava numa periferia, que, eventualmente, tinha algum envolvimento com algum ilícito criminal, alguém que vai ter a sua palavra diminuída. Se, com muita sorte, eu tiver uma testemunha desse episódio praticado por policiais, normalmente, as testemunhas não querem colaborar com uma investigação criminal, porque, afinal de contas, ninguém quer entrar em rota de colisão com um policial. Ainda que o policial não pratique nenhuma ameaça em relação a essas testemunhas, o simples fato de a pessoa saber que está testemunhando contra um policial já é um fator de inibição dessa pessoa. E ainda que consigamos superar com uma testemunha que colabora, com uma eventual prova pericial que foi realizada - regra geral, os nossos institutos de perícia Brasil afora estão sucateados, e uma intervenção pericial rápida é o ponto mais importante para elucidar esse tipo de crime -, se não houve uma perícia, a chance de elucidar é mínima.
Mas, suponhamos que eu tive uma perícia e tive uma testemunha que confirmou e dois policiais dizendo que não foi assim, que, na verdade, "o sujeito reagiu e nós reagimos à violência que foi praticada contra policiais com um tiro", o fato é que esse processo realmente vai ser encaminhado para os órgãos do sistema de controle. Primeiro, para o Ministério Público, e, se ele formular a acusação, num segundo momento, para o magistrado. E o grande problema que nós temos em todas as instâncias de controle - e eu incluo o Ministério Público dentro dessas instâncias de controle - é que há uma tendência natural de minimização dos desvios praticados por policiais.
Na lógica de que "olha, na verdade, são profissionais que estão arriscando a sua vida em nome da segurança", "foi um pequeno deslize, e precisamos tolerar esses pequenos deslizes em nome da segurança", existe o risco de minimizar. E ainda que, eventualmente, o promotor de Justiça resolva, digamos, enfrentar a lógica natural do sistema, esse processo vai cair na mão de um magistrado, e a regra do sistema penal é in dubio pro reo. E esse é o tipo de caso que, quando alguém quer achar alguma dúvida e procura ardentemente encontrar a dúvida, a pessoa acaba encontrando. Nem que seja pelo em ovo, ele vai procurar e vai encontrar.
Então, incentivarmos as nossas forças exclusivamente na punição dos crimes praticados por policiais... Toda a literatura internacional tem entendido que punir policiais pelos desvios é um ponto importante, mas não deve ser o ponto principal da política de contenção de eventuais desvios praticados pela polícia. Nós precisamos trabalhar na perspectiva da prevenção da ocorrência desses desvios por policiais. E aí há um conjunto enorme de toda a reformulação de uma política de segurança pública que tem que ser colocada em jogo.
Como foi muito bem colocado pelo nosso Coronel Ibis Pereira, nós vivemos numa política de segurança pública que é marcada pela ideia securitária de guerra ao crime, e a guerra produz as suas vítimas. Produz as suas vítimas na população, que sofre policiamento, e, o que é mais sério, como a nossa Senadora muito bem destacou, produz as suas vítimas nos próprios policiais, porque é uma violação dos direitos humanos dos policiais colocar esses seres humanos para desempenhar esse papel, um papel que brutaliza, que tira a humanidade dessas pessoas. Aliás, não poucos são os episódios do que nós chamamos em psicologia de burnout ocupacional, o esgotamento desses profissionais. Casos sérios de depressão, de suicídio de policiais... Quando nós pensamos nessa perspectiva de direitos humanos, não é só dos "direitos humanos" - entre aspas - dos bandidos, mas dos direitos humanos dos policiais que nós estamos discutindo aqui. E, quando nós vemos perguntas como essas que foram colocadas de dizer que a polícia, quando mata bandido, está fazendo o seu trabalho, é um reflexo dessa cultura securitária que, infelizmente, está na sociedade.
Então, sendo objetivo, o que podemos fazer para avançar em relação a esse cenário que normaliza um conjunto enorme de mortes praticadas por policiais... Aliás, segundo dados da Anistia Internacional, muitas dessas mortes cometidas por tiros à queima roupa, por tiros na nuca das vítimas, que não tiveram nenhuma perícia e que foram sumariamente arquivados como auto de resistência... Isto é sério! Quer dizer, são indicativos de que foram mortes deliberadas praticadas por policiais.
Então, primeiro, temos que investir em protocolos de atuação da polícia nesses episódios. Temos que ter uma rotina. Ocorreu uma morte decorrente da intervenção policial ou uma lesão corporal, qual é o protocolo de atuação? Eu tenho que chamar a Corregedoria da Polícia, se for um policial civil; se for um policial militar, tenho que chamar a delegacia especializada em crimes contra a vida, a delegacia de homicídios; tenho que ter um protocolo de não mexer no corpo até a chegada da Perícia, senão ocorre aquilo que a gente vê todos os dias: as pessoas mexendo totalmente na cena do crime, apagando todos os possíveis vestígios!
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Há um caso - e tenho até o filme em minha casa -, de um episódio lá do Rio de Janeiro, em que as pessoas entram, a pessoa estava morta, aí tiram do local do crime, jogam em um outro local para, enfim, desfazer a cena. Saiu e foi amplamente noticiado nos veículos de imprensa.
Uma obrigação de postura ativa, por parte do Ministério Público, no acompanhamento dessas investigações de crimes praticados por policiais. Aliás, que não haja autos de resistência, que haja sempre a instauração de inquérito; que esse inquérito seja imediatamente comunicado ao Ministério Público. Porque hoje a regra é que, ainda que haja a instauração de inquérito, esse inquérito só vai para o Ministério Público depois de 30 dias da sua instauração. Ora, 30 dias depois da instauração o inquérito chegando às mãos do Ministério Público, se tinha chance de fazer alguma coisa, já se passou há muito tempo. O nosso sistema não é construído para dar condições para que o Ministério Público investigue e acompanhe de forma eficiente essa investigação. Portanto, uma obrigação em lei em que para essas hipóteses haja uma comunicação imediata e obrigatória ao Ministério Público, é um passo importante para dar condições para que o Ministério Público possa acompanhar essas hipóteses.
Como eu falei um pouco antes, hoje no Conselho Nacional do Ministério Público estamos trabalhando com a edição de uma resolução que disciplina esses aspectos e outros. Agora, obviamente há resistências. Um dos pontos da resolução é este: que no caso de morte decorrente de intervenção policial é obrigação da polícia, imediatamente, fazer a comunicação ao Ministério Público. Qualquer pessoa que pense no problema sabe: esse é o caminho, é um dos caminhos. Agora, o dia em que essa resolução for editada, fatalmente os órgãos - normalmente da Polícia Civil - vão falar: "Isso é uma invasão às prerrogativas da Polícia Civil, porque quem domina a investigação no Brasil é exclusivamente a Polícia Civil". E se nós continuarmos com essa mentalidade nós não vamos avançar. Precisamos ampliar a nossa rede de pessoas intervenientes nessa fase da investigação, para que os controles recíprocos fomentem a maior eficiência. Não temos avançado com o modelo que está colocado.
A questão da capacitação do Ministério Público, essa eu posso falar em primeira pessoa. O Conselho Nacional do Ministério Público tem fomentado a capacitação dos diversos Ministérios Públicos nos Estados, para serem mais eficientes no exercício do controle externo. Então há um curso-modelo que tem sido ministrado em todos os Estados. Eu sou um dos instrutores desse curso, junto com outros membros do MP. Já demos cursos em vários Estados, como Goiás, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Bahia, Sergipe e Ceará. No mês que vem estaremos lá no Rio de Janeiro tentando, enfim, incentivar os nossos colegas do Ministério Público a cumprirem a sua missão constitucional - como a Senadora muito bem colocou -, não serem coniventes com esse estado de coisas que aí está colocado.
