06/08/2019 - 37ª - Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania

Horário

Texto com revisão

R
O SR. PRESIDENTE (Humberto Costa. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - PE) - Bom dia a todos e a todas. Nós queremos dar início à nossa audiência pública, uma audiência pública que nós reputamos como muito importante.
Havendo número regimental, eu declaro aberta a 37ª Reunião, Extraordinária, da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania da 1ª Sessão Legislativa Ordinária da 56ª Legislatura.
A presente reunião destina-se à realização de audiência pública para instruir o PL nº 1.864, de 2019, que altera o Código Penal, o Código de Processo Penal, a Lei de Execução Penal e outras normas legais, a fim de estabelecer medidas contra a corrupção, o crime organizado e os crimes praticados com grave violência à pessoa, conforme os Requerimentos nºs 11, 43 e 44, de 2019, CCJ, de nossa iniciativa.
Esta reunião será realizada em caráter interativo, ou seja, com a possibilidade de participação popular, e, dessa forma, os cidadãos e cidadãs que queiram encaminhar comentários ou perguntas podem fazê-lo por meio do Portal e-Cidadania, no endereço www.senado.leg.br/ecidadania, ou ligando para o número 0800-612211.
São nossos convidados para esta audiência pública o Dr. Lucian Dervan, Professor de Direito Penal, representante do Advogado, ex-Promotor e ex-Juiz Federal do Southern District of New York, John Gleeson.
Geraldo Luiz Mascarenhas Prado, Professor, Mestre e Doutor em Direito pela Universidade Gama Filho.
Edvandir Felix de Paiva, Presidente da Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal (ADPF).
Paulo Afonso Correia Lima Siqueira, Juiz de Direito, representante do Presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros, Jayme Martins de Oliveira Neto.
Simone Schreiber, Desembargadora do TRF da 2ª Região, representante da Associação Juízes para a Democracia.
Rebecca Shaeffer, Advogada Sênior do Fair Trials.
Carol Proner, Doutora em Direito Internacional e Professora Adjunta da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
R
Felipe da Silva Freitas, pesquisador em Criminologia na Universidade Estadual de Feira de Santana.
Rodrigo Baptista Pacheco, Vice-Presidente do Colégio Nacional dos Defensores Públicos Gerais.
Rodolfo Queiroz Laterza, 1º Vice-Presidente Parlamentar da Associação dos Delegados de Polícia do Brasil, representante do Sr. Carlos Eduardo Benito Jorge, Presidente da Adepol.
E ainda o Sr. Luís Carlos Valois, Juiz de Direito, que também vai aqui fazer a sua exposição.
Eu queria convidar, então, para uma primeira rodada aqui, o Dr. Geraldo Prado, o Dr. Edvandir Felix de Paiva, o Dr. Paulo Afonso Siqueira, a Dra. Rebecca Shaeffer, a Dra. Carol Proner e o Dr. Rodrigo Pacheco. (Pausa.)
Bem, nós vamos iniciar os trabalhos. Peço que todos tomem...
Ah, faltou a Dra. Simone Schreiber. Desculpe.
Então, de acordo com o art. 94, §§2º e 3º do Regimento Interno, a Presidência adotará as seguintes normas: os convidados farão suas exposições e em seguida abriremos a fase de interpelação pelas Senadoras e Senadores inscritos. A palavra às Senadoras e aos Senadores será concedida na ordem de inscrição. Os Senadores interpelantes dispõem de três minutos, assegurado igual prazo para a resposta do interpelado, sendo-lhe vedado interpelar os membros da Comissão.
Concedo a palavra, inicialmente, ao Sr. Lucian Dervan, Professor de Direito Penal, representante do Advogado John Gleeson, para sua exposição, por dez minutos. Ten minutes, o.k.? Será que ele está ouvindo? Está?
Vamos contar aqui com a tradução simultânea.
(Intervenção fora do microfone.)
