05/10/2015 - 21ª - CPI do Assassinato de Jovens - 2015

Horário

Texto com revisão

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O SR. PRESIDENTE (Telmário Mota. Bloco Apoio Governo/PDT - RR) - Havendo número regimental, declaro aberta a 21ª Reunião da Comissão Parlamentar de Inquérito criada pelo Requerimento nº 115, de 2015, com a finalidade de, no prazo de 180 dias, investigar o assassinato de jovens no Brasil.
Conforme convocação, a presente reunião destina-se à realização de audiência pública para discutirmos o tema de vitimização policial.
Estão presentes os seguintes convidados, que, desde já, eu peço aos companheiros servidores da Casa que encaminhem até aqui à mesa: Drª Tatiane Almeida, representante da Associação Nacional dos Delegados da Polícia Federal.
Vamos bater palmas porque ela merece. (Palmas.)
O SR. PRESIDENTE (Telmário Mota. Bloco Apoio Governo/PDT - RR) - Cabo Elisandro Lotin de Souza, representante da Associação Nacional dos Praças, Anaspra. (Palmas.)
O SR. PRESIDENTE (Telmário Mota. Bloco Apoio Governo/PDT - RR) - E André Praxedes, representante da Associação Nacional dos Defensores Públicos, da Anadep. (Palmas.)
O SR. PRESIDENTE (Telmário Mota. Bloco Apoio Governo/PDT - RR) - Um esclarecimento: a Associação Nacional dos Delegados da Polícia, Adepol, foi convidada para participar desta audiência pública e informou, por meio de ofício assinado pelo seu Presidente, que, infelizmente, não foi possível designar representante para a presente reunião.
A título de informação, também esclareço que esta audiência será realizada em caráter interativo, com a possibilidade de participação popular. Por isso, as pessoas que tiverem interesse em participar com comentários ou perguntas poderão fazê-lo por meio do Portal e-Cidadania no endereço www.senado.leg.br/ecidadania e do Alô Senado, através no número 0800-612211. Repetindo: pelo Portal e-Cidadania, www.senado.leg.br/ecidadania, e pelo Alô Senado, através no número 0800612211.
Com o fim de organizar o tempo disponível, vamos, para cada convidado, franquear, no primeiro momento, dez minutos, mas permitir que fiquem todos à vontade para fazer todos os esclarecimentos. A noite é pequena e o assunto é muito importante.
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Então, vamos começar nossos trabalhos ouvindo a Drª Tatiane Almeida, representante da Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal.
Com a palavra.
A SRª TATIANE ALMEIDA - Senador Telmário Mota, em primeiro lugar, quero agradecer o convite feito à Associação dos Delegados de Polícia Federal.
Senhoras e senhores e demais integrantes da Mesa, boa noite!
Certamente, há pessoas mais qualificadas do que eu para falar dos problemas sociológicos que envolvem a vitimização dos jovens negros por homicídio no Brasil, mas eu, como profissional de segurança pública, me interesso pelo tema. E, obviamente, como negra, acho que posso dar a minha contribuição sobre o tema, mas lembro que vou centrar a minha fala na questão da atuação da Polícia Federal no combate aos grupos de extermínio e quero dizer que, como estou aqui como representante da Associação dos Delegados, minhas opiniões não refletem a opinião oficial ou institucional da Polícia Federal.
Em primeiro lugar, eu queria dizer que é uma alegria falar do tema, porque envolve a questão do racismo, e que fico triste de saber que isto ainda é um problema no Brasil. Por outro lado, eu vejo que pelo menos vir aqui discutir esse tema, esse problema, já é um grande avanço.
O Brasil é um país onde existe racismo, e nós não vamos evoluir na solução do problema enquanto fingirmos que somos uma democracia racial. Existe racismo, sim, e ele é estrutural e velado, o que faz com que seja mais difícil ainda para a vítima reagir, porque ela sequer se reconhece nesse papel de vítima.
Aos negros neste País é vedado o direito de igualdade, posto que as oportunidades de escolaridade, de bons empregos, que conduzem a uma mobilidade social, não são distribuídas de forma igualitária em relação aos não negros.
Os negros, apesar de constituírem metade da população, estão sub-representados, por exemplo, no Parlamento, nos altos cargos do Poder Executivo e do Poder Judiciário, o que se reproduz, de uma forma ou de outra, também na iniciativa privada.
Índices de analfabetismo, menos anos de estudo, defasagem escolar, acesso a bens de consumo, água encanada, eletricidade, coleta de lixo, expectativa de vida, mortalidade infantil, densidade habitacional, gravidez na adolescência, taxa de fecundidade, desigualdade social, índice de desenvolvimento humano, renda domiciliar, pobreza e indigência ainda apresentam números desfavoráveis aos negros, em relação aos não negros.
Se é certo que a pobreza não é causa de criminalidade, o Relatório Regional de Desenvolvimento 2013-2014 do PNUD, quando reconheceu que as taxas de homicídios não são linearmente correlacionadas com o nível de pobreza e desigualdade, mostrou também que há uma relação com a baixa qualidade do emprego e insuficiente mobilidade social, com mudanças na estrutura familiar, com evasão escolar e, principalmente, com a falta de capacidade do Estado - e este é um problema bem do Brasil, ou seja, das forças policiais, juízes, Ministério Público e prisões - para fazer frente aos desafios da segurança pública.
Infelizmente, como já identificou o Prof. Hélio Santos, os negros estão enredados em um círculo vicioso. Aos negros são atribuídos empregos mal remunerados, porque eles são menos qualificados. E, como resta menos dinheiro para investir em qualificação, eles acabam sempre trabalhando nos empregos que pagam mal.
Assim, o negro está ligado aos problemas e aos estigmas da pobreza, enquanto a pobreza está ligada aos problemas e estigmas da criminalidade.
Eu gostaria de destacar que existe um problema, no Brasil, de seletividade racial na abordagem policial, que é um problema que não existe só no Brasil. Eu mesma já fui vítima em um País da Europa. Eu fui abordada de forma truculenta, desproporcional, por um policial na rua. E, ao indagar por que ele estaria agindo daquele jeito, ele me disse que eu tinha o perfil da ladra naquela cidade, que é ser brasileira e ser negra.
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Aí eu quero dizer que não se pode culpar só o policial por essa circunstância, porque a questão é muito mais institucional. Especialmente no Brasil, a Polícia Militar, que tanto é uma polícia muito letal, como é uma polícia que é muito vítima de mortalidade, tem nas suas fileiras um grande número de negros. Então, quando a gente está discutindo aqui a questão de mortalidade de negros, a gente tem que lembrar aqui também os que os policiais morrem muito. E na Polícia Militar eles são maioria.
O problema da violência e dos homicídios não está ligado apenas a uma solução que venha da atribuição da polícia. Na verdade, a polícia pode fazer até bem pouco. Como destaca o Prof. Arthur Trindade, que hoje é o nosso Secretário de Segurança Pública em Brasília, a solução passa por políticas públicas de segurança mais do que por políticas de segurança pública.
Infelizmente, à polícia acaba sendo atribuído um papel equivocado. De acordo com a Teoria das Tarefas Restantes, à polícia é atribuída a solução de problemas que os demais sistemas não conseguem resolver. E até por isso a polícia costuma ser mais criticada. Só se enxerga a ponta do iceberg, por que há muita criminalidade. Só se enxergam os efeitos, não as causas dessa criminalidade.
Porém, no que cabe à polícia fazer, vou mostrar mais à frente a atuação da Polícia Federal no combate aos grupos de extermínio, de que, notadamente, são vítimas também os jovens negros.
Houve uma pesquisa da Codeplan que mostrou que, no Distrito Federal e Entorno, que é a realidade que eu conheço, 70% das mortes violentas de jovens são de negros e que um jovem negro, aqui, no Distrito Federal e Entorno, tem 2,9 vezes mais chances de morrer do que um jovem não negro.
Os dados que eu vou apresentar aqui me foram gentilmente cedidos pelo Dr. Milton, que é o chefe da Unidade de Repressão aos Crimes contra Pessoas na Polícia Federal e que está desenvolvendo um trabalho brilhante nessa área.
O Dr. Milton, que é uma das maiores autoridades no tema no Brasil, entende - e eu comungo dessa opinião - que o principal problema a ser enfrentado concerne à questão da percepção social, problema relacionado aos grupos de extermínio. Ou seja, a população se sente insegura e pensa que vive em um clima de total falta de segurança e impunidade e que a solução é a punição máxima, ou seja, o extermínio de criminosos.
Coincidentemente, hoje, foi publicada uma pesquisa da Datafolha que confirma esse sentimento.
Se o senhor me permite, Senador, ler um trechinho dessa reportagem...
O SR. PRESIDENTE (Telmário Mota. Bloco Apoio Governo/PDT - RR) - Pois não.
A SRª TATIANE ALMEIDA - A Datafolha fez uma pesquisa que tinha a seguinte manchete: "Metade da população das grandes cidades brasileiras acredita que bandido bom é bandido morto."
Para a pergunta se bandido bom é bandido morto, 50% disseram concordar. O resultado da pesquisa reforça a sensação de especialistas da área de que a sociedade é tolerante com a matança dos suspeitos por policiais. PMs e policiais civis mataram, ao menos, 3.022 pessoas em 2014.
Para o Ouvidor das polícias de São Paulo, Júlio César Fernandes Neves, essa fatia dos brasileiros que "defendem o bandido morto" fomenta a letalidade das corporações policiais. Estão autorizando o mau policial a fazer justiça com as próprias mãos. Esse tipo de pessoa induz o mau policial a cometer o maior erro da sua vida.
O efeito perverso dessa prática está tanto nos crimes provocados por policiais com na morte deles. Em 2014, 398 foram assassinados. Para o Presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB-SP, Martim Sampaio, quem defende o argumento de morte aos bandidos coloca na mão da polícia o poder de julgar e aplicar a pena capital, por exemplo.
(Soa a campainha.)
A SRª TATIANE ALMEIDA - Segue:
Como a sociedade não vê uma saída concreta para a violência, ela passa a achar que o único jeito de acabar com ela é por meio do extermínio físico do criminoso, tendo como seu agente a polícia.
Para o Coronel Álvaro Camilo, ex-comandante da PM de São Paulo e Deputado Estadual pelo PSD, o policial que se desvia dos ensinamentos da corporação está contaminado pelo sentimento de insegurança, algo que acomete toda a sociedade do País. A sensação de impunidade é tão grande que leva o povo a querer que a justiça seja feita de imediato. O policial age assim não pela vontade da população, mas pela impunidade que reina.
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Então, são essas noções que acabam legitimando a polícia a agir aplicando a pena de morte como punição ou vingança. Porém, infelizmente, hoje, neste País, a gente precisa dizer o óbvio: a pena de morte é vedada no nosso ordenamento jurídico e nenhum policial está autorizado a usar a força além do mandamento legal.
A humanidade, apesar dessas ondas de discursos alarmistas em contrário, vive uma evolução no sentido de ser menos tolerante à violência. É inegável que hoje, por exemplo, nós não aceitamos espetáculos como aqueles em que os judeus morriam nas arenas comidos por leões. Houve uma modificação na forma de pensar o crime e o criminoso que levou ao estabelecimento de garantias fundamentais que não podem retroceder, como o princípio da legalidade, do devido processo legal e o banimento das penas cruéis, como as penas capitais.
É importante discutir este tema, especialmente no contexto de crise econômica que se desenha, em que haverá um possível recrudescimento da violência. Então, deve se ficar muito atento às mortes por extermínio de pequenos bandidos e pivetes, inclusive ao assassinato de menores de idade que realizam pequenos furtos, sendo que essas práticas tendem a se difundir na medida em que contam com a conivência de amplos setores da sociedade, amedrontados com o agravamento dos crimes violentos. É como se existisse o sentimento de que matar um pequeno delinquente hoje evita que haja um bandido no futuro.
É necessário refletir sobre a efetividade da punição ou a aplicação de penas capitais ao arrepio da lei. É fundamental destacar que está comprovado que a atuação de grupos de extermínio não resulta na diminuição do cometimento de crimes. Devem-se discutir essas ideologias que vão informando o imaginário popular como a que se reflete na expressão de que "bandido bom é bandido morto". Há de se perguntar: quem é o bandido? Quem decide o que é bandido? Qual a utilidade de se matar um bandido se o problema da criminalidade não acaba com o homicídio, que, ao contrário, alimenta ressentimentos e cria consequências graves de dúvidas, insegurança e legitimidade que afastam o povo do Estado?
Por exemplo, o fato de algumas forças de segurança pública terem como símbolo caveiras, facas ou armas é sintoma de que a função da polícia está sendo mal interpretada. A polícia não foi concebida com a finalidade de matar. Muito pelo contrário, a primeira vez em que a polícia foi concebida num texto, o da Declaração de Direitos Humanos e do Cidadão, em 1789 -, se dizia que era preciso ter uma força pública que garantisse o gozo dos direitos humanos. Então, é fundamental retomarmos esse sentido da polícia como garantidora dos direitos humanos, tanto para os próprios policiais quanto para a população, reforçando que há um limite na atuação do policial e que a aplicação de pena de morte não é papel da polícia e, muito menos, solução para redução da criminalidade.
Então, Senador, como eu vou falar da questão da atuação da Polícia Federal nos crimes de extermínio, eu queria dizer que esses grupos são responsáveis pela forma mais grave de violação aos direitos humanos, qual seja a violação do direito à vida, comprometem o Estado de direito, posto que a maioria esmagadora desses casos envolve agentes públicos que subvertem seus papéis, o que vou mostrar num gráfico, e se utilizam da força outorgada pelo Estado para cometer os crimes que deveriam combater. É um fenômeno social de extrema violência e que tem como atividade fim a prática habitual de homicídios. E o objetivo - é importante destacar - é a obtenção de vantagens econômicas. Engana-se quem pensa que a ação desses grupos é altruísta e objetiva a justiça social. Os grupos podem até iniciar suas atividades embalados por essa vontade de vingança contra os bandidos, porém, invariavelmente, resvalam para o cometimento de crimes visando à obtenção de vantagem econômica e acabam por substituir os criminosos, deixando a comunidade refém do seu poder.
Eu gostaria de pedir ao Secretário que passasse um videozinho que tem um pequeno trecho de uma escuta telefônica que a Justiça autorizou que fosse divulgado pela polícia apenas para mostrar o comprometimento e a gravidade do grupo de extermínio que conta com a participação de policiais.
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O SR. PRESIDENTE (Telmário Mota. Bloco Apoio Governo/PDT - RR) - Eu queria que segurasse só um pouquinho, porque terminou a sessão plenária.
Para a gente interagir, informo que estamos aqui, agora, na CPI que investiga o assassinato... Você que ligou a televisão e está nos acompanhando pela TV Senado, informo que nós estamos, neste momento, em uma audiência pública que está apurando, investigando assassinatos de jovens no Brasil e estamos ouvindo a Drª Tatiane Almeida, representante da Associação Nacional de Delegados de Polícia Federal, e estaremos ouvindo o Cabo Elisandro Lotin de Souza, representante da Associação Nacional dos Praças - Anaspra, e o Dr. André Praxedes, representante da Associação Nacional dos Defensores Públicos.
A Drª Tatiane está aqui fazendo a sua explanação. Ela, neste momento, vai apresentar um vídeo.
Nós queremos comunicar ao público que está nos acompanhando que esta audiência é interativa e a interação pode ser feita pelo e-Cidadania, no endereço www.senado.leg.br/ecidadania, e do Alô Senado, pelo nº 0800-612211. Já recebemos algumas manifestações aqui e daqui a pouco vamos passar aqui para os nossos convidados e a Drª Tatiane vai continuar a sua explanação.
A SRª TATIANE ALMEIDA - Então, retomando, esse vídeo traz uma escuta telefônica que a Justiça nos permitiu divulgar para mostrar a gravidade do comprometimento das instâncias públicas, no caso dos grupos de extermínio, e como isso compromete a questão do Estado democrático de direito.
(Procede-se à exibição de vídeo.)
A SRª TATIANE ALMEIDA - Então, só queremos mostrar que esses grupos de extermínio não estão praticando justiça social e não estão matando bandidos. A preocupação não é essa. Temos aí um capitão da Polícia Militar que dá a ordem para a invasão de uma casa e diz que é para matar quem tiver, menino, mulher, todo mundo. E, em alguns casos que foram investigados pela Polícia Federal, o resultado é realmente esse. Não se obedece ao fato de ser um traficante ou de um homicida - não que isso justifique -, não existe esse valor. A vida tem um valor muito relativizado.
Falando, então, da atuação da Polícia Federal, quero dizer que nós atuamos de forma supletiva. Quer dizer, o homicídio não é um crime, por excelência, de atribuição da Polícia Federal, mas, em situações extraordinárias, a Polícia Federal é chamada a atuar, e isto não afasta a responsabilidade dos demais órgãos de Segurança Pública.