Agora, talvez um dos paradigmas mais importantes para a efetiva evolução nesse tema seja uma discussão séria sobre a nossa política de Segurança Pública. Porque da forma como as instituições estão programadas para funcionar, não vai adiantar! É tudo paliativo. Como o Coronel muito bem colocou: vamos continuar trabalhando como um moinho de espremer seres humanos. Então, temos que pensar em uma política de Segurança Pública que enfoque, em primeira linha, a prevenção ao crime; que enfoque, em primeira linha, a ideia de policiamento comunitário; de levar a dignidade a essas comunidades de exclusão social; que dê condições para que quem faça a prevenção e atenda imediatamente a um crime possa, em um segundo momento, se responsabilizar por essa investigação. E, na minha visão pessoal, uma repartição de competências investigativas entre Polícia Militar e Polícia Civil seria um possível caminho. Hoje, nos modelos europeus de policiamento, em todos os países, não existe isso de uma única polícia investiga 100% dos crimes. Há vários departamentos de polícia, cada um especializado em uma temática e cada um com a atribuição de fazer a prevenção. E, se ocorrer o crime, fazer investigação daquele crime.
E fica a minha sugestão de um possível caminho por parte aqui do Senado Federal. Está em tramitação aqui no Senado Federal uma Proposta de Emenda à Constituição - a PEC 51 - que faz a reestruturação do modelo de Segurança Pública. Eu, sinceramente, não sei quem escreveu, mas eu li e achei fantástico! Porque esse é o caminho! Criar ciclos completos de investigação; investir no fortalecimento dos órgãos de controle externo - aqui cria um outro órgão de controle externo, a chamada Ouvidoria Externa, com poderes de investigação. Porque hoje as nossas ouvidorias são ouvidorias de fachada! Elas recebem a denúncia de que ocorreu uma violação de direitos praticada por um policial e o que ela faz? Ela protocola e encaminha para a Corregedoria e não pode fazer absolutamente nada, não pode investigar.
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Em qualquer lugar do mundo, órgão de controle interno tem que investigar. Se não há uma investigação autônoma e eficiente... E o que é mais importante, se queremos abrir a caixa preta do problema é importante que esse órgão do controle externo esteja fora da instituição policial. Hoje nós investimos só na investigação das corregedorias. Mas esse corregedor, quem é esse corregedor? Primeiro, é alguém que está lá ad nutum. Se for contra algum eventual interesse do diretor-geral, ele pode simplesmente ser exonerado da sua função.
Segundo, ele não tem um quadro estável de funcionários, tem que ficar toda hora pedindo alguém para ir para a Corregedoria e ninguém quer ir para a corregedoria, porque os estudos também indicam que quem vai para a corregedoria passa a ser hostilizado dentro da própria instituição. Por último, é alguém que faz parte da mesma instituição. Então, o problema dos vínculos psicológicos de lealdade existem em todas as instituições. Todas as instituições são corporativas. O MP é corporativo, o Judiciário é corporativo, a polícia é corporativa, o Parlamento é corporativo, os médicos são corporativos.
Então, se queremos avançar no controle externo, temos que criar uma instituição externa à polícia, com efetivos poderes de investigação, para colaborar com essa função de esclarecer e trazer transparência ao problema.
Então, enfim, na minha ótica, enquanto membro do Ministério Público, a PEC 51 de 2013, que está em tramitação no Senado Federal, seria um bom caminho para se avançar nessa rediscussão das políticas de segurança pública.
Obrigado.
A SRª PRESIDENTE (Lídice da Mata. Bloco Socialismo e Democracia/PSB - BA) - Muito obrigada pela sua colaboração, trazendo à baila assuntos interessantes, inclusive a sugestão de debate da PEC 51.
Passo a palavra agora ao Coronel Ibis, da Polícia Militar.
O SR. IBIS SILVA PEREIRA - Senadora, não vou me estender muito, porque acho que o Dr. Thiago foi muito preciso em tudo que ele falou.
Penso que precisamos, especificamente falando em termos de segurança, de polícia, é ter mais clareza com relação aos conceitos. Em uma possível reforma - espero que ela venha - do capítulo que trata de Segurança Pública na Carta de 1988, penso que o nosso maior desafio seja trazer clareza.
A dignidade da pessoa humana, os direitos humanos, têm que fazer parte do art. 144. A atividade de polícia não pode ser compreendida fora desse eixo fundamental.
O que é um polícia no Estado democrático de direito? O que ela faz? Ela cuida de gente, ela cuida de direitos, ela cuida dos direitos civis, ela promove a dignidade da pessoa humana e defende a dignidade da pessoa humana. Essa história de combater o crime, essa história de prender também é um papel da polícia, mas o principal papel da polícia tem que estar vinculado, atrelado, esse papel tem que ser pensado a partir da centralidade do princípio da dignidade humana.
Creio que aqui - voltando um pouco a nossa história, porque não dá para fugir dela, para entendermos um pouquinho o ponto que chegamos - é interessante também pensar um pouquinho o que tem sido esse tema da ordem. Acho que nenhum país é tão obcecado por essa ideia de ordem como é o Brasil, muito fruto do Positivismo, que aliás é uma doença do espírito que chamamos de filosofia. Aliás - um outro aliás nessa história - passou por cima do ideal de liberdade da Revolução Francesa e da igualdade, porque o Positivismo vem dizendo que as pessoas não são iguais. Curiosamente é uma coisa que precisamos... Colocamos um lema na bandeira do Brasil. Como isso nos afetou! Esta obsessão que temos pela ordem, de não conseguir entender que na democracia o conflito é normal. Na democracia o conflito é normal. O que precisamos é compor civilizadamente nossos conflitos. Não podemos compor os conflitos à bala, como estamos fazendo hoje, porque por trás dos homicídios, existe isto: uma civilização que está compondo seus conflitos na base da faca e da bala, que acredita na justiça pelas próprias mãos.
Há uma cultura de violência neste País que faz com que as pessoas acreditem que quando a polícia está matando, está fazendo essa faxina - porque já se usou e se usa esse termo fascista -, as pessoas acreditam que o papel da polícia é deixar a grama aparada, abaixar o tamanho do mato.
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O Direito Penal no Brasil tem sido aplicado para lidar com a exclusão. Pensem no que foi a Constituição de 1824, a Constituição liberal de 1824. Eu me reporto a ela porque a polícia foi criada lá. A minha polícia vem dos primeiros anos do século XIX. O que dizia a Constituição de 1824? Uma Constituição liberal. Qualquer povo da Terra que lesse a nossa Constituição diria: "Este é um Estado liberal." Está lá, as penas de açoite foram banidas pela Constituição de 1824. Meu Deus do céu, as penas de açoite estavam banidas no século XIX, num século em que a escravidão grassou até quase o final dele! Como é que se faz na prática esta mediação entre uma legislação progressista, moderna, que nós queremos mostrar para o mundo e a realidade dura, concreta de exclusão? A polícia tem feito isso. Fez isso no século XIX, fez isso ao longo do século XX e faz isso hoje.
As agências de criminalização secundária.
Congresso Nacional é uma agência de criminalização primária, é claro que não é só isso, mas tem esse papel de fazer as leis, mas a quantidade de leis que existem para serem cumpridas... As agências de criminalizações secundária: Polícia Militar, Polícia Civil, Ministério Público, juízes criminais, advogados criminais, enfim, esses são os agentes do Sistema Penitenciário, essas são as agências de criminalização secundária. Elas têm uma capacidade operacional limitada. Ora, como elas atuam? Como atuam as agências de criminalização de qualquer lugar do mundo, atuam seletivamente. Aí, onde essa população de desvalidos, de excluídos desta nossa sociedade... E a tendência é de que, se nós não fizermos nada mais de exclusão, porque estamos vivendo uma revolução que começa no final dos anos 80 e que anda a pleno vapor, que é essa revolução tecnológica e científica, estamos migrando para um outro tipo de sociedade, em que parece que quem estava excluído vai continuar excluído se não fizermos nada... Toda vez que fazemos alguma coisa no sentido de incorporar esses excluídos e diminuir a desigualdade, essa herança desta mentalidade escravocrata que ainda nós pula. Por que pula? Porque não gosta de igualdade, não gosta. Reclama de uma polícia violenta, mas que, no fundo, no fundo, bate palma, porque não quer igualdade, não quer e não existe democracia sem igualdade. Primeiro vem a igualdade, depois vem a liberdade. Uma cabeça, um voto, igualdade. É isto que nós dissemos que queríamos ser: uma sociedade livre, justa e solidária. Está faltando muito isto, solidariedade, eu me importar efetivamente com o destino dos perdedores, dos fracassados, daqueles que estão fora e desses que estão sendo atingidos por esse Direito Penal subterrâneo.