O SR. PRESIDENTE (Humberto Costa. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - PE) - Bem, o tempo é de dez minutos para cada um dos expositores. Quando chegar a nove minutos já do tempo decorrido, soa uma campainha aqui, que é uma indicação de que há um minuto para conclusão, mas não se preocupem. Desde que não extrapole demais, todo mundo vai poder falar o que considerar necessário.
Então, poderíamos começar, Dr. Lucian Dervan?
O SR. LUCIAN DERVAN (Para exposição de convidado. Tradução simultânea.) - Obrigado, Senador e membros da Comissão por me convidarem para falar hoje sobre a legislação.
R
Eu tive oportunidade de rever a língua proposta e agradeço a oportunidade por oferecer a minha manifestação sobre o assunto.
Junto com algumas recomendações sobre mudanças no sistema criminal, essa é uma... No sistema federal americano, por exemplo, mais ou menos 97% de todas as condenações vêm não de um julgamento, mas de uma alegação de culpado; 35% dessas alegações de culpa são resultado de uma oferta de leniência. É importante saber que existe um papel central, que isso nem sempre foi o caso no sistema americano.
Essa barganha também não tem uma história comum no Common Law. Na maior parte da história, o Common Law rejeitou esse tipo de barganha como uma coisa muito coercitiva e um insulto ao sistema de justiça. E essa é uma abordagem ainda comum hoje. Mesmo nos Estados Unidos, existe ainda muito exame feito sobre o uso desse sistema. E isso é bem comum desde 1877, em que isso se distingue em princípio de um julgamento comum.
Essa barganha livre, como é conhecida hoje na América, é bem recente, uma invenção bem recente, relativamente. Foi feita primeiro de uma maneira significativa na época da guerra civil, no final do século XIX. Depois, se tornou uma ferramenta de corrupção, durante o século XX, e eventualmente isso ganhou uso generalizado como uma resposta aos encargos do nosso sistema judicial.
Então, o tempo não me permite entrar em mais detalhes sobre a origem disso. Eu quero referir vocês ao meu artigo de 2012 sobre esse assunto, para mais detalhes para essa discussão. Eu mencionei que isso é um fenômeno moderno que cresceu das sombras que dominavam o sistema de Justiça americano, sem nenhuma regulação ou sem nenhuma vigília.
Eu aplaudo vocês por considerarem muito cuidadosamente o que poderia ser isso, enquanto vocês debatem sobre adotar ou não esse procedimento no Brasil. Apesar de muita rejeição no Common Law e a maneira como isso é descrito, isso cresceu e acabou dominando o sistema de justiça americano. Isso não é uma surpresa, dados os incentivos fortes que emanam desse uso, eventualmente tanto para acusação quanto para defesa e o sistema judicial. E basicamente é um sistema com benefícios mútuos, e isso ajuda a salvar, a economizar tempo e dinheiro para simplesmente ter cooperação e usar para assistir a uma investigação; e finalmente também como uma maneira de aceitar e compensar a aceitação de responsabilidade.
O acusado também pode ganhar significantes benefícios, como economia de custos do tribunal, finanças pessoais que são economizadas, uma diminuição da sentença e talvez até ser liberado de uma retenção prejulgamento. E também sabemos, pela pesquisa psicológica, que isso é importante para ele. Então, isso pode realmente ser uma maneira útil, eficiente, benéfica mutuamente, para mover os casos para frente de uma maneira limpa, pelo sistema de justiça criminal, e também um mecanismo para ganhar cooperação dos acusados.
R
Em adição a isso, nós também devemos reconhecer os perigos inerentes a esse sistema que dá incentivos significantes para reconhecimento de culpa. Esse tipo de eficiência poderia ter algumas desvantagens. Esses riscos não foram notados assim que começou isso nos Estados Unidos, quando esse sistema começou nos Estados Unidos. Isso levou a muito debate até hoje sobre como isso poderia melhorar o sistema americano. E o debate até hoje levou a que a ordem dos advogados americanos suportasse esse sistema. E eu também.
Então, vocês vão ter a oportunidade de aprender sobre o sistema americano e usar essa informação para cuidadosamente considerar como vocês podem prosseguir com esse sistema aqui.