Essas situações pontuais se dão, por exemplo, quando o Procurador-Geral da República faz um incidente de deslocamento de competência, nos casos em que há grave violação de direitos humanos, com a finalidade de garantir o cumprimento das obrigações decorrentes de tratados, porque, se o Brasil comete essas violações, ele pode ser responsabilizado perante os organismos internacionais, e, às vezes, por iniciativa própria da Polícia Federal, quando existem essas graves violações de direitos humanos, ou por determinação do Ministro da Justiça.
O objetivo é sempre resguardar o Estado democrático de direito quando há um comprometimento das estruturas estatais e graves violações aos direitos humanos e reduzir o número de homicídios, de tráfico de drogas e armas, roubos e atuação de milícias.
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Eu vou pedir só para mostrar um gráfico com os resultados das operações que a Polícia Federal tem feito nos últimos anos.
Mais de dez operações foram feitas nos últimos anos, o que acabou levando à criação de uma unidade de repressão a crimes contra pessoas lá na Polícia Federal.
Mais de 170 pessoas foram presas por envolvimento em atividades típicas de grupos de extermínio.
Aqui, chamo atenção para o fato gravíssimo de que mais de 70 desses presos eram agentes públicos. E chamo atenção para a última coluna, que mostra quantos policiais foram presos em cada uma dessas operações. E, infelizmente, a maioria desses policias presos são militares.
A Polícia Federal tem um índice de solução muito bom no caso dos homicídios, o que se deve, principalmente, ao fato de ser possível fazer análises estatísticas que permitem solucionar os casos em que a gravidade da atuação dos grupos é tão forte que exige e justifica uma intervenção.
Acerca da localidade em que essas investigações ocorreram, quero destacar que existe um índice de vulnerabilidade da juventude e também da juventude negra. E esses são os Estados em que existe uma vulnerabilidade maior e que coincide com a atuação da polícia.
Nessas localidades, como o meu colega Milton, que trabalhou em quase todas essas operações, destacou, não existe uma estrutura de polícia, nelas, geralmente, a Polícia Civil não está presente, e, quando a Polícia Militar está presente, é de forma muito precária. São dois policiais militares para policiar áreas extensas. A própria Justiça e o Ministério Público também têm uma atuação deficitária. Aí, o que acaba acontecendo é que o Estado não está presente. E, se o Estado não estiver presente, algum grupo irá ocupar esse espaço.
Então, muito se fala em reforma de polícias e do sistema judiciário, mas acho que a primeira coisa a se pensar é em se dar estruturas para as polícias, para o Poder Público, nessas localidades.
Quando a Polícia Federal faz essas operações, existe uma efetividade, mas ela é extremamente momentânea. Se a situação de vulnerabilidade social não se modifica e se o Poder Público não se faz presente, atuando para manutenção da ordem e garantia dos direitos, os grupos acabam se reorganizando.
Existe uma necessidade de atuação na causa dessa criminalidade que passa por políticas sociais, por educação, estruturação, capacitação e valorização dos órgãos e agentes de segurança pública.
Especialmente na Polícia Federal, existe a necessidade da criação de delegacias especializadas no combate às violações aos direitos humanos nas superintendências da Polícia Federal, porque quem atua nesses crimes são as Delinst, e as atribuições são muito diferentes. Essas delegacias vão trabalhar nos crimes eleitorais, na pornografia infantil, em conflitos fundiários, em uma série de crimes que, às vezes, não permitem que seja dada a necessária especialização para atuar contra esses crimes.
(Soa a campainha.)
A SRª TATIANE ALMEIDA - Acho que acabou, não é, Senador?
Eu queria, se o senhor me permitir só mais um minuto, dizer que acho importante também falar um pouco da questão do auto de resistência, porque muito se tem falado na eliminação do auto de resistência como uma solução para a diminuição dos homicídios. Eu quero dizer que isso é uma falácia. Na verdade, o auto de resistência é um procedimento previsto no Código de Processo Penal e tem como objetivo apenas formalizar ocorrências de lesão corporal, homicídio ou tortura eventualmente ocorridos na atuação policial. E a solução não é acabar com o auto de resistência, que é, na verdade, uma garantia de que haverá o controle da atuação policial. O que se precisa fazer é a investigação dos fatos que são narrados no auto de resistência. Então, esses autos têm que virar inquéritos policiais e essas ocorrências têm que virar estatística. Pensa-se, às vezes, que acabar com o auto de resistência vai diminuir o número de homicídios. Não, esses homicídios têm que estar nas estatísticas oficiais.
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Sobre a questão da impunidade, que acaba levando a população a legitimar a ação de grupos de extermínio, quero dizer que houve a divulgação de uma pesquisa no Fórum Brasileiro de Segurança Pública que mostrou que, em média, 40% dos casos de investigação de homicídios são finalizados com absolvição, 30% acabam em condenação e outros 30% se perdem por outros motivos.
A pesquisadora Ludmila Ribeiro notou que uma das razões para o elevado número de absolvição é a precariedade dos laudos periciais. Ela diz que, quando chega à fase do júri, o jurado se vê obrigado a absolver aquela pessoa porque não há nenhuma prova pericial constatando o crime. Todos os nossos processos são muito fracos do ponto de vista da perícia. Então, reforçar a perícia também é importante para ajudar na resolução desses crimes.
Quero dizer também que o tempo médio de duração dos processos relacionados aos crimes de homicídio é de 7,3 anos, até a conclusão do caso, o que é muito grave, pois, de acordo com as regras do Código Penal, esse tempo deveria ser de pouco mais de um ano.
Para a pesquisadora Ludmila, os principais gargalos para essa demora no tempo de processamento não estão na fase policial, que demanda cerca de 20% do tempo. Mais de 80% do tempo estão concentrados na fase judicial, sendo 40% na primeira fase de pronúncia e 45% na fase do júri. Entre a pronúncia e o júri, o processo chega a ficar parado, esperando julgamento, por cerca de dois anos. Isto porque o júri é uma instituição que demanda certo tempo de organização. Em Belo Horizonte, por exemplo, se tudo ocorrer corretamente, acontecem cerca de cem audiências anuais.
Quero dizer também que, embora, muitas vezes, o inquérito tenha autoria e materialidade apontadas, alguns estudos, se não houver a sentença penal condenatória, classificam isso como sendo inquérito de homicídio não elucidado, o que não é verdade. O crime foi elucidado na polícia, mas, por alguma razão, houve um gargalo e ele deixou de ser processado em tempo hábil no Poder Judiciário.
O flagrante diminui o processamento em até 2,5 anos e ocorre apenas em 20% dos casos. Então, o flagrante, que depende mais do trabalho do policiamento ostensivo de rua e não do da polícia judicial, é uma causa de melhor elucidação dos crimes. Uma das soluções seria dar valor probatório à fase preliminar do inquérito, com a figura do contraditório, uma maior participação da defesa e, quem sabe, uma reforma do Código de Processo Penal para desobrigar à repetição, na fase judicial, de uma série de atos que são realizados ainda na fase do inquérito policial, garantindo-se, assim, uma maior agilidade nessas investigações.
O SR. PRESIDENTE (Telmário Mota. Bloco Apoio Governo/PDT - RR) - Então, ouvimos a Drª Tatiane.
Nós estamos recebendo aqui várias manifestações.
Muito obrigado ao pessoal que está interagindo pelo e-Cidadania.
Quando todos os nossos convidados se manifestarem, nós vamos começar a formular as perguntas do público que está interagindo, até para não quebrar aquilo que está programado, porque cada um trouxe o seu material. A partir daí, sim, abriremos esse debate.
Mas continuem mandando as suas sugestões, as suas falas, as suas opiniões.
Vamos ouvir, em seguida, o Cabo Elisandro, representante da Associação Nacional dos Praças, que também vai fazer a sua fala.
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O SR. ELISANDRO LOTIN DE SOUZA - Obrigado, Senador.
Quero agradecer ao Senado Federal, na pessoa do Senador Telmário Mota e dos membros desta CPI, saudar a Drª Tatiane, digníssima delegada da Polícia Federal, nossa companheira no GT que discute a questão do assédio moral e sexual às mulheres, e o Dr. André, da Defensoria Pública, e agradecer a audiência dos telespectadores que estão nos vendo, neste momento, debater um tema de extrema importância para a questão de segurança pública brasileira que, nos últimos anos, ganhou uma certa notoriedade em função do nosso modelo de segurança pública, que é arcaico, obsoleto, retrógrado e que tem inúmeros e inúmeros problemas, sob todos os vieses e sob todos os ângulos.
O nosso objetivo aqui, Senador, é falar sobre a questão da morte dos profissionais de segurança pública, mas não vamos nos furtar a fazer o debate dos erros institucionais dos policiais militares e civis, enfim, dos profissionais de segurança pública, que são cometidos rotineiramente, com os quais, queremos dizer, obviamente, não concordamos, a que somos radicalmente contrários. Defendemos uma polícia cidadã, defendemos uma polícia respeitadora dos direitos humanos, uma polícia que esteja no dia a dia, fazendo polícia comunitária e, efetivamente, prevenindo o crime, no caso específico da Polícia Militar. A partir dessa análise, dessa lógica, teremos, com certeza, uma segurança pública melhor. Agora, para isso, é preciso se discutir muito, Senador. Muita água vai ter que rolar por baixo dessa ponte para que a gente chegue a ter uma polícia, e não me refiro especificamente à Polícia Militar ou à Civil, mas a uma segurança pública em que a cidadania seja respeitada, porque, inclusive dentro dos órgãos de segurança pública, agora especificamente falando da Polícia Militar e do Bombeiro Militar, essa cidadania inexiste.
Os policiais e os bombeiros militares não foram recepcionados, de fato, na Constituição Federal de 1988. Não nos são dados direitos dados a outros trabalhadores, de outras categorias. Ao contrário, utilizam-se muitos regulamentos militares da época da ditadura militar, das décadas de 1980, 1970 e 1960, como forma de opressão interna, como forma de coerção no sentido de desrespeitar esses direitos fundamentais também citados pela Drª Tatiane aqui.
Nós temos, no Brasil, hoje, um número de morte de policiais seis vezes maior do que o dos Estados Unidos, país comumente usado como exemplo. Morrem no Brasil seis vezes mais policiais do que nos Estados Unidos.
Estou falando especificamente da morte, mas, se formos atentar e expandir um pouco esse debate para a questão da violência perpetrada pelo Estado contra policiais e bombeiros militares no Brasil, veremos que é algo absurdo e beira o caos.
Direitos humanos inexistem para policiais e bombeiros militares.
A questão do respeito ao direito do trabalhador, como uma jornada de trabalho justa, inexiste e nem é discutida. E, quando se discute, discute-se sob a ótica estatal de defesa do Estado, nunca do trabalhador.
A questão de respeito à dignidade humana e a questão salarial, como tantas outras, inexistem no âmbito da Polícia e do Bombeiro Militar. Alguns Estados avançaram um pouco, mas outros ainda tratam os seus profissionais como eles eram tratados na década de 1960, na época em que vivíamos o auge da ditadura militar. Isto precisa ser discutido, seja nesta Comissão, seja em outras comissões, seja em qualquer espaço da Câmara Federal ou do Senado Federal, porque, a partir dessa mudança, dessa lógica, a partir de uma política de segurança pública que respeite minimamente o direito do trabalhador, é que nós podemos pensar em discutir uma segurança pública para o conjunto da sociedade brasileira. Se você não dá cidadania, se você não respeita direitos humanos do profissional, se você o tolhe da livre manifestação do pensamento - está escrito nos regulamentos que o policial não pode se manifestar -, se você faz do profissional de segurança pública da base da Polícia e do Bombeiro Militar um mero cumpridor de ordens, sem o mínimo de análise, sem o mínimo de possibilidade de avaliação macro da situação que se apresenta no momento, da situação factual, nós nos tornamos meros cumpridores de determinação, e, via de regra, determinações erradas ou arcaicas ou as mesmas de sempre.
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Como a Drª Tatiane mostrou, foi um capitão que avisou que tinha que matar o cidadão. Um capitão é um gestor público. Um capitão é formado para gerir o sistema. E esse policial cumpriu ordem. Não sei se cumpriu, se foi o caso ali.
Nós vivemos, no Brasil, hoje, uma guerra civil não declarada, de que tanto são vítimas a população jovem negra, os jovens, quanto os policiais. É o sem camisa matando o descamisado. E isso acontece por vários fatores. O primeiro deles é entender que a sociedade brasileira é uma sociedade violenta. Vamos parar com o discurso falacioso de que vivemos em um país pacífico! Não vivemos! São 60 mil mortes por ano. São três mil policiais mortos nos últimos cinco ou seis anos. Vemos policial sendo arrastado no Rio de Janeiro, como aconteceu recentemente, vemos policial sendo baleado porque estava de folga, porque estava trabalhando... O policial não é respeitado. E, ao mesmo tempo, a sociedade, que não respeita esse profissional de segurança pública, e o Estado, que é o maior desrespeitador desses direitos do policial, exigem que um policial vá para a rua e preste um serviço de segurança pública de qualidade. Mas como? É ilógico. É absurdo querer falar em direitos humanos para um policial militar, para um bombeiro militar, para um policial civil, para um policial federal, mais especificamente para o policial e para o bombeiro militar, se ele não sabe o que são direitos humanos! Como é que se vai falar em direitos humanos para um policial que é torturado na academia física e psicologicamente?
O filme Tropa de Elite é muito realista. Nós formamos pessoas para serem aquilo que eles são hoje. Nós não formamos pessoas para defender a sociedade. Repito: evoluiu-se em alguns Estados. É verdade! No meu Estado, Santa Catarina, nós temos feito um trabalho de evolução nesse sentido. Mas, via de regra, forma-se o policial militar para ser inimigo da sociedade, em uma lógica que é oriunda de 1964. O modelo é o mesmo, a lógica é a mesma, os regulamentos são os mesmos. E, se o policial ousar contestar, ele vai ser preso, vai ser processado. Nós temos prisão administrativa porque o cara estava com a bota suja. Nós temos prisão administrativa de cinco ou seis dias porque o militar estava sem o chapéu na cabeça. E aí você vai dizer para um policial desses respeitar direito dos outros? Não justifica. É claro que não justifica, até porque hoje as pessoas, em tese, deveriam ter um pouco mais de consciência, mas é um modelo formatado para ser assim. O modelo de segurança pública brasileiro é um modelo de origem francesa, de logo depois da Revolução Francesa, que, fundamentalmente, prima por uma centralização do poder no Estado e, a partir dessa centralização do poder no Estado, joga para a sociedade. O Estado é o que vale. A proteção do Estado, a proteção da propriedade é o que vale. Vida, direitos humanos, entre outras situações, nesse patamar de discussão de segurança pública dado hoje, é secundário. O que vale é o Estado. O que vale é a proteção do Estado e, a partir dessa proteção do Estado, do status quo vigente, que é um modelo excludente.
A Drª Tatiane falou, e é verdade, que a população negra é marginalizada. Mas ela é marginalizada pela polícia? Não, pela sociedade. A população negra é marginalizada pela sociedade. A sociedade é racista, sim. A sociedade é machista, sim. E o policial militar e o bombeiro militar, especificamente no caso da polícia militar, é produto da sociedade. Cinquenta por cento da população creem que bandido bom é bandido morto. Para agravar essa situação, temos um modelo de segurança pública que ainda é centrado em uma lógica de 1964. Faço questão de repetir que, em alguns Estados, avançou-se um pouco, mas a sistemática de segurança pública ainda está muito arcaica. E nós somos produtos disso. Ou, por acaso, se imagina que o policial militar, que o bombeiro militar, que os trabalhadores de segurança pública são seres alheios ao debate do que está acontecendo na sociedade? Não, ele faz parte da sociedade no dia a dia. E, se a sociedade é violenta, ele é violento. Não justifica? Claro que não. Não é assim! Está errado! Tem que ser diferente! Agora, é preciso construir algo diferente, visualizar algo diferente e, a partir dessa visualização, buscar esse algo diferente. E esse visualizar e buscar algo diferente começa com o respeito aos trabalhadores. É o Estado brasileiro, especificamente União e Estados, que mais desrespeita direitos dos profissionais de segurança pública. Nós temos situações de profissionais trabalhando em escalas aviltantes de serviços. Nós temos profissionais trabalhando sem condições mínimas de trabalho. Como a Polícia Militar é a primeira a chegar à ocorrência, naturalmente, os índices de letalidade da Polícia Militar são maiores, pois somos a linha de frente da segurança pública. Quem chega primeiro numa ocorrência é o policial militar é o soldado, é o cabo, é o sargento, é o subtenente. É óbvio que o índice de letalidade policial nessa situação de confronto é bem maior e é real.
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A Polícia Federal trabalha numa área de investigação. Quando ela vai prender alguém, já houve uma prévia investigação de oito, nove, dez meses. E aí, quando vai dar o que a gente chama de "atraque", já está tudo resolvido, é só chegar e pegar. Nós pegamos a ocorrência na hora. Resolve-se na hora. Temos cinco segundos, dois segundos para decidir entre viver ou morrer.