Então, penso que para minorarmos esses efeitos é preciso controlar mais as agências de criminalização secundária, essa seletividade da polícia. Nós precisamos enfrentar isso. Como? Com uma reforma do art. 144 que deixe claro qual é a função da polícia, que deixe claro o fato de que ordem pública e conflito convivem numa democracia. Nós temos de pensar numa ordem pública em processo de construção, que conflito não significa ameaça, que passeata não significa atentado à República, mas exercício do direito de cidadania e também uma cidadania que não se confunda com Código de Defesa do Consumidor porque, infelizmente, aqui neste País a cidadania passa muito pelo Código de Defesa do Consumidor. O cidadão é aquele que entra no shopping center e compra. Quem está excluído do shopping center tem uma cidadania de segundo, terceiro ou quinto grau. Esse é um desafio também.
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A nossa telespectadora menciona um tema que eu acho fantástico, que é o tema da desmilitarização. Eu acho que as polícias brasileiras sofrem de dois problemas: a Polícia Militar sofre do problema da militarização, e a minha querida Polícia Civil - digo isso com muito respeito, porque sou um admirador da Polícia Civil - sofre da "advogadização". São dois pontos, são duas tragédias. Uma que tenta se espelhar no Exército, e a outra que tem na presidência do inquérito alguém que é doutor em Direito, que tem uma cabeça... Meu Deus do céu! O garoto sai de uma faculdade de Direito e vai investigar? Ele estudou isso? Alguma faculdade de Direito ensina investigar? O delegado hoje não sabe se quer ser policial, ou se quer ser do mundo jurídico. Isso é um problema! Nós precisamos definir isso. Simples, porque ele preside um inquérito, que é quase um processo.
A gente aqui confunde duas coisas que não podem ser confundidas: polícia judiciária e polícia de investigação criminal. São conceitos diferentes. Quando a gente soma isso tudo, a gente tem uma dimensão do nosso horror. Inquéritos que não apuram nada. O que significam inquéritos que não apuram nada? Significa que mataram um bom negócio no Brasil.
Então, a gente tem um passado muito presente de uma tradição escravocrata, de um país que escravizou e massacrou índios - que, aliás, cresceu caçando índios; não foi isso? A bandeiras não foram isso? Essas expedições fantásticas que alargaram este Território às custas de caçar seres humanos.
E, recentemente, numa operação que foi muito celebrada no meu Estado, da morte de um traficante, a imprensa utilizou esta expressão: "caçada". Caçada ao traficante. Como se a polícia, em pleno século XXI, de um Estado que se diz democrático de direito, fosse caçadora.
E a gente precisa discutir isto: o papel da mídia. Porque a mídia é uma agência cuja atuação tem um efeito direto nas práticas policiais - direto. As agências políticas e as agências de comunicação têm um efeito direto sobre o comportamento da polícia, empurrando a polícia para dentro das favelas, para matar e para morrer, para caçar esse grande inimigo público. Na década de 60 e 70, o grande inimigo público era o subversivo, era o comunista.
Nós saímos, fizemos a transição, se é que fizemos - eu acho que, em termos de segurança pública, ainda não fizemos a transição democrática, mas vá lá que tenhamos feito... Nós trocamos, como diz a Profª Vera Malaguti, lá do meu Estado, uma grande historiadora e criminóloga. Ela mostra como nós trocamos um inimigo por outro.
As máquinas, as agências continuaram funcionando, compreendendo a sua atividade pelo viés do enfrentamento ao inimigo interno. Porque era isso que a doutrina de segurança nacional e seus manuais diziam. Você tinha o inimigo externo, que era, no mundo da Guerra Fria, o adversário do capitalismo, e você tinha o inimigo interno também, que eram aqueles que ficavam... Enfim, nós trocamos um inimigo pelo outro. O inimigo agora não é mais o comunista, é o traficante de drogas. Quando a gente sai, começa a sair da ditadura, a gente entra numa outra guerra, e estamos nela até hoje. Há mais de 30 anos, nós estamos numa guerra às drogas. Enquanto estivermos numa guerras às drogas, nós teremos polícias militarizadas, mesmo que essas polícias sejam civis, porque a militarização responde à lógica da guerra. É isso que a gente não consegue entender no Brasil.
Numa possível alteração do texto, eu quero sugerir uma coisa. Eu quero que a gente deixe claro o seguinte: a atividade policial é civil. Ponto! Essa atividade pode ser desempenhada por uma instituição, por uma organização, por uma agência que se estruture sob o modelo militar? Pode até, se nós acharmos que deve. Existem países que fazem isso. A França faz isso, a Espanha faz isso, a Itália faz isso, mas nenhum desses policiais compreende a sua atividade pelo viés da guerra.
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Para esses profissionais desses países está muito claro que ele é militar no desempenho de uma função civil, e isso ainda não está claro. Porque a guerra está nas nossas cabeças. A gente acha que não tem problema nenhum utilizar as Forças Armadas...
(Soa a campainha.)
O SR. IBIS SILVA PEREIRA - ... para invadir favela! Isto não nos incomoda, não atinge a nossa sensibilidade democrática! Nós assistimos à operação que aconteceu no Rio de Janeiro em 2010, uma invasão do Alemão domingo! Nós assistimos isso dentro das nossas casas! Duzentos milhões de brasileiros viram isso! E ninguém se ofendeu! Ninguém achou que tinha alguma coisa errada ali! Eu duvido que as Forças Armadas americanas invadissem uma favela americana! Eu duvido que as Forças Armadas da França invadissem! Que um francês não se sentisse incomodado por isso!
Então, Senador, eu acho que o desafio que a gente tem é colossal. E uma coisa que eu acho que cada um de nós tem que começar a aprimorar é a sua sensibilidade democrática. Porque nesse terreno eu acho que nós temos um grande desafio pela frente: temos que envolver também a educação. A educação! Direitos humanos: nós precisamos envolver, para que, pelo menos, esses brasileirinhos que aí estão não tenham que viver, daqui a 30, 40 anos, numa sociedade que bate palma para a tortura em filme, que acha que violência tem glamour e que assiste, impassível, imóvel e sem se preocupar, a esses indicadores absurdos de violência. Eu acho que, se a gente começar agora, pode ser que daqui a 30 anos o nosso nível de sensibilidade democrática aumente. E imediatamente! Imediatamente!
É preciso construir no Brasil uma doutrina para a força, para o uso e o abuso da força policial. Uma doutrina que envolva, sobretudo, o nosso grande e poderoso fiscal, que é o Ministério Público. E isto dá para fazer sem mexer na Constituição, envolvendo a Senasp e envolvendo as Secretarias de Segurança dos Estados. Isso a gente faz em alguns meses. Não precisa mexer na Constituição para fazer isso. Mas para isso é necessário que esses indicadores nos estremeçam, que esses indicadores nos envergonhem, que venhamos a ver nesses indicadores alguma coisa que precisa ser mudada.
A SRª PRESIDENTE (Lídice da Mata. Bloco Socialismo e Democracia/PSB - BA) - Não nos deixemos contaminar por essa indignação, não é?