Pelo resto do meu tempo, eu vou falar um pouquinho sobre o problema da inocência. Isso agora está sendo discutido no sistema americano, que as pessoas inocentes podem confessar culpa para crimes que eles não cometeram, e em alguns casos desse tipo, eles também podem dar falso testemunho contra outros, para garantir essa barganha.
Em 2012, eu e minha colega Edkins tentamos adicionar mais claridade a esse fenômeno, ao explorar os efeitos, os aspectos psicológicos disso, e tentando entender melhor como um indivíduo gostaria de fazer isso, com que vontade ele estaria a fim de confessar. Então nós criamos um estudo psicológico que era colocar os estudantes numa posição onde eles eram acusados de trapaça, e eles recebiam um acordo como oferta; e. daqueles acusados de trapaça, metade apenas, realmente tinha trapaceado. Isso é algo que nós fazemos porque, sem que eles soubessem, nós sabíamos que existia alguém culpado na sala com eles. Então alguns deles que se assumiram culpados ou inocentes tinham a oportunidade de fazer um acordo ou conseguir prosseguir para um julgamento normal. Mais detalhes sobre esse estudo estão no artigo de 2013, chamado de O Dilema do Acusado e Inocente, na Revista de Lei e Criminologia.
É importante saber que existem as pessoas que aceitaram o acordo e admitiram cometer a conduta errônea, e 89% aceitaram a oferta. E aqueles que não aceitaram, 56%, queriam falsamente confessar algo que não fizeram em troca dos benefícios da barganha. Esse estudo inovador foi bem replicado várias vezes, por outros laboratórios no mundo inteiro, usando o nosso paradigma para validação.
Isso também surgiu como um problema de preocupação significante, no estudo recente que eu conduzi com a Profa. Edkins. No estudo, nós tínhamos participantes examinando várias situações hipotéticas e decidindo se aceitariam essa oferta ou não. Consistente com essa pesquisa, nós descobrimos que os participantes, tanto os culpados quanto os inocentes, aceitavam essa oferta e aí demonstravam de novo o problema da falsa culpa em troca de incentivos. Além disso, nós descobrimos que os inocentes eram muito mais provavelmente induzidos a admitir culpa, e isso duplicava as falsas alegações de culpa.
Em nosso estudo, como em muitos outros, já estão emanando essas demonstrações de que existe grande força psicológica quando você tem um acusado que encara esse tipo de oferta. Isso pode levar a que inocentes admitam falsamente uma culpa, e nós temos que considerar como adequar isso na legislação corrente. Eu sei que vocês vão pesar esses riscos muito cuidadosamente, porque as pesquisas mostram que isso não é um problema exclusivamente americano.
R
E, no início do meu testemunho... Eu sei que essa barganha é uma invenção americana e começou no início de 1900, mas, como isso cresce no mundo inteiro - isso está crescendo muito rapidamente -, o Prof. Andrew Pardieck, Edkins e eu decidimos estudar esses problemas desse tipo de oferta. E nós lançamos recentemente uma versão revisada e atualizada do nosso estudo, simultaneamente nos Estados Unidos, no Japão e na Coreia do Sul. E enquanto os dados ainda são preliminares e não são finais, nós já podemos ver que esse tipo de oferta, esse problema de inocência é global e deveria ser um problema em todos os países, culturas, em todos os sistemas legais, adotando esse sistema.
Deixa eu compartilhar com vocês apenas alguns resultados preliminares. No novo estudo, os participantes dos Estados Unidos, Japão e Coreia do Sul já foram colocados numa situação onde uma trapaça aconteceu 50% das vezes. Independentemente de culpa, alguns dos visitantes foram acusados e foi oferecido um acordo para eles. O que é importante é que, durante uma parte dessa pesquisa, nós mandávamos os alunos que diziam que eram culpados não admitir a conduta, mas sim prover informação sobre o que eles fizeram. E os estudantes, nessa versão do estudo, também deveriam concordar em prover informação necessária sobre o delito, durante o julgamento de outro estudante. Nós fizemos isso para ter requisitos similares no Japão e em outros países, nas leis desses países. E o que chegou como nosso resultado é que existem problemas com esse processo. Nós descobrimos que os participantes culpados e inocentes estão querendo admitir culpa, e isso já é comum nas três jurisdições. E mais importante: também descobrimos um número significante de participantes inocentes não apenas querendo se implicar falsamente com uma acusação falsa, mas também implicar outros com uma falsa acusação, em troca de uma barganha. E nesse ponto - os dados são preliminares, estão apenas disponíveis sobre duas dessas três jurisdições -, por exemplo, o estudo americano está mostrando que metade dos participantes que falsamente admitem culpas também querem implicar falsamente outros estudantes para o acusador.