Analisem isso sob a perspectiva do Estado do Rio de Janeiro, onde um policial militar é deslocado para uma ocorrência e não sabe se vai voltar vivo, onde os ânimos estão à flor da pele, que é o que está vivendo a sociedade brasileira hoje, pois, por ser de esquerda ou ser de direita, dependendo da situação ou do local, pode-se morrer, pode-se apanhar. E este também é um grande erro que se comete: discute-se segurança pública a partir de um viés de esquerda ou direita. Meu amigo, tantos os da esquerda, quanto os da direita estão morrendo! Nós temos que discutir segurança pública de forma despolitizada e alheia a debates ideológicos, porque, de esquerda ou de direita, todo mundo está morrendo. "Ah, não pode isso! Não pode aquilo!" Tem que se discutir segurança pública a partir daquilo que foi dado na Constituição de 88. E tem que se mudar a Constituição de 88, inclusive, porque a Constituição de 88 foi muito genérica na questão da segurança pública. Não especificou, não foi clara, não foi objetiva. Peço que alguém defina para mim o que é ordem pública. Ordem pública é o que o político de plantão, o que o governador, o coronel, ou o delegado da Polícia Federal ou da Polícia Civil, enfim, o que quem tem o poder em si quiser no momento. Ordem pública é isso.
Países como Portugal, de onde, basicamente, adotamos o modelo, já se livraram desse modelo de segurança pública que nós temos há muito tempo. E nós ainda estamos arraigados nesse processo.
O que está acontecendo no Brasil hoje é uma guerra civil não declarada, onde todo mundo está morrendo. E quem morre mais? Geralmente, policiais militares da base e pessoas de classes menos favorecidas. Somos nós que estamos nos enfrentando e somos nós todos que estamos morrendo. É isto que está acontecendo no Brasil hoje. E a sociedade vê tudo passivamente, incentivando essa violência através, principalmente, de programas policiais sensacionalistas de péssima qualidade, diga-se de passagem - não quero citar nomes aqui para não criar constrangimentos - que divulgam todo dia que matar é bom. E nós estamos discutindo... E a coisa é tão complicada que a Câmara dos Deputados ainda discute a questão do desarmamento.
Ora, numa situação conjuntural como essa de hoje, onde torcer para A ou para B, de repente, do local que você esteja... É preciso discutir segurança pública a partir da sua origem e levar em conta também questões sociais. O que os jovens hoje têm como perspectiva para sua juventude?
Eu conversava, há pouco, com a Drª Tatiane. No sábado, no domingo, à tarde, quando vamos dar uma volta com a esposa e com os amigos, encontramos, nos shoppings, centenas, dezenas de adolescentes como zumbis, sem saber o que fazer. Não existe uma questão cultural de envolvimento... Encontrei meninos de 14 e 15 anos no ponto de ônibus, parados, num sábado à tarde, em pleno sol, de braços cruzados, sem fazer absolutamente nada. A sociedade mudou e a juventude está sedenta de muita coisa e abandonada pelo Poder Público, Senador. Ela está abandonada pelo Poder Público. E, quando ela é abandonada pelo Poder Público, via de regra, o poder criminal coopta essa juventude para o tráfico de drogas. Ela acaba sendo marginalizada e acaba entrando em confronto com a polícia, e acaba, efetivamente, morrendo. Isto é grave e precisa ser combatido.
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Eu não estou aqui desmerecendo um tema específico ou outro, em absoluto. Não é essa questão. O papel da CPI é importante, assim como outras CPIs de outros temas discutidos aqui no Congresso Nacional são importantes. Mas, via de regra, eles começam a ser discutidos sob um viés de condenação de um ou absolvição de outro. Via de regra, eles começam a ser discutidos como forma de proteção corporativista de determinados segmentos. Não se analisa a segurança pública de forma desapaixonada do ponto vista corporativo, do ponto de vista de um viés ideológico ou do ponto de vista de uma real percepção daquilo que está acontecendo na sociedade. A sociedade e os profissionais de segurança pública estão jogados à própria sorte pelo Poder Público, de modo geral. E a culpa não é deste ou daquele governo; a culpa é de todos os governos a partir da Constituição de 1988 - todos, sem exceção -, que criaram uma situação de uma guerra civil não declarada, onde as pessoas estão se matando por R$5,00 ou por R$10,00, e a imprensa está ganhando lucros e dinheiro por conta da morte dessas pessoas.
Há uma espécie de perda de valores generalizada no Brasil. Os órgãos de segurança pública, hoje, são feitos para proteger determinados segmentos da sociedade brasileira. Doutora, a Polícia Militar não é feita para proteger o pobre. Ela é feita para proteger o capital, ela é feita para proteger o dinheiro, ela é feita para proteger quem tem poder. Essa é que é a verdade. E é a segurança pública. Eu não estou nem falando da polícia civil e militar, mas da segurança pública como um todo. Nós fomos feitos para proteger determinados segmentos da sociedade, via de regra a aristocracia muito bem endinheirada que existe neste País.
Aí é só fazer a estatística, é só pegar os números. Eu vou citar Joinville, que é a cidade onde eu moro. Em Joinville, nós temos cerca de 600 mil pessoas. A gente divide, geralmente, a cidade em norte e sul. A região sul de Joinville é a região onde estão, eminentemente, os trabalhadores, com 350 mil a 400 mil pessoas, e a região norte é onde estão o poder aquisitivo alto e as empresas, com 200 mil pessoas. Nós temos 12 viaturas na região norte e duas viaturas na região sul. Quem é que nós estamos protegendo? Nós estamos protegendo quem tem dinheiro, quem tem poder. É para isso que a polícia brasileira é treinada. É culpa da polícia? Não, não é culpa da polícia, é culpa do modelo. É culpa de uma lógica institucionalizada, onde se prima por qualquer outra coisa, menos por vida e por direitos humanos, e de todos, das pessoas que estão lá na rua, que são vítimas desse processo, e dos próprios policiais. Não se tem efetivo, não se tem condições de trabalho, os policiais estão sendo escravizados no Brasil todo, estão sendo humilhados, torturados, e, a partir disso, replicam para a sociedade esse modelo, e obviamente tem-se aí um caldo, uma sopa muito bacana que culmina com esse processo de morte generalizada de todos os lados, seja dos negros, seja dos policiais, seja dos jovens, seja dos pobres.
Eu tenho dito - para encerrar, Senador - que é preciso discutir isso como um todo, de forma macro, objetiva, e pensando lá na frente. Não adianta discutir segurança pública a partir de "é ciclo completo ou não é ciclo completo", "quem é vítima e quem não é vítima". É preciso discutir o modelo desde o início. E aí vou voltar bem na história: quando falo que é preciso discutir desde o início, refiro-me a 1808, quando aportou no Rio de Janeiro esse modelo de segurança pública que está dado hoje.
(Soa a campainha.)
O SR. ELISANDRO LOTIN DE SOUZA - A partir dessa lógica, a partir desse momento, a partir dessa situação concretizada, despolitizada, pensando-se em construir algo, é que a gente pode debater uma segurança pública efetivamente cidadã. Por falar em efetivamente cidadã, nós estamos discutindo polícia comunitária há 20 anos. Há 20 anos se discute no Brasil a lógica de uma polícia comunitária. Eu já vi inúmeros profissionais de segurança pública viajarem o mundo todo - Japão, Inglaterra e outros países - para aprender polícia comunitária e trazer para cá. Isto há 20 anos. E não se consegue avançar em polícia comunitária. E por que não se consegue avançar em polícia comunitária, que pode ser uma saída para esse processo? Por quê? Porque o modelo não permite uma lógica de polícia comunitária. A polícia comunitária significa polícia de proximidade, e a polícia brasileira não é uma polícia de proximidade: é uma polícia centralizada, separada e que protege o Estado. Repito: o modelo brasileiro de segurança pública é o modelo francês. O modelo francês é um modelo estatizado centralizado. Ele não permite uma aproximação. Polícia comunitária nunca deu certo e nunca vai dar. Serviu muito para um discurso nos últimos 20 anos, para um monte de gente escrever livros, fazer teses, mas, na prática, ela nunca funcionou, e nunca vai funcionar, porque o modelo está errado.
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Então, toda essa situação que eu citei nos remete também, como profissionais de segurança pública, a um processo de vitimização, tanto quanto a sociedade. Guardadas as devidas proporções, tanto quanto a sociedade, nós, policiais militares, bombeiros militares, policiais civis, que estamos na rua no dia a dia, combatendo a criminalidade, a alta criminalidade e a baixa criminalidade, somos vítimas dessa insegurança pública generalizada que vivemos no Brasil hoje. E é preciso discutir isso de forma séria, objetiva, e pensando para a frente. Eu já participo de eventos como este e de debates como este há bastante tempo, mas, infelizmente a percepção que eu tenho é de que vou continuar participando de debates como este mais alguns anos. Discutimos, discutimos, discutimos, mas, lamentavelmente, pouco avançamos nesse processo.
Agradeço, Senador, e me coloco à disposição para fazer um debate franco, aberto, objetivo, pensando numa segurança pública cidadã efetivamente.
Obrigado. (Palmas.)
O SR. PRESIDENTE (Telmário Mota. Bloco Apoio Governo/PDT - RR) - Obrigado.
Ouvimos mais um dos nossos convidados, o Cabo Elisandro, que representa a Associação Nacional dos Praças - Anaspra.
Quero registrar a presença da nossa Presidenta desta CPI, Senadora Lídice da Mata, da nossa querida Bahia.
A Lídice tem uma história exemplar. Ela veio agora do aeroporto direto para cá, porque o tráfego aéreo estava intenso. É uma correria enorme.
Eu convido a nossa Senadora Lídice da Mata para assumir a presidência.
A SRª LÍDICE DA MATA (Bloco Socialismo e Democracia/PSB - BA. Fora do microfone.) - Sr. Presidente, peço a V. Exª que continue presidindo. Eu acompanho a reunião daqui. Por favor.
O SR. PRESIDENTE (Telmário Mota. Bloco Apoio Governo/PDT - RR) - Há poucas mulheres aqui e três homens. Eu queria que V. Exª viesse compor este quadro aqui. (Risos.)
Agora, nós vamos ouvir o André.
Então, para as pessoas que estão nos vendo pela televisão, nós estamos aqui na CPI que apura o assassinato de jovens. Hoje, tratamos, predominantemente, sobre as vítimas policiais. Estamos ouvindo aqui os nossos convidados, a Drª Tatiane Almeida, representante da Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal, o Cabo Elisandro, que representa principalmente os policiais militares, e o Dr. André Praxedes, representante da Associação Nacional dos Defensores Públicos, ao qual eu passo a palavra.
O SR. ANDRÉ PRAXEDES - Boa noite.
Inicialmente, eu vou pedir licença ao Senador Telmário para fazer os cumprimentos à Senadora Lídice da Mata, Presidente da Comissão Parlamentar de Inquérito. Eu queria cumprimentá-la e agradecer pelo convite para que a Associação Nacional dos Defensores se fizesse presente nesta audiência pública. Eu queria dizer, em nome do Presidente da Anadep, Dr. Joaquim Neto, da honra da Anadep por fazer parte desta audiência pública.
Cumprimento o Senador Telmário, ilustre Presidente da Mesa, cumprimento a ilustre Delegada Federal Drª Tatiane, que está ao meu lado esquerdo, e, aqui, perto de mim, da Associação Nacional de Praças, o Cabo Elisandro, que fez considerações muito importantes para todos nós.
Inicialmente, quero dizer que considero fundamental falar um pouco da Defensoria Pública, até porque meu ilustre antecessor fez uma confusão ao nos tratar como Ministério Público.
A Defensoria Pública é uma instituição muito nova no Brasil. Foi criada com a Constituição Federal de 1988, que, diga-se de passagem, Senador, Senadora, completa hoje 27 anos de existência.
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A Defensoria Pública no Brasil surgiu com a Constituição Federal, com a Constituição da República, em 1988, onde ela está prevista no art. 134.
A Defensoria, dentro da sua proposta, como instituição, se apresenta como instrumento do regime democrático, incumbindo a essa instituição a promoção dos direitos humanos.
Enfim, é uma instituição muito nova, que ainda está traçando, buscando o seu caminho no País, querendo mostrar ao País - inclusive, eu queria deixar muito claro, registrando aqui perante todos - as dificuldades que a Defensoria brasileira passa atualmente neste quadro histórico.
Eu até abro um parêntese aqui, Senador, para dizer que a Defensoria Pública do Distrito Federal, à qual eu, honrosamente, pertenço, passa por grandes dificuldades. Nós estamos com dificuldades orçamentárias, buscando a nomeação de novos defensores, buscando a nomeação de carreiras de apoio. É uma luta.
Quem sabe até seja uma ideia que se crie aqui uma CPI para discutir os direitos humanos violados da Defensoria Pública no Brasil. Não só aqui, na Capital Federal, mas em todo o Brasil, do Amazonas até o Rio Grande do Sul.
Muito bem. Eu queria deixar claro - é importante - que, devido a esse compromisso, a essa vocação constitucional na defesa dos direitos humanos, eu sempre gostei muito de uma definição da defensoria que eu ouvi: a defensoria é o Estado se protegendo de si próprio. Essa ideia sobre defensoria pública me parece muito interessante. Nós, defensores públicos, integramos uma instituição que é o Estado se protegendo de si próprio. A Defensoria Pública é o Estado se protegendo do Estado polícia, por exemplo.
Eu quero dizer aqui que eu fiquei muito bem impressionado com o que foi falado aqui pelos meus antecessores, pela Drª Tatiane, por sua colocação, e pelo Cabo Elisandro. Eu entendi que foram palavras que vieram, de certa forma, ao encontro das aspirações da Defensoria Pública brasileira. Fiquei muito bem impressionado.
Antes de falarmos do tema central, Senador, que seria a questão da vitimização dos policiais, eu quero sempre deixar claro que nós vivemos um quadro de violência, uma violência que é epidêmica no Brasil. Isto é um fato inconteste. Nesse sentido, eu peço aqui certa licença para trazer alguns dados muito simples sobre esse quadro de violência crônica no Brasil.
Esses dados que vou citar para todos aqui presentes eu colhi num relatório feito por um estudo do Prof. Julio Jacobo, que pertence ao Centro Brasileiro de Estudos Latino-Americanos.
Apenas para fazer uma síntese aqui, entre 1980 e 2010, morreram, no Brasil, quase 800 mil cidadãos vítimas de arma de fogo, Senador. Oitocentas mil pessoas. Dessas 800 mil pessoas, 450.255 eram jovens que tinham entre 15 e 29 anos. Completando: desse quadro, dessa mortandade de jovens, duas de cada três vítimas eram jovens. Uma de cada três mortes de jovens se deve a disparo de arma de fogo.
Para nossa perplexidade, o Brasil é, hoje, o país que aparece como líder em homicídios cometidos por arma de fogo. Nós, aqui, matamos muito mais do que a China, que tem sete vezes a população do Brasil, e matamos muito mais do que a Índia, o segundo país mais populoso do mundo. Como entender isto, Cabo Elisandro, num país que, aparentemente, não tem - o Brasil não tem... Agora, nós temos alguns problemas nessa área, mas o Brasil não tem conflitos religiosos, o Brasil não tem conflitos étnicos, o Brasil não tem conflitos por disputas de fronteiras. Como entender, por exemplo, que aqui se mate... O número de mortes que ocorrem no nosso País lembra a guerra civil, como diz aqui o Cabo Elisandro, lembra as guerras no Oriente Médio, as intifadas no Oriente Médio, a Guerra do Golfo. Evidentemente, é preciso aqui um esforço de todos para que nós possamos fazer esta pergunta: onde nós vamos ter que atuar para que possamos enfrentar esse problema?
É importante deixar bem clara a nossa preocupação.
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Parece-me, Senador Telmário, que já foi colocado pelos meus antecessores que essa violência epidêmica, crônica, no Brasil, é cometida, em parte, pelo Estado brasileiro. Eu diria que em grande parte. Notadamente, a violência cometida pelo Estado brasileiro, através de seus agentes, contra cidadãos deste País atinge, fundamentalmente, pessoas pertencentes às classes sociais baixas. Eu acredito que aqui não há nenhuma controvérsia em relação a essa questão. Não há! E essas pessoas que sofrem a violência do Estado brasileiro são pessoas com perfil de atendimento da Defensoria Pública, pessoas que têm o perfil de atendimento da Defensoria.
Então, que fique clara a nossa preocupação em relação a isso, que fique muito claro, porque a Defensoria, muito preocupada com a sua vocação institucional na promoção dos direitos humanos, persegue ad nauseam os seus objetivos, Senadora. A Defensoria Pública brasileira só se justificará perante o País se ela perseguir os seus objetivos constitucionais. Cada defensor público, seja aquele que está lá no Amazonas, seja aquele que está no Rio Grande do Sul, sabe que é objetivo da instituição a promoção dos direitos humanos. Agora, é evidente que nós não desconhecemos que, dentro desse processo de violência que ocorre no Brasil, também os agentes de segurança pública são vítimas desse processo de violência.