Tratando da fala do Dr. Thiago, ainda que compreenda a postura e as dificuldades no Ministério Público, o que eu não compreendo é que há uma estatística que se coloca frontalmente contra esse raciocínio. Se nós estivéssemos falando de uma estatística baixa de letalidade cometida pelo Estado, tudo bem. Mesmo com toda... admitir-se-ia que houvesse toda essa dificuldade, de um lado a visão corporativa, do outro lado a predominância de uma visão que acha que a segurança, em tese, do cidadão é mais importante do que a vida de qualquer outro, mas, com o número que nós estamos vivendo no Brasil, de mortes, de assassinatos de jovens e de não jovens até, a situação fica escandalosa.
Este fim de semana, toda a imprensa nacional está diante de tentar identificar o que é que aconteceu em São Paulo. O que é que aconteceu em São Paulo? O que justifica a morte de uma dezena de pessoas, mais de uma dezena de pessoas? E me impressiona que não haja um pronunciamento das instituições da Justiça no Brasil. Você tem a opinião dada na imprensa, a opinião da Polícia Militar, do Secretário de Segurança, ora esses são...
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Mas o que pensa, ponto de vista de dar uma satisfação, uma análise para a sociedade brasileira que se pergunta o que está acontecendo, o que pensa a Ordem dos Advogados do Brasil, que tem uma tradição na luta democrática do nosso País, na defesa da Constituição, na defesa, portanto, das referências democráticas da Constituição brasileira? O que pensa o Ministério Público? O Conselho Nacional do Ministério Público, como se pronunciar diante disso? O Conselho Nacional de Justiça, como é que vê esse fato? Os tribunais?
Acho que não há uma indagação da sociedade brasileira, nem a busca de uma responsabilização da sociedade brasileira para essas instituições, é como se só existisse, no País, o Poder Executivo. Se matou, se morreu, quem tem que responder é o Governo do Estado. É, em parte, o Governo do Estado, mas não é apenas o Governo do Estado. É preciso fomentar um diálogo, uma inquietação maior que coloque em discussão mesmo o posicionamento dessas instituições.
Acho que a nossa CPI, assim como a da Câmara, podem até fazer conclusão de coisas semelhantes, podemos até chegar a concluir que há genocídio da juventude negra no Brasil, mas não avançaremos, se não discutirmos a política de segurança pública do Brasil, porque essa conclusão não nos levará a uma mudança radical da nossa posição. E, aí, penso que, realmente, é chegada a hora de colocar isso na pauta.
Na semana passada, estávamos discutindo com o Presidente do Senado Federal, na sua mesa, com todos os Líderes do Senado, uma pauta de reorganização do Governo brasileiro em que o Senado, como parte do Congresso Nacional, não é absoluta a pauta do Senado, é apenas uma contribuição inicial para a discussão da governabilidade no Brasil, e o que havia na mesa era uma pauta econômica. E alguns Senadores, se não me engano, o Senador Capi, levantou a necessidade de se colocar pontos naquela pauta que saísse da pauta da economia e que incorporasse as angústias da sociedade brasileira, e uma central é a angústia em relação à segurança pública. Aliás, a PEC citada pelo Dr. Thiago é a PEC do Senador Lindbergh, que é o nosso Relator nesta Comissão. O Senador Capi também tem uma PEC, visando a criação de um fundo nacional de segurança pública, a busca de dar garantia ao financiamento da segurança pública. E alguém se referiu à PEC 51, falando que era preciso colocar na pauta a discussão da desmilitarização da polícia militar. Imediatamente, três ou quatro líderes se levantaram e disseram: "Isso é o fim do País!" Como é o fim do País? Primeiro, o País não começou com a polícia, ele existia antes da polícia. Agora, é claro que ninguém está propondo, quando... É preciso desmistificar a desmilitarização da polícia militar. É necessário se fazer uma reflexão e uma explicação do que é isso, se não, as pessoas não vão ter condição de debater essa questão. Quando você parte de uma premissa falsa, dificilmente chegará a uma conclusão não falsa.
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Então, acho que essa questão realmente deve ser colocada no topo da nossa discussão. Não é possível rediscutir a governabilidade deste País apenas, no caso da segurança pública, pensando-se em aumentar o efetivo policial, em aumentar o armamento de cada cidade, porque nós não teremos como - não teremos como -, em um país de dimensão continental, como o nosso, com as carências de educação, de saúde que nós temos, apenas crescer o orçamento da segurança pública. Então, nós temos que crescer esse orçamento, se necessário, mas em uma mudança de política. É isso o que pensamos.
Mas nós precisamos deixar de pensar em círculos de especialistas para transformar esse debate em um debate da sociedade. Eu tive a oportunidade, Senador Telmário, de participar de um debate grande sobre esse tema na eleição passada porque fui candidata ao governo. Participei de um seminário do mestrado de Segurança Pública da Universidade Federal da Bahia e tive a oportunidade, também, de fazer um debate público com especialistas do Rio de Janeiro, da Bahia. E senti, justamente, que é necessário que esse debate se alargue para que a gente não confunda o debate de uma nova política de segurança pública - e por isso ela não pode estar restrita àqueles que executam a segurança pública -, porque ele tende a se tornar um debate perpassado pelos interesses corporativos. Aí vem a discussão, a disputa entre delegado e agente, entre policial militar e delegado civil, você não se sente que haja uma luz no fim do túnel.
Então, é preciso criar um projeto e abrir o debate já com um projeto novo, com base nas experiências internacionais também. Não apenas nos Estados Unidos ou na França, deve-se até pesquisar como é que ocorre na América Latina, onde é que está dando certo uma polícia de forma diferente, se ela se referencia em uma estratégia mais democrática, porque, afinal, o grande desafio da discussão da letalidade dos jovens está, justamente, na América Latina. Essa é uma questão da América Latina. E é uma questão da América Latina que se associa à pobreza, à falta de oportunidade, ao racismo de diversas naturezas. Ao racismo contra os negros, no caso do Brasil; no caso do Brasil, ao norte, contra os índios; no caso de outros países da América Latina também contra os índios; eventualmente, na América do Norte, contra os latinos e contra os negros.
Portanto, eu acho que nós realmente devemos colocar na pauta do Congresso Nacional uma discussão mais aberta e rejeitar a ideia de que só quem entende de segurança pública é delegado, é policial militar. A população entende porque ela vive. Uma pesquisa feita recentemente, acho que na semana passada foi divulgada, mostra qual é a sensação do povo brasileiro diante da polícia. E, infelizmente, porque nós sabemos da importância da polícia e da necessidade dela para a garantia da ordem, e, mais do que a garantia da ordem, a garantia do exercício do direito de todo cidadão brasileiro de ir e vir, do direito à saúde, do direito à educação. E não conseguimos realizar isso sem esse debate.
Bom, eu queria fazer mais duas perguntas e depois passar para Telmário. Não, passo logo para Telmário para que ele possa fazer essas perguntas e a gente possa... Eu peguei esse roteiro aqui um pouco para a gente depois passar também para o Relator. Mas agradeço ao Telmário e passo a palavra a ele.
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O SR. TELMÁRIO MOTA (Bloco Apoio Governo/PDT - RR) - Então, em sua fala, o Coronel disse o seguinte: nós temos um Direito Penal subterrâneo. Nós temos uma saúde subterrânea, em que nós temos uma saúde privada para os ricos e a saúde do SUS para os pobres. Nós temos uma educação subterrânea, em que nós temos uma escola de qualidade para os ricos e nós temos uma escola pública desestruturada para os mais humildes. Então, nós temos vários setores públicos que realmente são subterrâneos.
Mas, aproveitando aqui uma proposta que veio pelo Alô Senado, na verdade, é uma referência do Jair de Paula Cruz, do Rio de Janeiro, ele diz assim: "Os Parlamentares deveriam assistir a esta CPI para compreender a violência que assola o País, já que a população é refém dessa violência e ainda depende de medidas que só podem ser tomadas por políticos."