Essa pesquisa nos lembra que o fenômeno de falsa culpa tem o potencial não apenas de capturar indivíduos inocentes, respondendo aos benefícios que são oferecidos, mas também tem a possibilidade de corromper realmente a missão de buscar a verdade, do sistema criminal de justiça, criando incentivos para os indivíduos que deem falsa informação para os investigadores, ou para prover falso testemunho contra outras pessoas. Eu disse, no início, que esse sistema também traz muitas oportunidades, mas a minha pesquisa também mostra que com muito risco.
E deixe-me terminar oferecendo alguns pensamentos sobre o potencial do caminho futuro, se o Brasil quiser formalizar esse sistema através da sua legislação. Existe um número de maneiras que você pode fazer isso, em conjunto com essa legislação, para mitigar os riscos que nós identificamos, mas nós mencionamos alguns, no nosso início da conversa, sobre esses aspectos importantes de criar um equilíbrio eficiente e confiável nesse sistema.
A primeira consideração deveria ser feita sobre a detenção antes do julgamento, e esse processo para contar com esse risco também existente.
Em segundo lugar, o aconselhamento é vital para entender que o acusado entenda esses procedimentos e possa entrar nesse sistema de uma maneira deliberada e cuidadosa. Isso inclui um aconselhamento de defesa que pode fazer recomendações para o cliente. Para chegar a esses objetivos, as considerações devem ser dadas com mecanismos que provenham de aconselhamento para os acusados no início do processo.
A terceira consideração deveria ser feita sobre a garantia de que informações relevantes sabidas pela acusação devem ser mitigar a sentença, devem estar disponíveis para o acusado no início, antes de a decisão ser feita de aceitar ou não o acordo. Em quarto lugar, essa consideração deveria ser feita sob a limitação dos tamanhos dos incentivos e as limitações dos incentivos que poderiam ser oferecidos para reduzir as chances de um inocente admitir culpa porque ele pode decidir que seja muito alto em comparação com a sua inocência. E essas limitações deveriam ser considerados também sob o máximo de aconselhamento possível, de orientação possível, incluindo considerações sobre como isso vai ser feito. Os mecanismos existem para fazer com que isso não seja usado para limitar a eficácia desse sistema dentro da legislação corrente.
R
Em quinto lugar, isso deveria ser considerado também o papel do Judiciário nesse processo e como o papel do Judiciário pode ser usado para mitigar e não para exacerbar algumas das preocupações já discutidas hoje. Então, isso incluiria também mandar examinar se a sua evidência para colaboração é válida.
Além da admissão de culpa antes de aceitar um acordo, deveria ser considerado também o papel de saber que tipo de benefício pode ser requerido em torno de uma barganha, em questão de uma barganha de acusação para admitir culpa. Por exemplo, nos Estados Unidos existem maneiras de fazer isso com barganhas livres.
Número sete, deveria ser considerada também a responsabilização e a transparência, que devem ser encorajadas quando você implementa um sistema desse tipo. Isso também inclui requisitos de como deveria ser feito e requisitos de como deveria ser mantida essa informação dentro da Corte e divulgada.
Oito: nós temos que ter práticas de exemplos para os acusadores para garantir que qualquer barganha nova dentro do sistema seja implementada de uma maneira que seja uniforme e que reflita os benefícios e os riscos discutidos aqui hoje.