Se eles são atingidos, se sofrem a violência que ocorre no Brasil, eu afirmo aqui que a Defensoria Pública, nesse particular, está ao lado dos agentes de segurança. Seria interessante desmistificar a ideia de que a Defensoria Pública, por exercer, no processo penal, a defesa criminal, a defesa do acusado que não constitui o seu advogado, seria muito interessante desmistificar a ideia de que a Defensoria aqui está apostando no quanto pior, melhor, porque isso é mito. A Defensoria é um órgão do Estado. Se este País aqui ruir, não há salvação de ninguém: não se salva o Judiciário, não se salva o Ministério Público, não se salva a Defensoria Pública, não se salva a OAB, não se salva ninguém. Então, nós não temos interesse em apostar no quanto pior, melhor.
E aí é importante que, talvez, para aqueles que não conheçam bem o papel da Defensoria, nós não aqui... Inclusive, ao final aqui da nossa exposição, vamos até fazer algumas propostas aqui com relação a isso. Nós não apostamos numa situação de depauperação da política de segurança pública no Brasil. Queremos que o País... Queremos aqui garantir os direitos humanos de pessoas eventualmente imputáveis. A Defensoria Pública, olhando o interesse daquelas pessoas que sofrem uma imputação criminal e que não constituem seu advogado, pessoas que, regra geral, são fragilizadas materialmente, entra no processo e faz a sua defesa no processo. Mas não é uma defesa a todo custo. Temos limites aqui no exercício da nossa função.
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Muito bem. Dentro dessa perspectiva também, falando um pouco, então, da vitimização dos policiais, que nós reconhecemos, quando soubemos do convite para participar desta audiência pública, a primeira coisa que me veio à cabeça quando o nosso Presidente Joaquim Neto fez o convite para que eu representasse aqui, com muita honra, a nossa associação nacional, a primeira coisa que me veio à cabeça foi isto: vamos falar de vitimização policial, mas essa audiência pública deve ser vista dentro de algo maior, que é a CPI sobre assassinato de jovens no Brasil, e a Defensoria acompanha todo o quadro institucional político do País e sabe quem realmente está morrendo no Brasil.
Mas, ainda assim, é muito interessante para nós que também estejamos aqui neste momento em que se está discutindo a vitimização do policial, porque reconhecemos que os policiais sofrem no exercício de suas funções públicas.
Eu também queria levar ao conhecimento de todos - isto aqui foi bem recente - uma pesquisa realizada entre 18 de junho e 8 de julho de 2015 pelo Senasp - Secretaria Nacional de Segurança Pública, um órgão do Ministério da Justiça. Foram enviados formulários eletrônicos aos profissionais de segurança pública que estavam, evidentemente, cadastrados nesse sistema. Fundamentalmente, atingiu mais os policiais militares, depois os policiais civis, o pessoal da Polícia Rodoviária Federal, o pessoal da Polícia Federal...
(Soa a campainha.)
O SR. ANDRÉ PRAXEDES - ... e, finalmente, o Corpo de Bombeiros.
Já estão aí me dando o primeiro toque.
Podemos prosseguir, Senadora?
A SRª PRESIDENTE (Lídice da Mata. Bloco Socialismo e Democracia/PSB - BA. Fora do microfone.) - Pode.
O SR. ANDRÉ PRAXEDES - Muito bem.
Apenas para reforçar aqui o que foi dito, Cabo Elisandro, o que foi detectado nessa entrevista? Ameaças em serviço e fora de serviço. Os agentes de segurança, notadamente os policiais militares, são vítimas de assédio moral e humilhação no ambiente do trabalho. Essa foi uma resposta dos entrevistados. Policiais disseram que foram acusados injustamente da prática de ato ilícito. Houve o diagnóstico de algum tipo de distúrbio psicológico. Isto é importante: do efetivo, hoje, no Brasil, de mais de 700 mil policiais, 109 mil policiais já foram diagnosticados com distúrbios psicológicos. Muitos já passaram dificuldades para sustentar a sua família. Nós sabemos que há informações de que, no Rio de Janeiro, policial militar, por exemplo, mora em favelas, no Complexo do Alemão e em outras, e foram discriminados por serem profissionais de segurança pública. Apurou-se que 44% dos entrevistados escondem a farda ou distintivo no trajeto entre a casa e o trabalho, que 68% dos entrevistados disseram ter medo de serem vítimas de homicídio, que 59,6% também dos entrevistados têm receio alto ou muito alto de adquirirem algum tipo de distúrbio psicológico, que falta apoio da sociedade, que falta apoio do Estado, do comando e que - isto é algo que nos interessa em particular - 51% das pessoas que foram entrevistadas, policiais, repito, militares, civis, bombeiros, disseram ter receio alto pela falta de diretrizes claras sobre como conduzir ações estratégicas, como, por exemplo, abordagens, prisão por droga, uso da força. Isto também está, hoje, dentro dessas preocupações que afligem a valorosa classe dos agentes de segurança pública.
Então, para nós, está claro, evidentemente, que os agentes de segurança pública - e aí, notadamente, faço menção aos policiais - são vítimas e, até dentro de uma abordagem vitimológica, da vitimologia, até representariam e se enquadrariam em todas as classificações das vítimas dentro do estudo da criminologia, da vitimologia, que é aquela vítima completamente inocente, aquela vítima que é menos culpada do que o seu agressor, aquela vítima que é tão culpada quanto o seu agressor e até aquela vítima que é unicamente culpada.
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Eu estou chegando ao fim da nossa exposição e queria já colocar alguns pontos e até me apresentar perante todos aqui, perante a Senadora Lídice da Mata.
Eu, aqui, na Defensoria Pública do Distrito Federal, eu sou profissional do Júri. A Delegada Drª Tatiane trouxe alguns dados aqui a respeito do Tribunal do Júri. Eu tenho 12 anos de dedicação ao serviço do Tribunal do Júri e, recentemente, participei de um julgamento que eu considero histórico para nós da carreira, porque foi o julgamento mais longo de que participamos aqui, em Brasília, desde que assumi a Defensoria Pública, em 2003. Foi o julgamento de policiais, à época, policiais, por aquilo que se convencionou chamar de chacina da Estrutural.
A Estrutural é uma comunidade do DF muito carente, de muita pobreza e de muita exclusão social. À época do fato, em 1998, ela não era nem uma Região Administrativa, como é hoje, mas uma invasão.
Foi deflagrada uma operação pelo Governo do Distrito Federal. O Governador era o agora Senador Cristovam Buarque. Da Operação Tornado, realizada pela polícia, resultou, a princípio, a partir daí, a morte de três pessoas e o ferimento de tantas outras. Logo, a partir daí, abriu-se uma investigação, um inquérito, e, portanto, vários integrantes da Polícia Militar do Distrito Federal foram denunciados pela prática de homicídios e lesões corporais. Foram denunciados, Senadora, desde a cúspide, coronéis, majores, capitães, até os praças, ouviu, Cabo Elisandro?
E, como a Defensoria, que, a princípio, à primeira vista, prima facie, a Defensoria sempre está mais, vamos dizer assim, do outro lado nessa questão penal em relação à Polícia Militar... Um dos acusados, durante o processo, acabou ficando sem o seu advogado e foi à Defensoria do Plano Piloto, onde nós atuamos, oficiamos, no prédio do TJDF. Nós assumimos a defesa desse policial, hoje não mais policial, e fomos com ele até o julgamento, que aconteceu agora, que foi realizado agora, no mês de agosto, que foi muito noticiado na mídia do Distrito Federal.
O que eu gostaria de falar para todos é que, particularmente, foi um momento muito interessante para minha vida profissional, porque eu sempre identifiquei essas dificuldades na Polícia. Eu estou falando notadamente da Polícia Militar. E falo notadamente do praça, daquele que está fazendo a segurança preventiva. Eu me senti muito bem. Mesmo sabendo que do outro lado estão pessoas muito humildes, pessoas muito pobres e que houve, realmente, mortes naquele local, eu me senti bem fazendo a defesa do policial, porque eu sei das dificuldades do policial.
À época, a Rede Globo acompanhou essa operação, a Operação Tornado, e gravou imagens da Estrutural em 1998. Se os senhores imaginassem as cenas da Estrutural em 1998, a Polícia fazendo uma operação, às tantas horas da noite... Quer dizer, a Estrutural, à época, era um reduto de muita violência, muito mais. Essas gangues de jovens que a gente vê na Estrutural, no Distrito Federal, no Distrito Federal, já são fruto de um outro momento da criminalidade que havia naquela época e que não foi cuidada. É um absurdo submeter os policiais militares àquelas condições de trabalho! É um absurdo! Eu fiquei estarrecido ao ver como o Estado brasileiro tratava os policiais àquela época.
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Até houve um gesto simbólico. Quando assumi a defesa, o juiz, já na sexta-feira à noite, já na hora em que todos estavam no limite do cansaço, o juiz deu a palavra à Defensoria Pública e eu fiz uma saudação aos policias militares, hoje muitos já na reserva, batendo continência, Cabo Elisandro, a todos os policiais. Todos os policiais, sem exceção, nada combinado, se levantaram e bateram continência para a Defensoria.
Eu senti ali que é possível haver uma identidade entre essas carreiras, entre essas funções públicas do Estado que hoje não se comunicam, absolutamente nada. A Defensoria não se comunica com a Polícia Civil, a Defensoria não se comunica com a Policia Militar.
Muito bem. Acho que podemos contribuir muito para, pelo menos, atenuar esses danos que sofrem os agentes de segurança pública. Claro que deve ser pensado e repensado como poderia haver uma colaboração da Defensoria, que, repito, não busca aqui contribuir para os quadros deprimentes de impunidade no Brasil. Realmente, a taxa de elucidação, de apuração de crime de homicídio no Brasil é muito baixa, vergonhosamente baixa, mas é importante que façamos aqui a pontuação. Sabemos aqui dos problemas da investigação, do processo, que as provas são precariamente colhidas e que vivemos sob a égide de um estado de leis, que temos garantias penais, processuais que devem ser observadas, e a Defensoria tem a função de fazer prevalecer isto, mas achamos, dentro dessas preocupações, - e aí já estou chegando para o meu fecho, Senadora -, que a Defensoria poderia contribuir muito, Cabo Elisandro, para essas dificuldades dos policiais. Por exemplo, na questão das abordagens, a Defensoria Pública brasileira, em todos os Estados do Brasil, poderia, eventualmente, fazer convênios, com a Polícia Militar, com a Polícia Civil, e a DPU, a Defensoria da União, também com a Polícia Federal, para que houvesse aulas, esclarecimentos, encontros para falar sobre prisões em flagrantes, falar sobre todo o procedimento do inquérito policial. A Defensoria poderia prestar uma grande contribuição para que possamos ter aqui uma investigação, uma postura dos nossos agentes de segurança pública, que é aquela postura que todos nós desejamos. Ninguém quer aqui uma polícia violenta, ninguém quer aqui uma polícia arbitrária.
Eu, no exercício da nossa profissão, espero, quero, buscamos aqui ter aqui uma polícia cidadã, uma polícia que respeite os direitos humanos de todos os cidadãos deste País, não somente da classe média ou somente das elites, não, mas de todos os cidadãos, sem qualquer distinção.
Finalizando, falando sobre os desafios da nossa democracia, Cabo, o senhor colocou aqui os problemas, os tantos problemas a serem enfrentados. Não é fácil! Não é fácil! Temos muitos problemas, precisamos repensar a segurança pública, precisamos repensar o processo penal, precisamos repensar a magistratura, o Ministério Público, a Defensoria precisa saber exatamente qual é o seu papel, aonde nós queremos chegar.
Muito bem, meus amigos, são estas as reflexões.
Eu quero dizer aqui que tive uma grande satisfação de falar para todos e que estou à disposição para eventuais esclarecimentos e algum debate.
Muito obrigado, Senadora.
A SRª PRESIDENTE (Lídice da Mata. Bloco Socialismo e Democracia/PSB - BA) - Obrigada.
Quero agradecer a todos os três convidados que aqui se pronunciaram trazendo informações e opiniões que serão fundamentais para o nosso trabalho.
O nosso Senador Telmário preferiu trocar comigo. Ele preferiu que eu ficasse na Presidência para ele fazer alguma intervenção, fazer algumas perguntas.
Quero, no entanto, antes de passar a palavra a ele, passar a ler algumas das questões que estão aqui, para que os nossos convidados possam anotar e, eventualmente, responder. São muitas, mas nós vamos ler apenas algumas.
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Também quero registrar a presença do meu conterrâneo Enderson Araújo, um jovem com muito trabalho na periferia de Salvador, organizador do Mídia Periférica, uma organização, uma estrutura de comunicação e de articulação da juventude comunitária na nossa cidade.
Depois que o nosso Senador falar, vamos ver se nós quebramos um pouco o protocolo e permitimos que o Enderson também se pronuncie, porque ele tem, certamente, muito a contribuir para a nossa conversa.
Eu vou ler aqui algumas perguntas.
Ricardo Ricciulli Saisse diz: "A redução da maioridade penal, por si só, não é a solução. É preciso punir esses jovens, mas não apenas prendê-los. Deveria ter um trabalho ressocializador para reintegrá-los na sociedade."
O Sr. Luciano Monsores diz: "Por que, quando um PM é assassinado, ninguém se manifesta exigindo justiça, e, quando um bandido morre, queimam ônibus, fecham comércios e avenidas e a imprensa dá ênfase?"
Anderson Fiúza de Andrade, da Bahia pergunta: "Qual a opinião dos palestrantes quanto a um sistema de rede protetiva para policiais ameaçados? Conhecem algum sistema dessa natureza em operação no País? Que modelo sugeririam?" Pergunta muito importante.
Além disso, o Sr. Ítalo de Couto Ferreira pergunta duas vezes, de formas diferentes, em síntese, por que o Estado não adota uma política de retaliação quando um policial morre ou é atacado.
Eu faço questão de fazer essas perguntas porque elas demonstram também a opinião daqueles que nos acompanham, mesmo que não, necessariamente, coincidam com a opinião dos senhores convidados.
Na continuidade, lerei mais algumas contribuições.
Passo a palavra ao nosso Senador Telmário, para as suas observações.
O SR. TELMÁRIO MOTA (Bloco Apoio Governo/PDT - RR) - Senadora Lídice, nossa Presidenta, convidado Dr. André, Cabo Elisandro; Drª Tatiane, eu fiquei atento à fala de cada um e ouvi bem o que a Drª Tatiane falou, o que o cabo Alessandro falou e o que o Dr. André Praxedes colocou.
Eu fui anotando algumas coisas. Por exemplo, a Drª Tatiane diz que, em determinado momento, há aquela máxima de que bandido bom é bandido morto, uma máxima adotada pela polícia, adotada por uma mídia sensacionalista e sustentada pela própria sociedade. Por quê? Porque a mídia é a água mole na pedra dura: tanto bate até que fura. E a água fura a pedra não pela força, mas pela insistência.
Ora, quem forma a nossa cabeça? Quando você vai para uma sala de aula, o professor forma a sua cultura, ele o prepara, abre a sua mente. A mídia é uma fonte diária de pesquisa, seja ela na televisão, seja no rádio, seja no periódico, onde quer que seja.
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Diariamente, o que mais vende? Se colocarem lá que, hoje, uma madre foi a uma penitenciária visitar alguém, isso não vende. Mas, se colocarem: "Hoje, os bandidos invadiram a casa lotérica", isso vende. E essa é a manchete dos jornais. Essa chama.
Por que o Big Brother tem uma alta audiência? Porque a pessoa pode ver o que não é para ser visto, aparentemente. Ora, logo vai-se em cima daquilo que é sensacionalista, daquilo que parece que foge, que está à margem da sociedade.
Então, o que mais vende no jornal?
Podemos ver que o jornal é padrão. Se lermos todos os jornais... Nós temos uma mídia aqui no Senado, e podemos ver que os jornais se padronizam. Onde está a diferença? Na coluna política, na coluna social e um pouco na coluna policial. Mas, no resto, estão padronizados. E é isso que vende jornal. E é isso que forma a cabeça da nossa sociedade.
Por isso aqui, numa hora, o Cabo Elisandro disse assim: "Nós vivemos numa sociedade machista, conservadora e ditatorial". E ditatorial.
Por exemplo, nós vimos aqui que o policial é produto da sociedade. E é. E é, porque o homem é produto do meio, com suas raríssimas exceções. O homem é produto do meio. Ora, se nós temos uma sociedade que tem essa característica, nós vamos colocar policiais com essa característica. Onde o policial poderia mudar? Isso, dentro da fala que ouvimos aqui dentro. Na sua formação. Mas nós temos uma formação, principalmente do policial militar - pois é esse que está na frente -, militarizada. Aí, bem disse o Cabo Elisandro: "Vamos cobrar direitos humanos de quem não recebe direitos humanos?" Como cobrar direitos humanos de um policial que não tem direitos humanos?
O cara, para ir para a casa dele, tira a farda, esconde, entra num ônibus e fica quieto. Ou então ele é raçudo: coloca uma arma, espera o primeiro assalto e vai trocar bala com o bandido; sem o colete, porque, se tiver o colete, já está caracterizado que ele é policial.