A Silvana Moreira, que é lá da Bahia, a terra da nossa Senadora Lídice da Mata, diz: "Quero parabenizar os Senadores presentes. Como disse o Coronel, essa audiência deveria estar lotada, pela importância do tema. O povo vai às ruas fazer mobilização por sabe lá o quê, mas não se mobiliza para debater e encontrar soluções para este horror do dia a dia, morte dos jovens." É o sentimento desses dois ouvintes.
O Kléber, do Distrito Federal, Kléber Roberto César Ferreira Felgueiras Martins, diz o seguinte - e, aí, vai para os dois -: "Qual a opinião dos palestrantes sobre a redução da maioridade penal?" Ele pergunta mais: "Qual a proporção entre os menores negros e brancos que são vítimas da violência?"
Essa pergunta se interliga com outra, do José Antônio da Silva, de São Paulo. Ele diz assim: "Uma forma de reduzir os altos índices de criminalidade na juventude seria reduzir a maioridade penal para 16 anos. Outra forma, acredito, seria possibilitar o ingresso dos adolescentes no mercado de trabalho a partir dos 14 anos".
Quer dizer, um faz uma pergunta sobre qual a opinião sobre a menoridade e o outro opina que a menoridade... Aí, na resposta, dá para matar as duas.
Mais adiante, também o José pergunta de novo: "Acredito que a Polícia Militar ganha muito pouco para enfrentar os riscos da profissão. A categoria deveria ser mais valorizada."
"Coronel Ibis, a Anistia Internacional acaba de lançar um relatório apontando uma série de abusos por parte de policiais, resultando em altíssimo índice de homicídios ou execuções cometidos por policiais em serviço. O senhor conhece as recomendações? Acha que são apropriadas?"
Dentro dessa pergunta, a Senadora Lídice fez um questionamento: qual o melhor modelo hoje no mundo? Qual modelo nós poderíamos tomar como um princípio de referência para que a gente realmente amenizasse?
Também numa fala do Coronel, ele cita que a mídia se comporta balizando o comportamento da Polícia. Claro que a mídia acaba fazendo reflexo daquilo que é a nossa sociedade, isso foi muito bem colocado pelos dois palestrantes.
Você ouve, às vezes, uma pessoa dizer assim: "Olha, a Polícia matou cinco numa ação." "Mas eles eram o quê?" "Ah, eram marginais." "Bem merecido!" Do ponto de vista de alguns ouvintes, que já se viram de costas, isso é aceito. Isso foi colocado muito amplamente aqui pelos dois nossos palestrantes e por outros também. Então, há esse conformismo, há esta interpretação que, ao marginal, tudo pode. E, com isso, nós temos dois sistemas de lei: aquele em que o marginal pode morrer, pode ser morto, e o outro, em que se torna aparentemente um crime.
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A partir desse princípio, parece-me que, toda vez que a Polícia tem um confronto, e aí é um momento de confronto ou não ou uma ação mais forte... Claro que o confronto te dá o próprio álibi do confronto, mas quando há só um lado vitimado, me parece que o primeiro ponto é dizer que você foi atacado, foi um contra-ataque, são policiais, são marginais.
Dentro desse contexto, você falou das drogas, então, formalizando a pergunta aos dois. Essa questão da droga no Brasil, a proibição na forma absoluta como ela é, também não colabora para essa ação? Eu queria deixar essa pergunta.
A SRª PRESIDENTE (Lídice da Mata. Bloco Socialismo e Democracia/PSB - BA) - Antes de passar a palavra, só lembrando àqueles que estão nos assistindo que podem participar da nossa audiência através do Portal do Senado e-Cidadania. Portanto, continuamos recebendo as perguntas dos internautas.
Quem quer começar?
(Intervenção fora do microfone.)
A SRª PRESIDENTE (Lídice da Mata. Bloco Socialismo e Democracia/PSB - BA) - Pode começar pelo Thiago, depois passo para o Cel. Ibis.
Antes, porém, quero registrar a presença do Major Marcos Schroeder, da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, que acompanha esta audiência pública.
O SR. THIAGO ANDRÉ PIEROBOM DE ÁVILA - Bom, os temas aqui que eu percebi que me foram colocados, o primeiro deles em relação à redução da maioridade penal.
Na minha visão, como membro do Ministério Público, esse é um problema paliativo, ele ataca na manifestação do problema, mas ele não ataca na raiz do problema. Quer dizer, se o problema da nossa segurança pública fosse mais encarceramento das pessoas, nós provavelmente já teríamos resolvido todos os problemas, porque somos quase campeões internacionais de encarceramento de pessoas. Aliás, as taxas de encarceramento por habitantes no Brasil só tem crescido ano após ano e, apesar desse crescimento exponencial do encarceramento, nós não temos visto a contraprestação no aumento da segurança das pessoas.
É óbvio que nós não podemos desconsiderar, especialmente o Parlamento não pode desconsiderar, o anseio das pessoas. Inúmeras pesquisas já foram feitas e indicam que a maioria da população gostaria que houvesse uma redução da maioridade penal, ou, pelo menos, uma responsabilização mais acentuada para aqueles que são maiores de 16 anos.
É um dilema: se por um lado nós já sabemos que não vai resolver o problema, por outro lado nós sabemos que não podemos ignorar essa demanda que existe da sociedade civil. Parece que o provável caminho de mais sabedoria por parte do Parlamento seria de ter uma reformulação do Estatuto da Criança e do Adolescente, no sentido de prever uma responsabilização mais acentuada, eventualmente aumentando o tempo da internação dos adolescentes, se eles têm mais de 16 anos, se praticaram determinados crimes que são mais sérios. Agora, volto a dizer, é mais para dar uma resposta a essa demanda da sociedade, porque isso não vai resolver o meu problema da segurança pública. Há outras causas muito mais complexas a complicar essa equação.
Em relação à demanda que foi apresentada de normalização da violência. As pessoas realmente têm uma tendência de normalizar. Quando a polícia matou, quem ela matou? Se foi bandido: "Ah, então tudo bem, o polícia fez o trabalho dela." Mas o problema é: quem é o bandido? Enquanto a gente acha que é normal a polícia matar porque ela matou bandido, tudo bem, agora quando o bandido é o meu irmão, é o meu vizinho, era uma pessoa que estava voltando para casa, um trabalhador de bem e que só porque mora numa periferia foi supostamente confundido com um bandido, então nós começamos com os nossos problemas sérios.
E ainda que seja, enfim, uma pessoa que tenha um envolvimento numa atividade criminosa, nós não podemos normalizar uma polícia que está acostumada a matar as pessoas, porque, em algum momento, essa violência da polícia vai tocar na classe média. É uma ilusão nós pensarmos que podemos segregar a violência da polícia para as zonas de barbárie, de exclusão social, e que, nos grandes centros, onde a classe média mora, ela vai conviver com uma polícia altamente civilizada. Essa polícia vai entrar em contato com a classe média.
Eu sei que o argumento, enfim, de certa forma é repugnante, porque parte da ideia de que as pessoas poderiam aceitar a violência da polícia para com os excluídos desde que não atinja a si, mas é importante ter em mente que não é possível segregar a violência da polícia. Ela é um câncer que corrói as bases da legitimidade de toda a atuação da polícia, porque é a base de tratamento igual a todas as pessoas.
Então, nós não podemos compactuar com essa normalização da violência. Agora, como foi muito bem colocado, isso parte por uma visão. Infelizmente, muitas pessoas da sociedade, talvez até a maioria, compactuem com essa visão de que direitos humanos são para os humanos direitos, e que, portanto, o direito do bandido é confessar o crime, se não quer confessar o crime, é justo que ele seja torturado para que confesse o crime ou para que, enfim, seja punido imediatamente pelos fatos.
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Então nós temos que, enfim, investir no futuro para que a educação para os direitos humanos seja algo visto como todos, educação inclusive para proteger as vítimas dos crimes. Proteção às vítimas dos crimes é uma das pautas de direitos humanos. Agora, uma polícia que atue de forma eficiente sem ser arbitrária. Esse é nosso grande desafio.