Finalmente, essas considerações também devem ser dadas para a criação de um processo para deixar coletar dados sobre esses processos, incluindo os tamanhos dos incentivos dados e os pagamentos dados desde o início de qualquer sistema desse tipo. A coleta desses dados é incrivelmente importante tanto para monitorar como também para entender a função de qualquer sistema desse tipo que possa ser adotado.
Eu agradeço pela oportunidade de passar os meus pensamentos sobre esse assunto tão importante. Eu fico feliz de assistir ao Governo brasileiro no futuro, enquanto vocês consideram a adoção dessa legislação e se deveria ser adotada durante o processo de implementação dessa lei.
Eu também fico feliz de responder a qualquer pergunta que vocês possam ter para mim hoje.
Muito obrigado.
O SR. PRESIDENTE (Humberto Costa. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - PE) - O.k., muito obrigado por sua contribuição.
Eu gostaria de perguntar se é possível nos mandar o seu informe, as suas palavras para mandarmos aos outros Senadores.
O SR. LUCIAN DERVAN - Sim, certamente, mandarei com prazer.
O SR. PRESIDENTE (Humberto Costa. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - PE) - O senhor vai ficar aí e esperar pelas perguntas?
O SR. LUCIAN DERVAN - Sim, eu estou disponível para perguntas. Sim, vou ficar.
O SR. PRESIDENTE (Humberto Costa. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - PE) - Agora o Dr. Geraldo Prado.
O SR. GERALDO LUIZ MASCARENHAS PRADO (Para exposição de convidado.) - Meu cordial bom-dia: bom dia a todos!
As palavras iniciais são dirigidas ao Senador Humberto Costa, na pessoa de quem eu saúdo todos os Senadores e Senadoras. Agradeço pelo convite para estar aqui presente.
Cumprimento colegas, professores e professoras, advogados, juízes e juízas que estão aqui presentes; cumprimento o público.
A mim foi dada a tarefa de falar sobre algo que não está propriamente nos projetos que estão em tramitação ou que originariamente foram enviados para tramitação tanto no Senado como na Câmara dos Deputados em relação às mudanças que se pretendem no sistema de Justiça criminal brasileiro.
R
Pediram-me para falar da figura do juiz de garantias, como algo que poderá colaborar no sentido do aperfeiçoamento do sistema de Justiça criminal. Quero e vou falar do juiz de garantias. Penso que os diversos projetos que tramitam simultaneamente na Câmara dos Deputados e no Senado Federal podem se beneficiar de uma reflexão um pouco mais estrutural a respeito dessa figura que demandamos há tanto tempo no Brasil, mas eu gostaria de iniciar, Senador, se me permite, fazendo duas outras considerações.
Uma primeira consideração de caráter mais estrutural. Nós temos basicamente três setores diferentes no sistema de Justiça criminal que precisam funcionar de maneira harmoniosa e articulada. Nós temos uma área que é a área da investigação criminal, é a área em que atuam a polícia e o Ministério Público, mas também - como vimos na exposição que me antecedeu - há um espaço para a atuação defensiva se nos inclinarmos pela adoção de fórmulas negociadas de arbitramento de responsabilidade penal, plea bargain ou outra fórmula semelhante.
Mas a investigação criminal, ela é algo que merece uma atenção especial porque os dois outros setores do funcionamento do sistema de Justiça criminal são bastante dependentes dela. Nós temos o processo em si com a acusação, a defesa, as provas, as decisões, as sentenças e teremos depois disso, na hipótese de uma condenação que transite em julgado, teremos a etapa da execução da pena, a etapa da execução penal. Se nós queremos que a execução penal foque em alguém que seja realmente responsável por uma infração penal, por um crime, por uma infração dessa natureza, nós devemos voltar ao início de tudo e pensar na investigação criminal como o lugar de apuração inicial dos fatos. Não há sistema algum no mundo que funcione bem em termos de Justiça criminal sem uma investigação criminal que seja eficiente. E uma investigação criminal eficiente significa apuração das informações adotando-se meios técnicos, adotando-se recursos que hoje estão disponíveis com maior facilidade do que estavam há 20 anos, do que estavam há 40 anos.