Olha lá o risco de vida dele. Ele não tem direitos humanos. Ele não tem direito a greve. Nós estamos aqui para aprovar uma anistia. Eu estou fazendo coro para se aprovar a anistia desse soldado. E aqui há forças políticas impedindo. É preciso submeter ao Congresso a anistia de militares que gritaram pela sua dor, pela sua necessidade, pela sua equiparação salarial.
Aqui disse uma hora também, muito bem, o Cabo Elisandro: "A polícia não foi feita para proteger a sociedade, mas o sistema dominante: o poder econômico, o poder político, o poder dos ricos sobre os pobres". Aos pobres cabe a suspeita. Olha, eu digo isso, e sou filho de uma empregada doméstica. Digo com propriedade isso. Pode acreditar. Então, eu sei que ao pobre só vale a suspeita.
Há pouco tempo, comprei um carro, mas eu andava numa moto. E eu parava num posto policial federal, polícia PM... A minha moto era parada todos os dias. E toda hora havia policial lá. E os carrões passavam. E eu sempre questionava: por que só eu? Por que só a minha moto? Por que eu, de moto?
Quando eu morei na Bahia, embora fosse auditor de banco... Eu trabalhava no banco e votei na Lídice. E gostaria de votar sempre, porque ela merece isso. Eu ia da Cidade Baixa até a universidade, que era a Católica, de moto, porque era mais rápido, por causa do trânsito. E me paravam na barreira. Eu ficava irritado. Quando eu ia no meu carro, não paravam. Mas a moto paravam, porque a moto caracteriza o mais pobre, o mais vulnerável. É impressionante como funciona o sistema, em todos os níveis, em todos os níveis.
Então, o debate se fundamenta, hoje, na questão da vitimização do policial. Nós temos aqui, e já ouvimos, todos. Inclusive, eu quero aqui repetir uma fala da Drª Natália, que esteve na nossa última audiência pública. Ela fala muito, aqui, do auto de resistência, que seria como uma janela, uma porta aberta para a quebra dos direitos humanos, do Código Penal... Ela usa isso nesse sentido. Estou colocando isso, porque nós fomos formando ideia, fomos formando juízo.
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Também em uma fala... Todo mundo aqui falou e colocou coisas importantes, mas o dia a dia ali - vamos fazer como na minha terra -, a labuta está com a PM, porque a PM não investiga; quem investiga é a Polícia Civil, que é um quadro menor. E nós temos recebido aqui, minha Presidenta, Senadora Lídice, sugestões no sentido de que muitos policiais... Seria investir um pouco ao contrário: se a gente colocasse mais investigação, talvez a gente chegasse a mais resultados, porque os índices de criminalidades do que se apura no Brasil são baixíssimos.
Muito bem, eu vou já entrar na pergunta. Eu estou só fazendo uma retrospectiva, porque é importante, Senadora Lídice, para a gente chegar mais ou menos às perguntas.
No final, o Cabo Elisandro disse o seguinte: "Na verdade, a gente vive em uma guerra, uma guerra permanente, uma guerra civil entre policiais e população mais carente; o descamisado combatendo o sem camisa" - se não me engano, foi essa a frase que ele colocou aí.
Então, vai a pergunta agora, e eu a formulo aos três: seria importante desmilitarizar a PM e unificar as polícias? Um ponto. Em uma só, coloquei duas questões aí, não é?
Os grupos de extermínios e as milícias não surgem por uma falta de... Por exemplo, quem faz os grupos de extermínio? Normalmente, são empresários que patrocinam grupos de policiais, militares ou ex-militares, ou polícia civil. Nisso, não estaria agregada uma falta de presença efetiva do Estado? E a Justiça não contribui muito com isso? A Justiça não contribui muito com isso? O resultado não contribui muito com isso?
Porque, prende-se o ladrão em um dia; ele é preso a segunda vez, e a terceira. Aí, além de o policial cansar de prender aquele camarada, imagina o cara que é assaltado... Eu digo isso porque agora, recentemente, mataram um rapaz lá estupidamente na minha cidade, em Roraima, um cara que vendia até armamento, trabalhando. Quer dizer, o bandido assalta a primeira vez, assalta a segunda, assalta a terceira...
É a mesma coisa, Senadora Lídice, eu estou aqui sentado, aí V. Exª passa aqui perto de mim, eu belisco V. Exª - e vai embora. Passa de novo, e eu belisco de novo; na terceira vez, já vai passar olhando de lado para mim; na quarta, se eu beliscar, vai me beliscar de volta. É uma defesa natural da vida.
Então, parece-me o quê? Como o Estado fica ausente, como as punições às vezes não acontecem, como a Justiça é lenta - e como ela é lenta, quando quer ser lenta; quando não quer ser, ela tem uma celeridade até impressionante -, então, talvez essa falta de punição verdadeiramente dos fatos contribua para criar isso.
É isso o que quero colocar. Na opinião de vocês, o que causa mais a milícia e o que causa mais os grupos de extermínio? E o grupo de extermínio, aparentemente, começa por uma boa causa: defender o patrimônio ou uma sociedade de um número de bandidos. Aí aquilo ali cai para o crime comum, como a gente viu na própria exposição da Drª Tatiane, que mostrou aqui um vídeo em que a Polícia Federal evitou um acontecimento quando um capitão dava uma ordem para um subordinado invadir uma casa e exterminar quem estivesse lá - homem, mulher, criança. Não podia haver testemunha.
Então, são essas as colocações. Queria fazer essas perguntas de forma generalizada.
E o que fazer para que a nossa Polícia tenha mais credibilidade, seja mais aceita e seja também mais protegida e integrada à própria sociedade, para evitar essa onda de crimes também contra os nossos policiais.
A SRª PRESIDENTE (Lídice da Mata. Bloco Socialismo e Democracia/PSB - BA) - Muito obrigada, Senador Telmário.
Passo a palavra a Enderson, para que faça uma pequena consideração, rápida.
Aí, retornarei à Mesa e farei também algumas perguntas.
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O SR. ENDERSON ARAÚJO - Boa noite a todos. Queria saudar a Mesa.
Fiquei muito contemplado, muito contente em ver a CPI dando essa guinada. Eu estava numa Mesa do Senado, numa audiência do Senado, quando a Presidenta, Senadora Lídice da Mata, propôs esta CPI. E eu tenho algumas contribuições quanto às falas que foram feitas.
Sobre o fim do auto de resistência, de que a Drª Tatiane falou, existem duas coisas que muitas vezes ficam confusas: o fim da PL 4.471 e o fim dos autos de resistência.
A posição da sociedade civil, da militância dos grupos organizados é pelo fim do auto de resistência e pela aprovação no Congresso da PL nº 4.471/2012, que trata dos autos de resistência, visando a investigar esses casos que dão entrada nas delegacias, nos módulos policiais mais a fundo.
Nós não queremos o fim da PL. Queremos que ela seja aprovada e que esses autos de resistência sejam mais investigados. Os termos "auto de resistência" e "resistência seguida de morte" devem ser trocados por lesão corporal decorrente de intervenção policial e morte decorrente de intervenção policial, porque são altíssimas as taxas de mortalidade que acometem a juventude negra. É bom sempre frisar isso.
O Cabo Elisandro falou mais cedo que a juventude não tem perspectiva. Mas a juventude que não tem perspectiva neste Brasil é a juventude negra, porque a juventude de classe média alta, a juventude branca tem perspectiva; ela entra no shopping e não é seguida pelos seguranças do shopping.
Essa mortalidade acomete a juventude negra, ceifando sonhos, perspectivas de vida e marca negativamente toda a vida da sociedade brasileira. Esse não é um fato novo; vem de um processo histórico, o escravismo e o colonialismo, que combinam racismo e o preconceito geracional com exclusão social.
A polícia é o modelo do capitão do mato, se quisermos falar em processo histórico. A mídia forma a sociedade de todas as classes: A, B, C e D. E há um vínculo institucional entre a polícia e a mídia. Nós percebemos isso quando o repórter dos programas sensacionalistas adentram as delegacias para entrevistar as pessoas sob custódia. Se está sob custódia e não foi julgado por um juiz, não há por que um repórter entrar, como houve casos na Bahia de o repórter entrar e fazer o julgamento em público daquele indivíduo que está sob custódia.
Enfim, era somente isso. E uma pergunta que eu queria fazer ao Cabo, que muito me contemplou e muito me deixou contente, ao ver que existem, sim, policiais bons e policiais que têm um diálogo, vamos dizer assim, não institucional. Entendemos que a polícia tem um modelo muito conservador e que não tem essa abertura de diálogo.
Então, uma pergunta: o senhor não é perseguido por ter essa forma de dialogar, que é uma forma bem aberta?
Obrigado.
A SRª PRESIDENTE (Lídice da Mata. Bloco Socialismo e Democracia/PSB - BA) - Voltando à Mesa, eu também queria fazer algumas perguntas.
Eu pude acompanhar pela Rádio Senado uma parte da fala do Cabo Elisandro quando vinha para cá, e verifiquei também que muitos dos dados que nos foram apresentados pela doutora que representou o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, na semana passada, na nossa audiência, já foram também comentados por vocês. São dados que demonstram tanto uma perspectiva de temor por parte da população brasileira, que teme que algo aconteça com ela, que algum tipo de violência lhe aconteça, e há índices bastante altos que demonstram que as mulheres se sentem mais vulneráveis: 95% das mulheres se sentem mais fragilizadas diante da violência que se abate sobre a sociedade em geral.
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E também a pesquisa demonstra que uma parte significativa dessa população tem medo do policial, vê no policial uma possibilidade também de violência contra ela. E parte da pesquisa também divulgada, feita com os policiais, dá a visão do policial sobre essa situação de tensionamento social.
Alguns dados já foram aqui colocados: cerca de 75% dos profissionais de segurança pública em serviço já foram alvo de ameaça. Entre os policiais militares, 73% tiveram algum colega próximo vitima de homicídio em serviço. Se considerarmos policiais militares fora de serviço, esse número sobe para 77%.
Uma atitude gravíssima relatada nesta Comissão por diversas vezes está relacionada a práticas internas draconianas da Polícia. A pesquisa do fórum revela que 63% dos profissionais de segurança pública já foram vitimas de assédio moral ou humilhação no ambiente de trabalho. Mais da metade dos policiais já passaram por dificuldades para garantir o sustento de sua família, já foram discriminados.
Bom, esses dados são relativamente conhecidos pelos profissionais de segurança aqui presentes e por parte da sociedade, que teve acesso a essa pesquisa. Minha pergunta vai no sentido de que, tomando conhecimento desses dados amplamente divulgados, quais foram as atitudes tomadas pelas direções das polícias militar e civil para alterar essa realidade dentro da Polícia Militar ou da Polícia Civil? Vocês podem, os dois, comentar esse posicionamento?
Também uma outra pergunta que vem em outra direção: dentre os motivos de insegurança no trabalho, cerca de 65% atribuem as causas de insegurança à impunidade; 60%, à falta de apoio da sociedade; 55%, à falta de apoio do comando; e 55%, à falta de equipamento de proteção. Vocês possuem programas concretos em funcionamento para modificar essa realidade?
E, na direção inversa: por que somente 22% temem ser investigados pela Ouvidoria, e somente 25% temem ser investigados pela Corregedoria? Aproximadamente 45% temem enfrentar sanções judiciais, e 43% temem sanções disciplinares ou administrativas; ou seja, não é pouco, 43%, 42%, mas menos do que a metade da corporação teme ser punida. Que interpretação, o senhor, especialmente, Cabo Elisandro, tem dessa pesquisa?
Vou passar para vocês responderem.
Pode começar quem quiser.
Concedo um tempo de em torno de cinco minutos para responderem tudo, mas com bastante tolerância.
O SR. ELISANDRO LOTIN DE SOUZA - Obrigado, Senadora.
Cumprimentá-la, pois não havia cumprimentado a senhora anteriormente.
Algumas questões que foram colocadas... Primeiro, desculpe-me, pois eu esqueci o nome do...
A SRª LÍDICE DA MATA (Bloco Socialismo e Democracia/PSB - BA) - Enderson Araújo.
O SR. ELISANDRO LOTIN DE SOUZA - Eu concordo com várias questões que você colocou e peço escusas se não me fiz entender bem.
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Obviamente, a população negra jovem- e fiz questão de frisar isso - está dentro desse contexto. Ela é muito mais marginalizada em qualquer Estado da Federação. E creio que, na Bahia, por haver, eminentemente, proporcionalmente, mais jovens negros, isso aconteça com muito mais frequência.
A questão da divisão social no Brasil também está no contexto da vitimização dos jovens negros, em número maior, ou mais, mas no caso de brancos também. Aqui se divide a questão de classe, e, dentro da classe, divide-se mais uma vez, que é a questão dos negros. Então, está muito bem colocado. Como você citou com muita propriedade, no Brasil, nós fomos formados, historicamente, com essas divisões, com esse racismo, com o machismo e tudo isso. Então, o que você falou é fato.
A questão de eu sofrer algum tipo de perseguição... Eu sou Presidente da Associação de Praças de Santa Catarina, da Aprasc. A Aprasc hoje representa os 15 mil praças da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiros Militar do nosso Estado. Para que a gente pudesse estar aqui hoje falando abertamente... Do ponto de vista regulamentar, eu ainda... Ao fazer o que eu estou fazendo aqui, regulamentarmente falando, com base no regulamento, eu estou cometendo uma infinidade de crimes militares. Porém, a questão da evolução social e do Brasil, etc, etc, nos permitiu criar uma entidade em Santa Catarina... Não fui eu quem a criou, pois eu comecei a participar depois. O ex-Deputado Sargento Soares, do PDT, e outros companheiros lá de Santa Catarina é que a fundaram, e nós nos fizemos valer... E a ideia sempre foi a de ser a voz dos praças. Para isso, a gente sofreu muito no passado, especificamente, com prisões administrativas. A gente agia meio que como subversivos no passado.
Éramos chamados de subversivos, mas, na verdade, o que nós queríamos era só dizer que existia um segmento da segurança pública, que representa 75% da segurança pública, que é o dos praças da Polícia e do Corpo de Bombeiros Militar, que está sendo aviltado em seus direitos todos os dias, e ninguém sabe disso.
A partir disso, surgiu a Aprasc, trazendo essa realidade, e a gente conquistou, a duras penas, com a legitimidade da categoria, tanto em Santa Catarina quanto no Brasil, o direito de poder representá-los e de falar. É claro que, do ponto de vista regulamentar, repito, as regras ainda são as mesmas, mas a conjuntura política acabou, de certa forma, nos blindando, digamos assim.
Então, não tenho tido mais esse problema, que já tive muito no passado, mas outros companheiros tiveram mais. Cito o Prisco, na Bahia, por exemplo, e outros companheiros do Brasil.
Sobre a questão da rede protetiva, que acho que um telespectador colocou. Nós lutamos reiteradamente - e aí é um outro problema... Nós temos inúmeros policiais militares ameaçados no Brasil. Tem policial que tem de se mudar vez por outra, porque acaba enfrentando...
Em Santa Catarina, nós tivemos, em 2012 - cito meu Estado, porque vivi isso -, ataques do crime organizado a ônibus. Deu em mídia nacional: queimaram ônibus, etc, etc, e alguns policiais nossos enfrentaram, acabaram enfrentando essa marginalidade organizada, o tal do PGC, Primeiro Grupo da Capital, que é uma espécie de PCC catarinense.
(Soa a campainha.)
O SR. ELISANDRO LOTIN DE SOUZA - E isso acabou criando situações de ameaça. A família teve de se mudar, e o Estado nunca levou isso em consideração. Aliás, nem Santa Catarina, nem em lugar algum do Brasil.
Nós temos um projeto, inclusive - fazemos questão de apresentar esse projeto depois aqui, no Senado -, para estender essa rede de proteção aos policiais ameaçados, não só aos militares, mas também aos civis. Isso existe muito e é fato.
Minas Gerais, se não me falha a memória, tem um projeto assim. Inclusive, o nosso é um pouco baseado no de Minas. Esse projeto prevê que os policiais acabem tendo a proteção do Estado, principalmente nessas situações de mais periculosidade. Agora, é uma necessidade, sim. E eu estou falando de Santa Catarina, mas não quero nem pensar em falar do Rio de Janeiro e de São Paulo, onde, efetivamente, a criminalidade organizada é muito maior e os enfrentamentos são muito maiores. Então, acontece, sim, e bastante. E é preciso corrigir isso também.
Alguém falou - eu não peguei os nomes das pessoas aqui - na questão da formação. Eu vejo a formação do profissional de segurança pública um pouco mais avançada em alguns lugares e retrógrada em outros. A começar pelo tempo.
Por exemplo, em Santa Catarina, nosso policial militar e nosso bombeiro militar têm que ter nível superior, isto desde 2009. Nós defendemos isso para o Brasil todo. Já temos isso lá. Temos uma academia de nove meses, que eu avalio que ainda, apesar da evolução que houve, tem alguns problemas, e já temos discutido isso.
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Não se admite mais, por exemplo, Senadora... Nós tivemos recentemente uma turma de formandas da Polícia Militar, alunas que foram submetidas a treinamento físico às 15h, num sol de 40 graus, e algumas tiveram queimaduras na mão, por exemplo. Então, algumas coisas ainda precisam ser mudadas.