Em relação à última questão dos modelos de policiamento. Acho que o tema já foi muito bem abordado pelo nosso Coronel. Esse modelo do Brasil é absolutamente anacrônico. Ele é projetado para não funcionar. Então, a hora em que a gente olha para o sistema em funcionamento e vê que ele não está funcionando: ah, por que o sistema não está funcionando? Ele é projetado para não funcionar.
Então, novamente, nós temos uma polícia militar que raciocina numa lógica militar de guerra ao crime. Enquanto pensarmos numa guerra ao crime, vamos continuar tendo essas inúmeras vítimas que são diariamente atingidas pela truculência da atuação policial, e volto a dizer, inclusive os policiais que são vitimados, porque eles são colocados na linha de frente para serem vítimas da violência dessa guerra contra o crime.
Então, essa é uma política que tem que mudar e ela muda com uma mudança de mentalidade no enfrentamento ao crime, uma mudança da centralidade da política criminal, uma política criminal que não se centra exclusivamente na polícia. Em outras palavras, prevenção ao crime não é só problema de polícia, prevenção ao crime é um problema de um conjunto de ação coordenada de assistência social, de saúde, de educação, de esporte, de cultura, de presença do Estado em áreas socialmente excluídas, de emprego e renda. Enfim, é um conjunto de fatores.
Nós vivemos um momento histórico em que o Estado social está cada mais em retração e no lugar do Estado social nós colocamos o Estado penal. É um paradoxo porque, em vez de gastarmos dinheiro, recursos públicos com aquilo que tinha condições de prevenir o crime, as ações sociais, nós estamos deixando de gastar nessa área e gastando cada vez mais recursos preciosos com o nosso Estado penal. Cada vez mais se gasta mais com prisões e menos com escolas. Esse é um paradoxo que a nossa política criminal tem que enfrentar, enfrentar de frente.
Como outros países têm enfrentado esse problema? Os modelos de estruturação das polícias de outros países? Primeiro, de forma geral, tem-se superado essa visão de guerra em relação ao crime. Essa é uma tendência também, outros países também vivenciam esse mesmo dilema de uma pressão securitária, influenciada pela mídia ou pela comunidade, mas os avanços sérios tem-se dado no sentido de se estruturar uma polícia que é compromissada com os valores de direitos humanos, uma polícia comunitária, uma polícia que está focada em aproximar-se da comunidade, ter uma relação de confiança com essa comunidade, trabalhar na prevenção ao crime nessa comunidade.
Segundo, fortalecer unidades policiais que tenham possibilidade de trabalhar com o ciclo completo. Esse é um elemento importante. Então, a grande maioria dos países trabalha, por exemplo, com um polícia que seria algo muito parecido com a nossa Polícia Militar - a Gendarmerie, na França, a PSP, a Polícia de Segurança Pública em Portugal, enfim, Espanha e Itália têm modelos semelhantes - e que fazem o policiamento de rua e fazem a investigação dos crimes ordinários, os crimes ordinários praticados nesse contexto de policiamento de rua. Portanto uma polícia que se dedica à prevenção e à repressão.
E por outro lado, outra polícia especializada na investigação dos crimes mais complexos, os grandes casos de homicídio que exigem uma técnica diferenciada de investigação, crimes econômicos, financeiros, organizações criminosas. Normalmente a polícia judiciária vai se dedicar a esse outro tipo de investigação criminal.
E outro modelo que é comum em todos os países é a ideia de que quem conduz uma investigação criminal tem que ser um especialista em investigação criminal. Portanto, o que o meu policial precisa ser? No fundo, ele precisa ser um sociólogo do crime, ele tem que entender o assunto dele. Crimes informáticos, então, tem que chamar o pessoal da área de informática para se saber o que precisa; crimes econômicos e financeiros, tem que trazer o pessoal da área de economia, da área de documentação para me falar o que eu preciso para investigar esse crime; são crimes de rua, eu preciso de pessoas que sejam especialistas nas relações humanas na rua para investigar esse crime.
Segundo momento, depois que a polícia monta o quadro inicial de um crime, eu preciso de quem vai dar a consequência dessa investigação, o que falta para completar essa investigação, ou seja, quem vai se responsabilizar em juízo pelo sucesso dessa investigação. E em todos os países do mundo civilizado que têm avançado no tema tem-se estruturado a ideia de que a direção da investigação criminal é uma responsabilidade do Ministério Público.
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É assim que funciona em Portugal, é assim que funciona na França, é assim que funciona na Itália. Aliás, até a Inglaterra que sempre foi citada como um exemplo de que a polícia tinha dominialidade da investigação criminal, em 2002, fez um novo ato, o Prosecution Act, de 2002, mudando a regra e colocando o Ministério Público na fase da investigação criminal. O Ministério Público tem que se corresponsabilizar.
Às vezes a gente levante cifras, "não sei quantos por cento das investigações não são investigação de sucesso. Uma grande parte desses problemas é culpa da polícia, que é ineficiente na investigação, mas eu volto a fazer a mea-culpa. Uma parte desse problema também é do Ministério Público, porque muitas vezes o Ministério Público não acompanha de perto essas investigações, não se responsabiliza pelo sucesso das investigações, fica aguardando relatório final, burocrático do delegado de polícia, que trabalha com uma lógica exauriente de investigação, uma lógica procedimental, como se fosse a investigação fosse um processo autônomo, quando a investigação é só para recolher os indícios, e vou produzir essas provas em juízo.
E o que nós vemos na prática hoje é uma investigação criminal que é burocrática. Hoje os inquéritos policiais são uma coletânea de carimbos de chegada, de remessa e de prazo e de conclusão. Uma lógica burocrática, judicializante do inquérito. E inquérito não deve ser isso. Inquérito deve ser um procedimento rápido, célere, de colheita das informações, para aquele que tem condições de promover a responsabilização em juízo possa fazê-lo ou eventualmente complementar essas informações.
Enquanto não tivermos essa figura que ainda não conseguiu entender o seu papel em uma democracia de ver-se como alguém que tem que saber investigar e não ser um jurista, mas alguém que é bom em investigar e alguém que é bom em cumprir as requisições daquele que num segundo momento vai ser responsabilizar pelo sucesso da investigação em juízo, vamos continuar com esse sistema anacrônico, em que cada um fica competindo pelo seu espaço, pelo seu nicho de poder dentro da investigação policial. E Polícia Militar briga com Polícia Civil em relação ao flagrante, Polícia Civil briga com o Ministério Público em relação à direção da investigação criminal. E depois há outros conflitos em nosso sistema.
Mas não temos que trabalhar com conflitos, temos que trabalhar com união de esforços, porque estamos todos do mesmo lado, Polícia Militar, Polícia Civil, Ministério Público, Poder Judiciário, sistema penitenciário. Todos trabalhamos pela Segurança Pública. E, portanto, uma reforma que mexa nas bases desse sistema é essencial. Agora, é uma reforma que todos ganham e perdem. Todos sabem o que vão perder, mas não estão bem certos do que vão ganhar. Então, todo mundo fica na defensiva e ninguém abre a sua parte, o seu nicho de poder para permitir que os avanços, que são essenciais para as futuras gerações do povo brasileiro, efetivamente aconteçam. Isso é "contrademocrático". E acho que precisamos enfrentar esse tema da reforma das nossas polícias.
O SR. TELMÁRIO MOTA (Bloco Apoio Governo/PDT - RR) - Antes de o Cel. Ibis fazer a manifestação dele, eu queria só fazer um complemento à fala do Dr. Thiago.
Por exemplo, os grupos de extermínio, a priori, ao surgirem, parecem uma grande causa, a priori. Em seguida, quando aquele lance de se achar que a polícia não vai avançar. Aí começam os grupos de extermínio a agir - aí o Coronel citou que o Rio teve várias e lamentáveis experiências dessa ordem -, começam a matar por coisas muito mais banais do que seria, entre aspas, "uma grande causa". Exemplo de que essas irregularidades avançam e não têm mais fronteira.