Mas não é apenas isso, não é apenas por causa disso, é também porque eu vi nos projetos que foram enviados ao Congresso e naqueles que já estavam em tramitação no Congresso, eu percebi uma preocupação exagerada, enorme com a decisão: antecipar a decisão, punir desde logo, ainda numa etapa preliminar ou punir no início do processo ou estabelecer uma punição num curto espaço de tempo. E o foco é a decisão, o foco é a maneira como o juiz, os tribunais, o Ministério Público e a defesa, com os defensores públicos e os advogados, irão se portar. Com todo respeito, Senador, isso não nos vai levar a lugar algum, porque, antes da decisão, existe a matéria da decisão sobre o que se decide. Nenhuma decisão é boa se não há uma boa qualidade da informação que é processada.
R
Em termos teóricos, eu lhe diria, Senador, que todo esforço que o Congresso Nacional está fazendo para melhorar o sistema de Justiça criminal brasileiro é um esforço para melhorar a qualidade da decisão, é um esforço para melhorar a qualidade da sentença criminal, mas passa antes por um esforço para melhorar a captura dessas informações, sem que esse processo de captura das informações seja viciado.
Nesse aspecto, eu enfatizo a posição do juiz de garantias como um instrumento de equilíbrio - um instrumento de equilíbrio. O que é esse juiz de garantias para que Senadores e Senadoras possam entender bem? Nós temos hoje um sistema de Justiça criminal brasileiro que se organiza com leis de organização e divisão judiciária dos Estados da Federação, do Distrito Federal, das seções judiciárias federais, mas não distribui funções aos juízes criminais. Um juiz criminal que é demandado logo no início de uma investigação para um afastamento de um sigilo telefônico ou um sigilo de dados pode vir a ser o mesmo criminal que irá posteriormente admitir ou não uma acusação e condenar ou absolver um acusado com as provas que se produzirem no processo.
É perigoso? Eu posso dizer o seguinte, durante muito tempo teorizamos sobre os riscos da concentração de poderes num único personagem, neste juiz, da investigação à sentença. Agora a realidade está nos mostrando o quão isso é perigoso. Estamos vendo simultaneamente tramitar no âmbito do Supremo Tribunal Federal e, em termos de reflexão crítica sobre os processos da Lava Jato, um movimento em que uma figura, um personagem que seja - não importa aí o nome das pessoas, importa a função que elas cumprem -, esse personagem concentra de tal maneira o poder que as informações que são necessárias para um esclarecimento impessoal e objetivo de uma causa criminal acabam correndo o risco de serem sacrificadas no todo ou em parte, a depender daquilo que nós chamamos em teoria de viés. Se o indivíduo que exerce a função judicial atuando na investigação criminal e depois no processo se engana - e aí, Senador, eu confiro o benefício da dúvida a todos os magistrados e magistradas brasileiros de todas as instâncias -, basta que ele se engane à partida que nós teremos o risco de uma decisão criminal absolutamente injusta, com encarceramentos indevidos ou com a absolvição indevida de quem deveria efetivamente ser condenado.
A ideia do juiz de garantias é separar um juiz que vai cuidar de se relacionar com a polícia, com o Ministério Público e a defesa numa etapa preliminar com função estritamente de controle da legalidade dessa investigação, daquele juiz que depois, se houver uma acusação, vai receber as provas que serão produzidas pelas duas partes no processo.
Essa separação já diminui consideravelmente o risco de influência, de tendência, de viés, de enviesamento da fase inicial do processo - que eu considero a investigação criminal - para a fase seguinte. Mas ela também vai atender a uma demanda democrática, Senador, ela vai atender a uma demanda democrática. A área da investigação criminal é a área mais nebulosa, é a menos sensível à transparência que nós temos em todos sistemas de Justiça criminal no mundo. Todos nós sabemos mais ou menos o que acontece no processo porque a televisão vai fazer a cobertura, um estagiário de Direito assiste a uma audiência, etc. Mas, o que acontece na investigação criminal e como acontece na investigação criminal, em geral, está distante dos nossos olhos. Portanto, é a área que, sendo decisiva...