Prefiro muito aprender, entender e defender toda a legislação de direitos humanos oriunda da Convenção de Direitos Humanos Internacional e das leis internacionais de direitos humanos a aprender a marchar. Eu prefiro isso, como policial que quero ser e defensor de cidadania e dignidade e como cidadão, que também sou.
Então, acho que algumas coisas poderiam... Não estou dizendo que não é preciso ter, mas, às vezes, privilegia-se muito determinada situação que é meramente desnecessária para a função de segurança pública do policial. O que marchar ou prestar continência - e aí prestar continência é um cumprimento - pode mudar para um policial na rua? Nada. São mais questões internas.
Então, acho que direitos humanos, cidadania, todas essas legislações inerentes à cidadania são, para mim, fundamentais.
Em outros Estados, academia três, quatro meses. Então, já começa por aí.
Existe uma orientação da Senasp (Secretaria Nacional de Segurança Pública), uma matriz curricular na Senasp, que não é obrigatória. Alguns Estados a cumprem, outros não a cumprem, porque vivemos no sistema federativo, e cada Estado tem a sua autonomia. Contudo, deveria, de repente, achar-se uma forma de obrigar que os Estados cumpram aquela matriz curricular da Senasp, que é construída com base na cidadania.
A questão do auto de resistência. Quero comungar da ideia da delegada. Acho que a própria legislação, e já discutimos isso antes. Eu faço parte do Conasp (Conselho Nacional de Segurança Pública), onde tem o pessoal da Bahia no Conasp, e já discutimos isso lá. Do ponto de vista prático, não muda absolutamente nada. É uma questão de nomenclatura, porque a própria legislação já prevê todo um procedimento. O Código de Processo Penal já prevê todo um seguimento com relação ao auto de resistência.
Agora, se os órgãos de segurança pública não fazem a sua parte, não investigam se há problemas com perícia, se não é aberto inquérito, isso já é outra discussão. Então, o auto de resistência por si só, retirá-lo ou mudar sua nomenclatura, do ponto de vista prático, não muda nada. Caso se deixasse o auto de resistência como está agora e, efetivamente, se cobrasse dos outros órgãos responsáveis - desde ouvidoria, até polícia civil, polícia militar e corregedorias - para investigar, até Ministério Público para acompanhar, que é o verdadeiro fiscalizador, etc, etc, não teríamos o problema e o debate sobre o auto de resistência.
Acho que o debate sobre o auto de resistência é muito pequeno e, na prática, para quem vive isso... E eu não teria problema algum em retirar o auto de resistência; não teria. É que eu vejo que estão criando uma discussão em torno de algo que não muda. Não vai fazer a menor diferença tirar o nome ou mudar o nome, porque ele já existe, já está dado. Vai mudar o nome para... O senhor citou um outro termo. Só mudou o nome; a prática vai continuar a mesma.
É preciso cobrar que haja efetivamente investigação, para ver se aquele caso que originou aquele confronto, que originou aquela morte ou aquela lesão corporal, se esse caso é justificado pelos excludentes de ilicitude previstos no Código Penal ou não.
Agora, para isso, há de se ter corregedorias, investigação, Ministério Público etc. Isso tem de acontecer. A lei está lá e, se for cumprida na sua íntegra... É a mesma coisa, se me permite, que o Estatuto da Criança e do Adolescente. Estamos discutindo diminuir para 16 anos, mas não se cumpre nem o que está no Estatuto de hoje. Como vamos discutir? Temos mania de discutir a coisa aqui em cima, quando o problema está aqui embaixo, e o auto de resistência vem nesse mesmo contexto.
A questão de desmilitarizar e unificar. Há pesquisas do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em que 75% dos policiais e bombeiros militares entrevistados solicitam e querem a desmilitarização. E aí há, obviamente, 25% que acham que não.
Existe uma discussão errada na questão de se desmilitarizar. Essa discussão errada se dá no âmbito inclusive dos profissionais e até no Congresso Nacional em outros espaços. Muitos dizem que, ao desmilitarizar a polícia, esta vai virar uma bagunça, porque se quebra a hierarquia e a disciplina.
Ora, na nossa casa nós temos hierarquia e disciplina, e não é militar. A Polícia Federal tem hierarquia e disciplina, talvez até mais rígida que a nossa, e não é militar. Na Policia Civil, em qualquer lugar, temos hierarquia e disciplina; em qualquer lugar.
Portanto, dizer que desmilitarizar vai acabar com a hierarquia e disciplina é uma falácia. É uma besteira. Uma coisa não tem nada a ver com a outra. Alguns policiais - 25% ou 30% dos policiais militares do Brasil - não defendem a desmilitarização porque acham, a partir de discursos também falaciosos, que, se deixarmos de ser militares, perderemos alguns direitos, o que é mentira! Não é verdade!
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Eu cito o exemplo de que, se nós deixarmos de ser militar - nós temos uma aposentadoria diferenciada -, vamos perder essa aposentadoria. Isso não é verdade! Nós temos essa aposentadoria diferenciada por conta da peculiaridade da nossa profissão. Professor não é militar e tem a aposentadoria diferencia. Mineiro não é militar e se aposenta de forma diferenciada.
A questão do nosso sistema de previdência e aposentadoria diferenciada não é porque somos militares; é porque a nossa profissão exige. Inclusive pesquisa feita por um bombeiro aqui do Distrito Federal chegou à conclusão de que um policial militar e/ou um bombeiro militar vive, em média, 6,2 anos do que a sociedade brasileira. A expectativa de vida nossa é menor. Por que ela é menor? Nós arcamos com uma carga de responsabilidade negativa que nenhuma outra profissão tem. Permitam-me os meus companheiros da Polícia Civil e da Polícia Federal: para o policial militar, o desgaste, do pondo de vista psicológico, é muito maior.
Enfrentamos um segmento da sociedade que todos da sociedade jogam para debaixo do tapete. Quem vai prender o pai ou o padastro que estuprou a menininha de um ano é um soldado da PM. Imaginar que ele não é afetado psicologicamente por uma situação como essa é utopia.
A SRª PRESIDENTE (Lídice da Mata. Bloco Socialismo e Democracia/PSB - BA) - Claro!
O SR. ELISANDRO LOTIN DE SOUZA - Por isso, por conta da peculiaridade da nossa profissão, nós temos uma aposentadoria diferenciada. Nós fazemos uma escala 24 por 48, por exemplo; são 240 horas no mês, que é o mesmo, em outras palavras, que trabalhar 8 horas por dia durante 30 dias sem folga. E, se colocarmos isso a médio e longo prazo, são 42 anos de serviço. Então, todas essas situações nos remetem a ter uma questão específica de um direito diferenciado.
Eu nem me aposento. Na verdade, um policial militar, um bombeiro militar não se aposenta; ele vai para a reserva remunerada, tanto que ele pode ser reconvocado, durante cinco anos, para a guerra.
Então, o tema desmilitarização tem sido feito pela sociedade e inclusive por gestores do modelo de segurança pública atual de forma errada, de forma enganosa e induzindo a determinadas posições que são erradas. Quando um policial militar ou um bombeiro militar fala em desmilitarizar, Senador, ele fala em ser inserido na Constituição Federal. Só isso. Eu fico imaginando um livrinho verde, que a Constituição, com uma porta desenhada na frente, um trinco, e aí um policial entrando dentro da Constituição, porque, para nós, a Constituição não chegou ainda, desde jornada de trabalho até outras situações que existem. Nós não temos carga definida de jornada de trabalho.
Eu tenho dito que se um comandante meu chegar e me disser: "Cabo Lotin, o senhor vai ficar de serviço 25 dias, todos os dias, 8 horas por dia, sem tirar folga." "Ah, não senhor". "Está preso por desobediência!" E eu vou preso! Literalmente preso. E aí, para ser solto, só com o juiz. E, se for em uma sexta-feira, como geralmente acontece essa situação, se na segunda-feira for feriado, o cara fica cinco dias na cela, preso, até conseguir achar um juiz para soltá-lo.
Então, são essas situações que os policiais e bombeiros militares do Brasil querem mudar. Querem ser inseridos no processo da Constituição na perspectiva de jornada de trabalho, de direitos e garantias fundamenteis, entre outras situações.
E isso, desmilitarizar ou não, sendo militar ou não, é irrelevante no contexto, porque a hierarquia e a disciplina vão continuar as mesmas, os direitos vão continuar os mesmos. O que nós queremos é respeito, respeito das autoridades e respeito da sociedade.
Grupo de extermínio, milícia e a falta do Estado.
Primeiro, temos que diferenciar grupo de extermínio, que é uma coisa, de milícia, que é bandido. Milícia não é formada para proteger; milícia é formada por bandido - e aí estou partindo do pressuposto das milícias que eu conheço no Rio de Janeiro.
Agora, grupo de extermínio é formado por quem?
Não é uma hipocrisia da sociedade condenar um grupo de extermínio que ela mesma forma?
Quem forma o grupo de extermínio? Os comerciantes, porque o policial prendeu o menor de idade, ou deteve ou reteve o menor de idade, e esse menor de idade não foi preso, acabou voltando e assaltando de novo; porque o policial prendeu o marginal que assaltou o mercado 10, 15 vezes. Esse cara voltou e assaltou de novo. Ou seja, a sensação de impunidade gera no policial um sentimento de estar enxugando gelo, não serve para... (Expressão vedada pelo art. 19 do Regimento Interno do Senado Federal.) nenhuma, desculpe-me a expressão. Isso gera no comerciante, que tem a sua loja assaltada, também esse sentimento.
E aí é uma coisa muito contraditória, porque nunca se prendeu tanto no Brasil. Temos o quarto maior sistema prisional do mundo. São seiscentas e poucas mil pessoas presas. Nunca prendemos tanta gente.
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No entanto, a violência continua a mesma. O que está errado? O que está errado, se a polícia prende, se são formados, de forma ilegal, grupos de extermínio que matam pessoas inocentes e culpadas? O que está errado nesse contexto, se a gente faz, faz, faz, enxuga gelo, tem impunidade, e acabam-se criando essas...? Onde vamos parar? Há que se discutir todo o conjunto.
A mídia, com seus programas, incentiva esse processo. Eu disse que o policial é produto do meio. Ele é. Ele vive isso. Ele vive, inclusive, momentos em que é instigado. A sociedade brasileira, não contente com grupos de extermínio, está partindo para os linchamentos. Se pegarmos números recentes... A própria mídia incentiva o linchamento! Pelo amor de Deus! A própria mídia incentiva o linchamento!
(Intervenção fora do microfone.)
Exato.
Então, nós estamos num processo de anomia social, em que todo mundo faz o que quer, independentemente de qualquer coisa. E isso parte de vários setores. Há que se refletir todo o conjunto da sociedade, uma sociedade em que ter um tênis ou um iPhone é melhor do que ser. Há um incentivo para que nossos jovens tenham isso na cabeça. Nossos jovens têm isso na cabeça. "Se eu tiver um iPhone, eu sou gente. Se eu tiver um telefone menor, de menos qualidade, eu não sou ninguém. Eu só sou visto pelos outros a partir do momento em que eu tenho alguma coisa. Se eu não tiver, eu não sou ninguém." E aí, para ter, como vivemos em crise econômica, etc - o Brasil é um país em desenvolvimento... Como não tem, acaba criando situações. E aí entra a questão das drogas.
Então, há uma série de fatores que precisam ser analisados.
A falta do Estado é notória em todo lugar. Onde o Estado não entra... Esta frase eu já leio em livros há mais de 20 anos: onde o Estado não entra o bandido entra. Isso é óbvio. E ele vai cooptar menor, vai cooptar quem estiver ali. E o menor que está lá vai pegar um salariozinho de frentista num posto de gasolina, que é R$780,00, ou vai trabalhar de "avião" para um traficante para ganhar R$4 mil ou R$5 mil? Olha os valores! Olha o que nós estamos ensinando!
Repito: os jovens não têm... Os jovens pobres, negros não têm o que fazer e acabam criando situações de uma dependência desse modelo anacrônico, louco, consumista, individualista...
Eu tenho dito, Senadora, para encerrar, que hoje nós não temos um sistema capitalista, comunista ou socialista. Nosso sistema político, intrínseco, se chama "umbigocentrismo". O que vale mais é o meu umbigo. Nós vivemos uma política hoje de... Qual a sociedade em que eu vivo? Aí eu me olho no espelho. A sociedade em que eu vivo sou eu. O que importa sou eu. Se eu tiver de fazer alguma coisa para alguém para me dar bem, eu vou me dar bem. A cultura do Brasil é essa. Infelizmente, a gente tem que deturpar isso, inclusive.
Policial é cidadão; não é subcidadão. Policial militar e bombeiro militar são cidadãos, e precisam ser aceitos como cidadãos pelo Estado, em primeiro lugar... Nós tivemos que entrar na Justiça. No Paraná, a Apra, que é a Associação de Praças do Estado do Paraná, teve que entrar na Justiça pelo direito de liberdade de expressão. E aí, na sentença, o juiz, que, obviamente, concedeu esse direito com base na Constituição Federal, chegou a usar um argumento, doutor, que eu achei muito interessante. Disse: "Quer dizer que, baseado nos regulamentos e legislações que temos hoje, se um conjunto de policiais militares se unir e quiser fazer uma manifestação contra a corrupção no País, ele vai ser preso por isso?" O policial é um cidadão. Ele é um cidadão e precisa ser reconhecido pelo Estado a partir do momento em que se cabem a ele todos os direitos de todos os cidadãos, a começar por jornada de trabalho, a começar por respeito aos direitos humanos e garantias fundamentais, e podemos estender por vários outros aí, como formação, etc, etc.
Acho que era isto.
Não sei se fiquei devendo alguma coisa. Acho que está bem...
Enfim, estamos à disposição para continuar o debate, se preciso for, e eu não me furto a fazer esse debate quanto tempo for necessário, porque acho que ele é importante para a sociedade.
Obrigado.
A SRª PRESIDENTE (Lídice da Mata. Bloco Socialismo e Democracia/PSB - BA) - Agradeço ao senhor.
Passo a palavra à Drª Tatiane.
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A SRª TATIANE ALMEIDA - Senadora, vou tentar ser bem rápida.
Eu queria só comentar algumas falas do meu amigo Lotin, que é um policial. O Enderson percebeu que o Lotin é muito sensível para essas questões de direitos humanos, tanto que deu a dica à Regina Miki, de fazer um grupo de trabalho para discutirmos assédio sexual e moral das trabalhadoras de segurança pública. Então, é um colega que eu muito admiro.
Lotin, você tem toda razão quando diz que não é possível exigir que um policial respeite direitos humanos quando ele não tem os seus próprios direitos reconhecidos. Alguns anos atrás, o Professor Balestreri escreveu um livro que foi muito discutido, mas que hoje parece que se perdeu - Direitos humanos: coisa de polícia.
Primeiro, reconhece-se o direito do policial e coloca o policial como vetor de cumprimento de direitos humanos. Eu acho que é esse o caminho para aproximar a sociedade e a polícia, e diminuir a letalidade da polícia.
Como vínhamos discutindo mesmo, Lotin, problema maior do que ter uma polícia violenta é ter uma sociedade violenta, uma sociedade que quer resolver todos os seus conflitos, primeiro, com base no recurso à violência. Nós batemos o carro e já queremos sair brigando. Então, isso é o pior. É claro que é impossível se ter uma polícia que vá atuar da forma mais pacífica possível quando o que a aguarda é uma reação também violenta.
Lotin, eu não gosto de vir a esta Casa, ao Congresso, e fazer um discurso muito corporativista, assim como sei que você não gosta, mas você levantou a bola e quero dizer que a Polícia Federal está na contramão do que você falou, de que as polícias não servem para proteger os mais pobres, mas para proteger os mais favorecidos. Quero dizer que, na Polícia Federal, é totalmente o contrário.
Então, todo mundo acompanha a atuação da Polícia Federal na investigação dos crimes econômicos, de desvio de recursos públicos, de corrupção, e eu acho que nós estamos dando a nossa contribuição para a mudança deste paradigma de atuação da polícia.
Quando você falou na questão do jovem que comete um delito para ter um telefone, eu quero dizer que venho pensando muito na questão da inclusão digital. Existir hoje pressupõe existir também nas redes sociais. E, se o jovem não pode comprar um telefone, se ele não pode ter um computador, como ele vai existir no Facebook? É complicado.
Houve uma pergunta questionando por que não existe uma reação quando um policial morre. Isso é uma coisa que me deixa muito entristecida. Quando morre um policial em Nova York, por exemplo, o prefeito vai ao enterro; há uma comoção social, como se o Estado e a sociedade dessem o recado de que não é legítimo matar um policial. Matar um policial é um ataque ao próprio Estado. E, aqui no Brasil, isso não acontece. Parece até que os governadores têm certo receio de lamentar a morte de um policial.