O Senado aqui, nesses dias, pela força, pela demanda popular, pela pressão popular, deu uma mexida na internação dos jovens que praticam crime hediondo, de três anos, se não me falha a memória, a oito ou dez anos, que é um projeto do Senador Serra.
E voltando, já que o Coronel vai se manifestar, eu recebi a manifestação de um ouvinte que reclama desse ponto, de que a polícia brasileira é muito mais preventiva e repreensiva do que investigativa. Ele diz o seguinte: quando você faz um trabalho preventivo, digamos em uma determinada área, que está bem protegida pelo sistema policial, os crimes mudam de localidade, vão para outra localidade. Os agentes do crime mudam para outra localidade. Então, fica sempre uma solução interminável. Eles mudam de posição, mudam de localidade, e assim vão ficando. Ele entende, esse ouvinte, que o sistema investigativo poderia ser ampliado inclusive para a Polícia Militar, que é quem tem o primeiro contato e tudo o mais.
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O SR. IBIS SILVA PEREIRA - São questões muito profundas. Pensar a prevenção é muito complexo. A gente não pode, como bem disse o Dr. Thiago, colocar a questão da prevenção única e exclusivamente como um papel de atuação da polícia - no caso, no modelo que nós temos no Brasil hoje, da polícia preventiva. Mas a prevenção do crime em si está intimamente ligada à própria lógica do pacto político. O Estado tem que se organizar de tal modo que as pessoas possam aderir ao pacto político e queiram permanecer nele. É aquilo que alguns autores chamam de virtude cívica.
Um Estado que exclui, que convive com a exclusão... Nós não estamos falando de desemprego. Há uma ouvinte que eu acabei deixando sem resposta, mas eu quero aproveitar para dar minha resposta agora. Acho que é Isabela o nome dela. Ela falava da relação entre desemprego e criminalidade. Há uma coisa que é terrível nos romances do Dostoiévski, e eu quero trazer o grande Dostoiévski para me amparar aqui, que é a pobreza...
É Míriam?
A SRª PRESIDENTE (Lídice da Mata. Bloco Socialismo e Democracia/PSB - BA) - Aline.
O SR. IBIS SILVA PEREIRA - Aline. Desculpe, Aline.
É a pobreza opressiva, a pobreza opressiva, aquela figura do Raskolnikóv, que leva o Raskólnikov ao duplo homicídio. É isso. É você nascer, passar a sua vida inteira em um gueto, com toda a opressão do gueto, e saber que a sua vida não vai a lugar nenhum. Que tipo de subjetividade essa lógica de violência simbólica... Porque isso é violência, uma violência que a gente não enxerga. A gente enxerga essa que explode nas cifras, nos indicadores, nos boletins de ocorrência da polícia, mas essa violência, essa forma de violentar uma criatura humana, a gente não enxerga, como não enxerga também o tipo de desumanização que está sendo engendrada ali, o medo de naufragar, o medo de as nossa vidas não desembocarem em lugar algum. Esse medo é terrível! Nós aqui, seguramente, nunca experimentamos esse medo. Os nossos ouvintes, que estão me assistindo agora, possivelmente só têm conhecimento teórico desse medo. Mas muita gente que está dormindo embaixo das muitas marquises deste País, muitas pessoas que estão morando em favelas, nesses guetos que proliferam neste País, elas sabem o que esse medo representa.
Há um criminalista do início do século chamado Mira y López, que hoje a gente quase não lê mais, mas o senhor deve conhecer, Dr. Thiago, que escreveu um livro fantástico chamado Os Quatro Gigantes da Alma. Ele mostra, nesse livro, como esse medo terrível, esse gigante da alma, que o Hobbes coloca no livro dele, o Leviatã, se metamorfoseia em ódio. Esse medo se transforma em ódio, ódio contra nossa sociedade, ódio contra cada um de nós. A exclusão tem um preço. Reduzir uma criatura humana ao estatuto da invisibilidade - porque é isso que a miséria opressiva representa, invisibilidade - tem um preço, e o preço é esse. O preço é violência. A gente não está falando de mais desemprego, não. Não tem mais essa história de exército de reserva, não, de que o Marx falava. Quem está fora hoje está condenado a permanecer fora! E isso - insisto, porque isso tem que ficar gravado na nossa cabeça - tem um preço, e nós pagamos um preço. Submeter seres humanos a viver com medo tem um preço.
A guerra faz isso com os policiais. A guerra faz os nossos policiais viverem com medo. No Rio de Janeiro, já morreram 14 em áreas pacificadas. Catorze em seis meses! Em seis meses! Procurem em outras polícias de estados democráticos para ver se em alguma polícia de países civilizados esses indicadores são comparáveis a esse.
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Que tipo de subjetividade uma instituição que convive com esses números engendra? O que o medo faz com esses jovens em média com 26 anos de idade? Esse medo também engendra ódio, condutas muitas vezes absolutamente divorciadas da legalidade e até mesmo da racionalidade, porque o medo faz isso. O medo faz isso.
É por isso que o Hobbes, no Leviatã, disse assim: não dá para viver com medo, não! Isso é o Estado hobbesiano, que é muito parecido com isso que está aí fora. Isso que está aí fora, 60 mil mortos por ano, é Estado hobbesiano; não é Estado democrático de direito. É Estado policial, sim, e é Estado hobbesiano; guerra de todos contra todos. É nisso que nós estamos nos convertendo, se é que já não somos isso.
O resultado disso é ódio. Ódio! É chacina, é justiçamento, seja ele praticado por policiais para vingar a morte de um companheiro, porque ele acredita que a Justiça não vai conseguir colocar os responsáveis pela morte dos seus atrás das grades - e ele tem razão, porque no Brasil não vai. Muito provavelmente não vai. Menos de... De acordo com o relatório do Fórum Brasileiro de Segurança, menos de 8%, 5% - cinco por cento! - dos inquéritos policiais chegam a algum lugar. O que a pessoa faz, no Estado hobbesiano, quando ela não acredita mais no pacto político? Ela faz justiça pelas próprias mãos, quer seja um policial, quer seja um morador da classe média, que, para se livrar da população de rua, daqueles nos quais ele identifica uma ameaça à sua bicicleta, ao seu relógio, ele amarra num poste, ele lincha. Isso é barbárie. Isso é expressão do Estado hobbesiano em que nós estamos nos convertendo.
E, quanto mais a centralidade dos direitos humanos for violada, for inobservada, mais esse horror vai aumentar, porque a solução para isso é respeitar os direitos humanos. A solução para isso é transformar, efetivamente, o princípio da dignidade humana em um princípio estruturante das políticas públicas deste País. Este é o ponto: respeitar a dignidade da pessoa humana em todas as políticas públicas que venhamos a engendrar.
E aí eu volto ao ECA. Eu sou terminantemente, terminantemente contrário a essa discussão da redução da maioridade penal. Eu não vou dizer aqui que o ECA é uma legislação perfeita, mas o problema do ECA é não ser cumprido. Esse é o problema do ECA! A gente cumpre do ECA o que nos interessa cumprir. Ou não? Leiam o ECA. Leiam o ECA! Se essa legislação fosse efetivamente cumprida, esse horror que é a delinquência juvenil no Brasil seguramente não estaria nesses patamares, que, aliás, não são nem tão elevados assim. No Rio de Janeiro, nós temos um estudo lá muito interessante, que mostra que, para cada uma criança, um adolescente - perdão - autor de ato infracional, nós temos oito - oito! - em situação de abandono, em situação de risco, perambulando nas ruas, dormindo embaixo de marquises, pedindo esmolas nos sinais. Isso tanto tempo depois de termos assinado uma Constituição que diz que dignidade da pessoa humana é um princípio fundamental e um Estatuto da Criança e do Adolescente que diz que ele é a nossa grande joia!