Olha só: o policial não é pago para morrer! Sou professora de direitos humanos na Academia de Polícia e sempre digo isso aos meus alunos. Nós não somos remunerados para morrer. É claro que, numa situação de confronto, temos a obrigação de defender as pessoas, mas a verdade é que não é nossa obrigação morrer. Nossa obrigação também é voltar para a nossa família, voltar para a nossa mãe, voltar para os nossos filhos. Infelizmente, não sei por que a morte de um policial aqui no Brasil não causa uma comoção social como causa em outros países.
O Senador falou sobre a questão da mídia. Quero dizer que, infelizmente, as nossas televisões ficam representando a violência de uma forma muito grave, muito alarmista, banalizando-a. Todos os dias você liga a televisão, e sempre se repetem os mesmos casos, isso aliado ao fato de que existe uma impunidade. Fica parecendo que vivemos numa sociedade que incentiva a violência e que não toma providências.
É engraçado como você vai ficando frio, olha aquelas imagens e já não sente grande coisa. Só para dar um exemplo, morei em outro país, e, onde eu estava, eu não tinha televisão, e nem assistia, quando tinha oportunidade, porque não entendia muito bem. E, quando voltei para o Brasil e fui assistir ao Jornal Nacional, percebi o quanto a mídia molda a nossa forma de olhar a realidade. Assisti ao jornal e chorei, porque foi uma sequência de más notícias - alguém morreu, com um ônibus aconteceu isso...
Como isso mexe com a gente! Mas tudo é noticiado de forma reiterada e banalizada, acabando com que a gente não reaja da forma correta.
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Sobre a formação do policial, quero dizer que ela está muito voltada para incutir a noção de que o policial deve ser frio e deve ser forte; deve ser herói. E isso é complicado. Ao policial é ensinado desligar suas emoções, o que pode ter consequências graves na formação da sua personalidade.
Eu fiz um mestrado em que estudei a questão do suicídio de policiais, algo grave em todas as polícias. Eu quero dizer que as instituições, de uma forma geral, ainda não atentaram para o fato de que se molda um policial que vai ter algumas complicações psicológicas e que, portanto, é obrigação do Estado dar as condições para que ele possa se tratar.
Eu vou dar um exemplo do que acontece na Polícia Federal. Nosso quadro de médicos e psicólogos foi extremamente reduzido, porque agora existe um sistema integrado de gestão de segurança do servidor. Por conta disso, nós não podemos ter um número adequado de psicólogos, assistentes sociais e médicos dentro da nossa corporação. E vou dizer que o que estou pregando aqui não é um privilégio para o policial. Nós não somos melhores. Na verdade, nós somos piores, porque o que acontece é que nós passamos por questões psicológicas, problemas e frustrações que vão acabar influenciando a forma de lidarmos com as emoções, como reagimos em relação às emoções.
Então, uma das recomendações que eu faria seria para que se verificasse a questão do cuidado com a saúde do policial, porque, enquanto o policial está se matando, as pessoas não estão dando a devida atenção. E quando um policial cometer uma chacina porque teve alguma complicação psicológica? É preciso evitar que isso aconteça.
Quanto ao auto de resistência, de que o Enderson falou, eu quero deixar bem claro que sou totalmente contra o uso do auto de resistência como forma de legalizar uma atuação indevida de um policial. O problema é que se está fazendo uma discussão que não vai levar a nada.
O certo é que nós devemos obrigar os órgãos de segurança pública a transformarem todos os autos de resistência em inquérito policial, porque aquele é o procedimento onde se verificará se, de fato, ocorreram as excludentes de ilicitude, como bem falou o meu colega Lotin. Então, mudar o nome não vai mudar nada. Eu só quero dizer que essa discussão é inócua e faz com que a gente perca tempo com algo que não vai ter eficácia. A eficácia, como eu estou dizendo, se dará justamente exigindo-se que seja investigado de verdade, exigindo-se que haja, por exemplo, uma sindicância nas corregedorias que possa fazer o controle dessa atividade. E mais: quando não se transforma o auto de resistência em um inquérito, nem é possível que o Ministério Público faça o controle externo. Então, esse é o problema.
Já estou terminando.
Quanto à desmilitarização, eu confesso, Lotin, que nem entendo muito o objetivo de se desmilitarizar, mas quero dizer que realmente é possível conviver com desmilitarização e com hierarquia e disciplina, que eu acho que são importantes numa instituição que usa a força.
Sobre a garantia dos direitos dos policiais, eu sou a favor. Se você está falando na mudança de um paradigma que pega como modelo as Forças Armadas, você está correto, porque um policial não pode ser formado como um soldado das Forças Armadas, porque ele não está lidando com o inimigo, mas com o cidadão.
Quanto à unificação, eu vou dizer que entendo que isso vai causar mais confusão do que nós já temos hoje, porque vai ser uma briga para saber quem deve fazer o quê. Hoje mesmo saiu uma notícia de que um agente do DER, Departamento de Estradas de Rodagem, deu voz de prisão a um agente de trânsito, porque o agente de trânsito o abordou e ele não entendia que o agente do DER tinha atribuição para fazer essa abordagem.
Então, eu vou dizer mais uma vez: o problema, por exemplo, dos grupos de extermínio está muito ligado à falta de estrutura da polícia. Então, antes de ficar rediscutindo o modelo, vamos atuar com o modelo que a gente tem. É preciso dar estrutura para as polícias, fortalecer as polícias, fortalecer os Poderes Públicos, principalmente nos lugares de vulnerabilidade. E é preciso políticas sociais que possam incluir a juventude negra.
Eu acho que era só isso.
O SR. TELMÁRIO MOTA (Bloco Apoio Governo/PDT - RR) - Srª Presidenta.
A SRª PRESIDENTE (Lídice da Mata. Bloco Socialismo e Democracia/PSB - BA) - Pois não.
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O SR. TELMÁRIO MOTA (Bloco Apoio Governo/PDT - RR) - Só para colaborar com as informações e falar para o Lotin e para a Drª Tatiane.
Por exemplo, acho que há cerca de um ano, um capitão ou um major do meu Estado, por uma pressão psicológica, matou a mulher e se matou em seguida. Há cerca de um mês, um tenente da PM lá, também estava numa discussão com a esposa, em casa, estressado; a Polícia Militar veio, numa patrulha, e ele, ali na pressão, matou a esposa e atirou na patrulha. A patrulha teve de matar um tenente. E, ontem, um soldado - vi hoje nas redes sociais - com nível superior, se atirou, matou...
Quer dizer: estão sofrendo um nível de pressão que é preciso passar por um tipo de reparo.
A SRª PRESIDENTE (Lídice da Mata. Bloco Socialismo e Democracia/PSB - BA) - Sem dúvida.
Vou passar, agora, a palavra ao nosso Defensor Público, para que também possa fazer alguns comentários sobre tudo o que foi solicitado nas intervenções.
O SR. ANDRÉ PRAXEDES - Prometo ser breve, Senadora.
Bom, até por uma razão muito simples, no tocante à essência de tudo aquilo que se propugna aqui nesta audiência pública, acredito que o nosso Cabo Elisandro e a Drª Delegada são quem têm as informações para trazer para o debate.
Muito bem, da nossa parte, queria só fazer aqui rápidas reflexões.
No tocante, primeiro, a uma ponderação do nosso convidado da Bahia, que foi abordado pelos dois expositores, essa questão sobre a razão de a sociedade ter um certo rechaço à figura do policial. Por que a morte, por exemplo, de um policial não gera comoção, como foi colocado aqui?
Quando há a morte de determinada pessoa, isso gera comoção. Por exemplo, se for uma pessoa de uma favela, aquilo gera comoção nos grupos de direitos humanos. E, quando há uma morte de um policial, isso não ocorre da mesma forma.
Seria importante uma breve reflexão. Não passa de uma reflexão.
A impressão que temos é de que o problema não está na polícia evidentemente. Claro. Está em parte, sim, mas o problema dessa questão é da sociedade. Nós temos uma sociedade complexa. A sociedade brasileira reconhecidamente é complexa.
Acho que o Cabo Elisandro foi feliz quando colocou essa cultura do umbigo, do individualismo, do egocentrismo. Quem retratou muito bem isso foi o antropólogo Luiz Eduardo Soares, sobre o ônibus 174. Ele coloca, na nossa concepção de forma muito feliz, no final do documentário Ônibus 174, que cabe à polícia o jogo sujo que a sociedade quer se realize. Ela não quer fazê-lo e, então, delega isso às nossas polícias.
Na verdade o problema é este: nós temos aqui uma grande dificuldade de novos paradigmas de uma sociedade. É isso que nós aqui devemos buscar. Enquanto não tivermos uma nova sociedade e não lutarmos por ela... E isso aqui não é tão simples assim. É algo extremamente penoso num país como o Brasil, de sociedade heterogênea como a nossa; isso leva tempo. Não é tão simples assim. Enquanto não tivermos um outro perfil de sociedade, vamos ainda conviver com essas situações, essas anomalias.
Por exemplo, a morte de um policial não gerar comoção. Como não gerar comoção?!
Eu quero dizer que, aos poucos, já vejo alguma pequena luz no final do túnel mudando isso, por exemplo. Talvez, por se reconhecer que o Estado não dá um tratamento tão edificante aos seus agentes de segurança pública... Por exemplo, um tempo atrás, por exemplo, no meu Estado natal, no meu rincão, no Estado do Ceará, por exemplo, já vi o Governador Camilo Santana, por exemplo, indo a um velório de um policial que foi morto em serviço, prestigiando os familiares. Recentemente, no Rio de Janeiro, por exemplo, houve também um problema, um acontecimento lamentável envolvendo um policial, e Senadores desta Casa - parece-me que foi o Senador do PSOL, Chico Alencar, se não me falha a memória...
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A SRª PRESIDENTE (Lídice da Mata. Bloco Socialismo e Democracia/PSB - BA) - Deputado.
O SR. ANDRÉ PRAXEDES - Deputado. Perdão! Ele emprestou absoluta solidariedade à família do policial no Rio de Janeiro, bem como o Deputado Marcelo Freixo. Eu já vejo isso, bem como quem participa das redes sociais.
Então, aos poucos, embora se deseje que isso ocorra mais ainda, já estamos aqui tentando mudar um pouco isso. Mas é um processo muito lento, penso eu.
A outra parte sobre a qual eu gostaria de fazer uma ponderação é esta questão que foi colocada pelo Senador Telmário: a desmilitarização e a unificação da polícia. Quero focar um pouquinho na desmilitarização.
Participei, como representante da Defensoria, há quatro ou cinco meses, de um seminário na UnB. Esse seminário se propunha a discutir a democratização do sistema judiciário. Desse evento participaram várias entidades da sociedade civil. Entre as conclusões que foram tiradas desse seminário, uma delas teria sido a extinção da Polícia Militar. Essa tinha sido uma bandeira levantada. Inclusive, já é algo que se discute. A violência no Brasil é de tal forma alarmante, que as próprias Nações Unidas (ONU) já estão defendendo até a possível extinção da Polícia Militar.
Quero já deixar bem claro que aqui não falamos em nome da Defensoria Pública como instituição. Quero apenas deixar uma ideia que possa provocar uma reflexão.
Vejo que a extinção da Polícia Militar, a princípio, é algo absolutamente utópico na quadra histórica em que vivemos atualmente. Não pode um País como o Brasil, com dimensões continentais, prescindir do aparato policial. É evidente que é preciso repensar a polícia, que é preciso buscarmos uma nova polícia, uma polícia cidadã, uma polícia constitucional, sim! Mas acredito que, no nosso momento histórico, não há como se cogitar a extinção. Essa é a primeira reflexão.
Agora, a desmilitarização, a meu ver, é uma ideia que deve ser, cada vez mais, objeto das nossas reflexões. Por quê? Temos de considerar que a polícia, ao longo de muitos anos, foi uma força auxiliar do Exército nacional e que toda essa cultura de força auxiliar não se dissipa em cinco, seis, sete ou dez anos, ainda que já estejamos com isso desde o encerramento do período militar, desde 1985. Mas isso não acaba com 20 anos. Então, dentro dos órgãos de segurança pública, notadamente nas polícias, há essa cultura militar. Por exemplo, o cidadão vê o cidadão não como cidadão, mas, sim, como, por exemplo, um inimigo. Isso é algo em que, evidentemente, é possível avançarmos.
Desmilitarizar significa o quê? Retirar a condição de Polícia Militar. Continua sendo polícia, mas não militar. Os pilares da hierarquia e da disciplina devem ser mantidos. Quanto a isso, não há problema, porque, em toda estrutura dentro do serviço público, há hierarquia. Na Defensoria, há hierarquia; no Ministério Público, há hierarquia. Por que não haveria de existir hierarquia e também disciplina numa nova polícia?
Agora, tirar o caráter de militar, fazendo com que, por exemplo, a polícia deixe de obedecer ao RDE (Regulamento Disciplinar do Exército), é uma ideia, a meu ver, a se pensar, a se cogitar, dentro da concepção de que estamos precisando de um paradigma de polícia neste País.
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Repito, Senadora: estamos hoje comemorando 27 anos dessa Constituição, e a nossa percepção ainda é a de que as nossas instituições policiais - e aí quero fazer mais ênfase à Polícia Militar e à Polícia Civil -, lamentavelmente, ressalvando as exceções, ainda não se educaram sob a égide da Constituição de 1988. É isso aqui que deveria ser objeto da nossa reflexão.
Sem mais.
Muito obrigado.
A SRª PRESIDENTE (Lídice da Mata. Bloco Socialismo e Democracia/PSB - BA) - Pois não, Cabo Lotin.
O SR. ELISANDRO LOTIN DE SOUZA - É só para poder responder uma questão que fiquei devendo anteriormente. A senhora perguntou para mim o que as polícias têm feito para melhorar a vida do policial, a partir de todo esse conhecimento que se adquiriu, ao longo desse tempo, com estudos etc.
Lamentavelmente, poucas polícias têm feito algo para melhorar a vida do policial. Ao contrário; via de regra, fazem para piorar. Infelizmente, é isso. Aliás, não só polícias, como bombeiros também. Ao invés de estarmos evoluindo... Estamos evoluindo em algumas coisas, mas em outras estamos regredindo. E cito a questão da jornada de trabalho, que é uma luta histórica nossa. Lamentavelmente, em alguns Estados, quando pensamos que vamos conseguir avançar em alguma coisa, retroagimos e voltamos a ser os últimos escravos do Brasil. Infelizmente é o que acontece com os policiais e bombeiros militares hoje, a ponto de juízes dizerem que policial militar e bombeiro militar podem trabalhar à vontade, sem receber hora extra, sem adicional noturno, sem nada, porque está tudo liberado. Policial pode. E, se reclamar, fica preso. E vai ser preso. Então, é essa a questão. Muito pouco tem sido feito.
O que nós temos feito...
(Interrupção do som.)
O SR. ELISANDRO LOTIN DE SOUZA - ... Senadora - e a senhora perguntou isso -, é justamente incitar um debate interno e, a partir desse debate interno, fazer uma tentativa de mudança de cultura.
E aí a Drª Tatiane lembrou, por exemplo, uma pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que constatou que 43% das mulheres da segurança pública são vítimas de assédio moral e sexual. Foi a partir dessa pesquisa e a partir de uma matéria veiculada em uma emissora de televisão, posteriormente, que comprovou isso de fato - que as mulheres da segurança pública são realmente vítimas de assédio moral e sexual -, que nós instigamos o Ministério da Justiça, em uma conversa com a Secretária Regina Miki, a criar um grupo de trabalho para debater a questão do assédio moral e do assédio sexual no tocante ao universo feminino, ao gênero feminino, para que consigamos mudar um pouco essa cultura. E aí, a partir disso, temos feito debates.
Em Santa Catarina, através da Aprasc, fizemos um debate, fizemos um seminário; já foi construído um seminário me parece que no Mato Grosso; em outros Estados, já começam a se movimentar para isso. Então, as entidades, naquilo que lhes é possível, têm tentado fazer um debate na lógica de mudar.
Agora, há muita coisa que não é papel da entidade; é papel do comando, é papel da instituição e é papel do governo do Estado. Regular questão de jornada de trabalho é papel do Estado. E o Estado brasileiro, como bem disse o doutor, é quem mais descumpre legislações no tocante ao trabalhador da segurança pública.
Uma última questão: a extinção da Polícia Militar. Primeiro, que isso é utópico, obviamente. Imaginem, hoje, uma sociedade sem 500, 600 mil homens para prestar segurança. Com todos os problemas que temos, Senador - e nós somos um crítico -, existe muita coisa de bom que nós fizemos, muita coisa de bom que a Polícia Militar faz para a sociedade. Há vários exemplos, todos os dias, de policiais de folga, de férias, de licença, feridos, que abandonam as suas casas e vão trabalhar nas ruas, policiais e bombeiros, e que prestam serviço de qualidade. Os desvios e os erros nós obviamente condenamos e não concordamos com eles, porque partimos do pressuposto de que somos defensores da sociedade, temos que ser amigos da sociedade e precisamos, inclusive, da sociedade para nos ajudar nas mudanças que queremos.