Ou seja, nós estamos falando aqui de invisibilidade, e isso é gravíssimo. Porque não adianta fazer leis belíssimas - e nós sabemos fazê-las -, leis que são capazes de tocar, efetivamente, na raiz dos problemas. Basta ler o ECA. Os autores do ECA entenderam o drama brasileiro; foram capazes de criar uma legislação que sinaliza no sentido de uma solução efetiva.
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O nosso problema é que nós não enxergamos os fracassados. Nós não enxergamos os miseráveis. Não enxergamos, a não ser quando eles figuram nas estatísticas e por pouquíssimo tempo. A nossa indignação dura muito pouco tempo. Nossas prisões são fracassos! A pena privativa de liberdade fracassou. Fracassou. Esse é um retumbante fracasso! Está aí. Basta ler Foucault e ler Loïc Wacquant. É um fracasso! E qual é a solução que estamos dando para o nosso problema? Mais encarceramento!
Agora, vamos reduzir, ou queremos, ou pretendemos reduzir a maioridade penal, para jogar adolescentes na cadeia. Não vamos resolver nada.
Uma Constituição, um Estado democrático de direito que diz que dignidade da pessoa humana é estruturante, é central, que faz um Estatuto da Criança e do Adolescente repetindo isso três anos depois e que, agora, acena com a possibilidade de redução da maioridade penal, ele está sendo, no mínimo, incoerente. No mínimo, incoerente, e o Estado não pode ser incoerente. Afinal de contas, existe uma coisa que é a racionalidade republicana. Não podemos ter uma Constituição que diga uma coisa, um estatuto que diga outra e que agora a solução seja reduzir a maioridade penal.
Ouvi outro dia uma autoridade dizer uma coisa, que fiquei assustado. Pasmem os senhores! Ela disse que, na opinião dela, não tinha que ter idade! Não tinha que ter idade! Os senhores imaginem o tamanho dessa bobagem! Daqui a pouco, a gente vai ter que colocar policiamento em creche, porque, se um garoto subtrair a chupeta do seu colega, ele vai estar praticando um roubo, talvez, ou furto. Não sei, doutor. Enfim, nós chegaremos lá se continuarmos com essa insanidade. Chegaremos lá. Hoje, baixaremos para 16. Amanhã, voltaremos a nove, como era; como era no tempo das Ordenações Filipinas: nove anos.
A solução não pode ser encarceramento. Estado democrático de direito é cioso, tem muita cautela, tem muito cuidado com o encarceramento. Muito. Ou deveria ter. Se não tem, há alguma coisa errada com o nosso conceito de Estado democrático de direito. Estado policial, este, sim, gosta de encarcerar. O Estado democrático de direito procura solucionar os seus problemas por outro tipo de viés.
A Anistia Internacional é uma instituição pela qual tenho um tremendo apreço. Acompanhei a divulgação do relatório da Anistia Internacional. Hoje, sou chefe de gabinete de um comando que assumiu a centralidade dos direitos humanos como seu viés fundamental. Assumiu o compromisso de reduzir taxas de homicídio e de violência policial. Há um mês, começamos um programa que não tenho dúvida alguma de que frutificará na Baixada Fluminense, região do meu Estado que tem, historicamente, altos índices de violência; um Estado onde a mídia - a mídia, a mídia - busca o cadáver para exibir nos jornais, que vendem. Que vendem! Violência vende, por incrível que pareça. Violência vende.
Então, o nosso compromisso hoje é trazer para o centro da compreensão do papel da polícia a questão dos direitos humanos. Polícia eficiente é aquela que promove, que cuida, que respeita os direitos humanos. Esse é o nosso compromisso hoje.
Num Estado que, ao longo dos 30 últimos anos, por conta dessa paranoia com relação às drogas...
(Soa a campainha.)
O SR. IBIS SILVA PEREIRA - ...tem oscilado entre políticas de enfrentamento e de repressão. No meu Estado, já tivemos a gratificação faroeste. Acredito que essa ignomínia seja de conhecimento de todo o País. Isso já foi política de segurança lá. Isso já foi chamado de política de segurança.
Então, hoje, estamos tentando reverter esse horror, mas, enquanto não entendermos que é possível enfrentar a questão das drogas sem bala, sem operações militares, sem guerra, enquanto não entendermos isso, os efeitos dessa loucura vão-se fazer sentir; vão-se fazer sentir. Esse ódio se fará sentir.
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Não adianta colocar os policiais para terem aulas de direitos humanos - Pacto de San José da Costa Rica e outros pactos mais - e depois empurrar esses homens para dentro da favela para enfrentar criminosos armados com fuzis que chegam ao meu Estado - por incrível que pareça, este ano já apreendemos, nos seis primeiros meses, 200 fuzis, 200 fuzis de guerra! Não adianta falar de direitos humanos para esses homens e depois empurrá-los como cães de guerra para dentro da favela, porque eles terão medo também de morrer, como todos nós temos. E esse medo de morrer é brutalizante, é embrutecedor e é desumanizante.
Gostaria de pedir desculpas pelo meu tempo, mas eu queria falar ainda do modelo - o Dr. Thiago foi muito feliz no mapeamento que fez de outros modelos.
Eu tenho um medo e gostaria de deixá-lo público aqui: a obsessão que temos no Brasil pelo novo, isso me preocupa. Essa coisa de não esgotarmos algo e já procurarmos o novo: eu tenho muito medo de que isso aconteça na segurança pública.
Esse capítulo que aí está, o art. 144... Desde que a atual Constituição foi promulgada, esse capítulo espera uma regulamentação. O modelo policial brasileiro, nós sequer podemos dizer que ele não funciona. Ele não funciona, mas, efetivamente, esse modelo que foi criado e até hoje não foi instituído, nós não temos sequer parâmetros para dizer... Porque o §7º do art. 144 até hoje espera uma regulamentação.
Então, eu penso que nós devemos, sim, enfrentar esse desafio. O que queremos é isso aí? Se é isso aí, então vamos tratar de regulamentar o art. 144. Se não é, se nós queremos outro modelo com polícias com ciclo completo, então vamos começar o desafio, esse debate. O que não dá é para continuar assistindo 56 mil pessoas morrerem e repetindo os mesmos erros de sempre. É isso. (Palmas.)
A SRª PRESIDENTE (Lídice da Mata. Bloco Socialismo e Democracia/PSB - BA) - Eu gostaria de agradecer mais uma vez a presença desses dois grandes convidados que nós tivemos aqui hoje, foi um prazer recebê-los. Gostaria de ressaltar a contribuição de cada um para esta nossa discussão.
Agradeço especialmente, Dr. Thiago, ao Coronel Ibis, porque fui comunicada de que hoje é o seu aniversário e ele saiu do convívio dos seus amigos e familiares nesta data para garantir a sua presença aqui entre nós. Por isso, o nosso agradecimento especial. (Palmas.)
É certo que as falas aqui colocadas nos fariam passar a noite debatendo e nos farão pensar a respeito delas durante toda esta semana. Tentaremos refletir no nosso relatório os questionamentos aqui colocados e as respostas que estamos buscando também aos nossos, mas nós temos tempo definido para iniciar e encerrar a nossa atividade - nós, inclusive, já ultrapassamos esse tempo.
De maneira que eu queria, não havendo mais nenhuma questão a tratar além destas de que já tratamos, agradecer novamente a presença de todos os que aqui estão nos acompanhando e os que nos acompanharam através do Portal e-Cidadania do Senado e que buscaram de alguma maneira interação conosco pelo Portal e-Cidadania no www.senado.leg.br/ecidadania e no Alô Senado através do número 0800-612211.
Declaro encerrada a nossa presente reunião.
Muito obrigada. (Palmas.)
(Iniciada às 19 horas e 55 minutos, a reunião é encerrada às 22 horas e 9 minutos.)
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(Em execução.)