Há uma espécie de demonização da Polícia Militar. E por que há isso? Porque a Polícia Militar é a única entidade visível 24 horas por dia. Na menor cidade que há no Brasil, lá em Roraima, Rondônia, lá no Rio Grande do Sul, há um policial militar ou um bombeiro militar. Nós somos a única entidade estatal, o único órgão do Estado que está presente em todos os Municípios do Brasil, que atende 24 horas por dia. Se alguém pegar o telefone agora e ligar para o 190, em qualquer lugar do Brasil, um policial militar vai atender.
Então, nós temos problemas? Temos. É óbvio que temos. E estamos fazendo de tudo e pedindo o apoio da sociedade civil organizada para corrigir esses problemas.
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Se a 1ª Conseg, realizada em 2009, tivesse sido minimamente aplicada, talvez não estivéssemos fazendo este debate aqui hoje! Minimamente! Criou-se uma expectativa e não se encaminhou nada.
A demonização que existe e que leva ao pensamento de se acabar com a Polícia Militar dá-se por um fato em que reputamos que há alguma coisa de verdade, mas que, em grande parte, é mentira. Há questão da ditadura militar. O relatório da Comissão Nacional da Verdade pede a extinção da Polícia Militar, porque a Polícia Militar perpetrou as torturas. Esperem aí! Os policiais militares e bombeiros militares de hoje não são os do passado! São outros! A questão já começa por aí. Talvez eu seja o mais velho, mas a gurizada nova que entrou na PM hoje nem sabia, nem pensava em ser policial militar na época da ditadura militar. Eles nem tinham nascido, mas pagam o preço por um erro que reputam a nós.
E, se nós formos a fundo nesse debate, também é uma injustiça ou uma meia verdade, para ser justo, dizer que a Polícia Militar é quem perpetrava as torturas. Alguém me ache um quartel onde havia tortura, a não ser os quartéis do Exército, ou as delegacias do DOI-CODI, do DOPS! Quem foi o maior torturador neste Brasil? Foi um policial militar? Não! Foi um delegado da Polícia Civil. São raros os policiais militares. E eu digo policiais militares. Não confundam isso com Exército. Mas são raros os policiais militares que participaram efetivamente disso. Na sua grande maioria, eram delegados da Polícia Civil e até da Polícia Federal - não me lembro de um agora especificamente, mas imagino que haja, pelo contexto da situação. Os locais de tortura eram unidades civis! Não eram unicidade militares, a não ser do Exército. Então, é um tanto quanto injusto reputar essa situação a nós.
Para encerrar efetivamente, Senadora - perdoe-me pela explanação -, os primeiros condenados e perseguidos pela ditadura militar foram policiais militares. Antes de se torturarem outras pessoas, havia policiais militares sendo torturados nos quartéis, porque, antes de se implementar aquele regime ditatorial que veio, que vigeu por 25 anos, 30 anos, a ditadura precisava fazer depuração interna. E os primeiros a serem torturados, presos, processados e humilhados foram policiais militares, e até hoje, inclusive, há policial militar que é considerado desaparecido político e que foi morto e torturado, efetivamente.
Então, antes de qualquer outra coisa para a sociedade, nós fomos torturados. E, se voltarmos mais atrás ainda, vou me lembrar de João Cândido, e aí dá para citar uma série de situações,
A sociedade brasileira, doutor, é militarizada. A sociedade é militarizada! Aliás, o militarismo, na construção desta Nação, sempre teve o seu dedinho, a começar pela proclamação de República. Se nós analisarmos a história, em todo grande evento nacional, nos últimos 200 anos, há um militar lá atrás, dizendo alguma coisa ou mexendo as peças - diretamente, como foi na ditadura, ou indiretamente em outras situações. E isso continua até hoje.
Queria agradecer pelo espaço do debate, Senadora, e pedir desculpas por ter sido talvez até um pouco prolixo em algumas situações, mas é que, para nós, é uma oportunidade rara de podermos nos expressar e colocar essa verdade, essa outra visão, e dizer para a sociedade civil e para a sociedade brasileira como um todo que nós queremos, sim, ser partícipes do processo de construção de um novo modelo de policiamento, um policiamento que insira os policiais e bombeiros na sociedade e que defenda, efetivamente, a segurança pública de todos.
Que a segurança pública não seja apenas algumas palavras na Constituição da República. Que ela não seja só de direito. Que ela seja de direito, de fato e para todos, inclusive para nós, policiais e bombeiros militares.
Muito obrigado.
A SRª PRESIDENTE (Lídice da Mata. Bloco Socialismo e Democracia/PSB - BA) - Obrigada a todos vocês.
Eu queria agradecer também às pessoas que nos acompanharam pelo canal e-Cidadania. Eu vou até ler mais três perguntas aqui; mesmo que vocês não as respondam, pelo adiantado da hora. Elas serão úteis para que vocês tenham ideia sobre o contexto que foi colocado, e nós aqui, pelo menos no que houver de perguntas para mim e para o Senador Telmário, vamos responder pelo endereço eletrônico que recebemos aqui.
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Agradeço a Damião Pereira Educador Físico, que fez diversas perguntas e diversos comentários. Um deles é:
Quero parabenizar o Cabo Elisandro Lotin pela consciência social da realidade da violência que mata mais de 60 mil pessoas no Brasil, excelente consciência, e o parabenizo também pela coragem de vir ai e expor a verdade, o Brasil precisa de mais homens com essa consciência e coragem.
Ele também parabeniza o Defensor Público André Praxedes e pergunta se, na sua visão, se realmente investíssemos numa educação de qualidade, todas essas patologias sociais não seriam resolvidas sem tanta morte e sem tanta violência.
Também nessa mesma direção, ele se dirige a mim e ao Senador Telmário, sobre a importância de uma educação de qualidade proporcionada a todas as crianças brasileiras nesse contexto social.
Muitos outros fizeram perguntas que nós tentaremos passar para os senhores convidados. Algumas perguntas são feitas repetidamente pela mesma pessoa, há perguntas semelhantes, e a mesma pessoa fala sobre diversos assuntos. Então, passaremos uma cópia, para que os senhores respondam aquelas que sentirem que devem responder efetivamente.
Eu queria apenas acrescentar algo, para que os senhores pensem numa dimensão que nós temos trabalhado na Comissão. É repetida essa situação em diversos tipos de depoimento, o que eu pretendo levantar para que vocês reflitam a respeito. Eu não tive oportunidade de ouvir, no início, uma fala sobre isso, mas eu queria insistir nisso.
As diversas falas das organizações populares aqui chegam neste sentido, e as pesquisas demonstram a incidência maior da violência sobre a juventude negra. Ela não se reduz a uma conclusão de que a juventude negra seja a maioria e, por isso, é a maioria a ser atingida. O que as pesquisas demonstram também é que há um crescimento da violência sobre os jovens negros e uma diminuição da violência sobre os jovens brancos. Isso tem que nos fazer tirar algumas conclusões.
Há uma conclusão que já foi aqui ressaltada: somos uma sociedade machista e escravocrata, o que, portanto, se reflete numa postura de racismo institucional que nós precisamos entender para combater. Os jovens que morrem, da polícia, também majoritariamente no Brasil são jovens policiais negros que matam jovens negros, na sua comunidade e na sociedade, porque há um território definido como território suspeito e como território onde o crime se dá. E não são os locais onde moram as parcelas da população com uma renda melhor; são os locais onde moram aqueles que têm uma renda pior. É nessa sociedade em que também está caracterizado um tipo. Há uma decisão e uma definição que se vai formando na população - e eu não sei se chega a ser definido nas polícias - do tipo do suspeito, mas o suspeito é principalmente o jovem negro.
Falando para a população da capital do meu Estado, um jovem branco com droga que é preso em Ondina certamente será caracterizado como usuário e, no máximo, será levado para que seja registrada a sua situação. E, logo depois, será liberado.
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Se um jovem da mesma idade, talvez até frequentando a mesma escola ou a mesma universidade, for negro e morar no subúrbio de Salvador, se ele estiver com a mesma quantidade de droga, ele será preso como traficante e tratado de forma bastante diferente pela nossa população, pela imprensa, pela polícia, por todos.
Lembro também que fizemos um levantamento, Cabo Lotin, da distribuição da polícia na cidade de Salvador, no tempo em que havia aquele formato de módulo policial. Hoje, não se usa mais isso, há apenas as patrulhas. Havia um número muito maior de módulos policiais nas áreas de classe média. Aliás, um dos últimos módulos policiais a ser desativado foi justamente o de Ondina. Quando a polícia decidiu retirar o módulo policial, ela começou a retirá-lo justamente na área popular. E o argumento era o de que ali havia a possibilidade maior de crime contra o policial, que ali se encontrava mais vulnerável. Não sei os dados existentes que demonstram isso, mas muitos desses módulos, em vez de servirem a isso, eram usados justamente para prender e machucar aqueles jovens negros e pobres, que eram presos em alguma manifestação. No início, eram usados para prender e machucar estudantes que se manifestavam na rua contra a ditadura, mas, depois, eram usados no Carnaval, nas festas populares, para exatamente machucar aqueles que eram presos numa briga ou em algo dessa natureza, para a manutenção da ordem pública.
Então, nessa questão, volto a dizer que estamos juntando a situação da pobreza com a juventude. Qualquer segmento de juventude, em princípio, é um segmento que se coloca utopicamente na busca de novas experiências na sociedade e é um segmento vulnerável, em qualquer nível de renda da população. O jovem negro e pobre - e o jovem pobre é, em geral, um jovem negro, porque assim foi organizada a sociedade brasileira - é mais vulnerável. E aí encontramos justamente aqueles que hoje são as principais vítimas. A isso se junta o crime organizado. Não é porque ele é jovem que ele é bandido. Ele é a vítima e é a fração mais vulnerável da população para ser atraída para o crime.
Então, é essa a visão que queremos que a polícia tenha. Muitos que nos escrevem aqui o fazem para dizer: "Tem de punir o jovem, tem de prender o jovem!" E é sempre o jovem que é mais vulnerável.
Então, a nossa experiência aqui faz com que tenhamos, necessariamente, por discutirmos com a juventude, um painel como este, que nos permite ouvir as discussões, o que passa pelo debate de uma nova política de segurança pública, que vocês são responsáveis por trazer aqui. E a trouxeram aqui em grande dimensão. Podemos discutir uma política de enfrentamento às drogas no Brasil - não é o único crime organizado neste País, mas é aquele que mais se relaciona, certamente, com a população de jovens no Brasil - e a forma como esse crime é tratado na sociedade.
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A guerra às drogas é feita pela sociedade e é responsável por vitimar policiais jovens e jovens na sociedade brasileira.
Então, o objetivo nosso é discutir isto: a morte de jovens; de que maneira ela ocorre, como ela ocorre e por que ela ocorre. E aí a ligação que ela tem com a situação das polícias, com a situação de como é tratada essa questão racial no Brasil. Nós não podemos, em momento algum, discutir nada disso sem levar em conta essa situação.
E eu tenho certeza de que, também nas polícias, o policial negro, como é tratado desde o início, é diferenciado, é diferente. E é isso que é preciso que nós possamos ressaltar também neste debate.
Eu concordo em parte apenas quando se diz que não há comoção. Eu vejo a cobertura da imprensa e dificilmente não vejo um registro lamentando a morte de um policial. É claro que, muitas vezes, em uma chacina de dez, vinte jovens em uma comunidade, envolvem-se dez, vinte mães e pais de família de uma só vez. Quando se matam também dez policiais juntos, há comoção de dez, vinte famílias que se manifestam.
O que nós devemos evitar, Cabo Lotin, é justamente, na minha opinião, a ideia de uma população em que seja um contra o outro, a polícia contra a juventude, e principalmente a ideia de que bandido bom seja bandido morto, porque essa ideia é que vitima também a polícia. Na medida em que, na morte de um policial em ação, a polícia entra em uma comunidade para se vingar - como alguém aqui colocou como sendo a política certa -, essa postura também virá por parte dos bandidos, gerando uma violência cuja vítima maior é a população inocente, é a população do entorno. Quando se entra em uma comunidade para fazer a vingança da morte do policial, a bala perdida atinge crianças, adolescentes, mulheres, pessoas que passam na comunidade igualmente. E vice-versa, na mesma medida. Quando reagem os bandidos para matar o policial, ocorre da mesma forma.
Nós não podemos aceitar as coisas que aconteceram, na semana passada, no Rio de Janeiro, quando jovens de classe média invadiram um ônibus, ou pessoas de classe média, independentemente da idade, invadiram um ônibus para localizar jovens com determinadas características para poder bater, para poder... Isso, sim, é a situação do caos na sociedade e que não serve nem à polícia, nem à população, nem à juventude. Nós queremos, portanto, um novo debate, que possa ser capaz de interditar esse tipo de comportamento.
Por isso, uma nova polícia. Não contra a Polícia Militar ou contra a Polícia Civil. Porque, quando nós discutimos com a Polícia Civil, a Polícia Civil diz: "Eu quero uma nova forma de organização da Polícia Civil, em que não apenas os delegados possam exercer a função de comando". Quando se discute com a Polícia Militar, esta também faz uma grande crítica à forma como é exercido o poder dentro da Polícia Militar, pelos coronéis, pelos oficiais, de forma violenta contra os cabos, contra os praças, soldados portanto, e até os sargentos, que são a base primeira da oficialidade da polícia.
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Então, o que é preciso se discutir não é que a polícia não tenha hierarquia, nem tenha algum tipo de controle de disciplina, mas, sim, que ela seja capaz de ser uma polícia cidadã e uma polícia justa com ela própria: que os policiais civis e militares tenham as mesmas oportunidades de crescimento na profissão e com direitos para o exercício correto da sua profissão. Nesse sentido, somos aliados da Polícia Civil e da Polícia Militar.
Eu não assumo a carapuça de não ser aliada da Polícia Militar, porque uma das primeiras greves que apoiei como estudante, ainda no período da ditadura militar, na cidade de Salvador, foi a greve da Polícia Militar, que inclusive, naquele período, deixou mortos, deixou policiais na cadeira de rodas, porque a ditadura não aceitou aquele tipo de manifestação.
E hoje, na democracia, a polícia faz greve. Mas nós precisamos discutir de que forma faz a greve, de que maneira se comporta a polícia na greve. Se não for assim, seremos injustos com a sociedade. Só a polícia? E a polícia não pode fazer greve armada! A polícia não pode fazer greve encapuzada. É preciso discutir uma forma de organização que dê ao policial o mesmo direito que tem um cidadão civil, que também é punido durante o período da greve.
Então, acho que é isto que precisamos numa sociedade: que todos tenham direitos iguais e direitos equilibradamente exercidos, de forma correta.
O Defensor, Dr. André, quer falar.
O SR. ANDRÉ PRAXEDES - É só para concluir sua colocação muito precisa, Senadora, dentro dessa questão que atinge a todos nós, da violência que se abate sobre o País.
Eu me lembro de um episódio que envolve um pouco a nossa instituição Defensoria, que aconteceu no Rio de Janeiro, dentro dessa ideia de intolerância contra os mais pobres, contra negros. Foi o que aconteceu no Rio um mês atrás. A polícia, como regra geral, fazia abordagens em ônibus, em veículos vindos de determinadas localidades do Rio para evitar que esses jovens frequentassem as praias do Rio de Janeiro no domingo, por exemplo.
O que a Defensoria fez lá? Devido à situação absolutamente difícil, que foi a polícia chegar a impedir que um jovem morador de uma comunidade carente do Rio frequentasse a praia, a Defensoria entrou com uma ação na Justiça, e o Judiciário do Rio de Janeiro deu uma liminar, impedindo que a polícia fizesse as abordagens para obstaculizar essas pessoas de irem às praias.
O que aconteceu? Evidentemente, a polícia tinha de cumprir a ordem judicial, e aí, no outro final de semana, aconteceram os arrastões no Rio de Janeiro. Por causa desse episódio, em que houve aquelas cenas horríveis veiculadas pela televisão - praias lotadas, superlotadas, e um ou outro menor, muitos ali assaltando ou roubando -, a Defensoria Pública do Rio de Janeiro pagou um preço muito alto: foi criticada ferozmente, em redes sociais; a defensora pública foi objeto de achaques e de grandes ofensas por parte de redes sociais, em virtude de dizer que prisão neste País deve decorrer ou de flagrante de ato infracional ou por ordem judicial.
Não há hipótese de se impedir quem quer que seja de se movimentar. O Estado que procure dar segurança pública, colocar policiamento ostensivo nas praias, para evitar isso.
Apenas isso.
R
A SRª PRESIDENTE (Lídice da Mata. Bloco Socialismo e Democracia/PSB - BA) - Eu agradeço enormemente por essa contribuição, e voltaremos a buscá-la de alguma forma. Já trouxemos aqui outros policiais, inclusive representantes da Polícia Militar e da Polícia Civil.
Vamos continuar travando esse debate até o encerramento dos nossos trabalhos no nosso relatório, contemplando sugestões a respeito disso.
Nada mais havendo a tratar, eu agradeço a presença de todos e declaro encerrada a presente reunião.
(Iniciada às 20 horas e 12 minutos, a reunião é encerrada às 23 horas e 10 minutos.)