R
(Soa a campainha.)
O SR. GERALDO LUIZ MASCARENHAS PRADO - ... projetando seus efeitos lá na frente para determinar uma sentença de condenação ou absolvição, é a área em que os problemas todos se concentram - e se concentram perigosamente, Senador. Hoje eu diria - peço dois minutinhos para concluir meu raciocínio - que eles se concentram perigosamente num mundo em que há, por exemplo, uma concentração de informações a partir da própria transformação do mundo.
Hoje cada um de nós carrega no bolso um smartphone. Esse smartphone nos localiza permanentemente, 100% do nosso tempo, o tempo todo. Usamos cartões bancários, fazemos movimentações bancárias... Todas essas informações podem ser processadas por recurso de inteligência artificial e podem gerar um perfil de criminoso com independência do crime a ser investigado. Isso é muito grave, os tribunais de direitos humanos em todo o mundo... A Europa, a Corte Interamericana de Direitos Humanos têm dito...
(Soa a campainha.)
O SR. GERALDO LUIZ MASCARENHAS PRADO - ... "Olha, esse conjunto de informações nas mãos de uma só pessoa pode levar ao abuso de poder, à violação da democracia e a crimes de Estado por intermédio da máquina do sistema de Justiça criminal."
Portanto, a separação entre as personagens imporia... Primeiro, afastaria o juiz que vai julgar a causa desse universo, desse ambiente problemático e imporia ao juiz da investigação criminal - e esse é o fim da minha fala -, ao juiz das garantias uma tarefa de fiscalização desse tipo de informação que estará nas mãos da polícia e do Ministério Público. A polícia necessita dessas informações, ela não conseguirá investigar fatos sem ter acesso a informações, mas o excesso dessas informações e a manipulação delas pela polícia e pelo Ministério Público se tornam problemáticos.
Na fala do professor que me antecedeu, questões sobre falsas acusações, sobre falsas assunções de crimes se colocam exatamente por assimetria no exercício do poder punitivo.
(Soa a campainha.)
O SR. GERALDO LUIZ MASCARENHAS PRADO - Um juiz de garantias tende a diminuir o problema, funciona assim nas democracias do mundo todo.
Creio que a contribuição que o Congresso Nacional e o Senado Federal podem dar ao nosso sistema de Justiça poderá ser essa.
Muito obrigado. (Palmas.)
O SR. PRESIDENTE (Humberto Costa. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - PE) - Muito obrigado, Dr. Geraldo Prado.
Informaram-me que o senhor vai precisar daqui a pouco se ausentar. Antecipadamente, agradeço-lhe pela presença, por esse esforço para estar aqui conosco.
Convido o Dr. Paulo Afonso Correia Lima Siqueira, que representa o Presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros, para que ele possa fazer sua explanação.
O SR. PAULO AFONSO CORREIA LIMA SIQUEIRA (Para exposição de convidado.) - Senador, muito obrigado. Agradeço a todos os presentes, em especial ao Presidente Jayme e à Dra. Maria Isabel pela oportunidade que me foi dada de estar aqui hoje.
Inicialmente, eu queria falar aqui a respeito da questão do Poder Judiciário.
O Poder Judiciário, conforme consta na Constituição, é o Poder que está instituído para a garantia dos direitos fundamentais dos cidadãos. Foi-me pedido que falasse sobre a Emenda nº 25, que fala especificamente sobre o plea bargain.
R
O plea bargain é um instituto que para o Brasil se mostra necessário em determinadas situações e, como consta no projeto, seria para crimes de médio potencial ofensivo. Há situações em que se verifica que não há necessidade de uma dilação probatória tão significativa ao ponto de justificar um processo. E, da mesma forma, há interesse por parte do réu de que à questão seja dada logo uma solução.
Sou juiz há 11 anos e basicamente trabalho na área criminal. Podemos ver que o que o Prof. Geraldo Prado falou a respeito da atuação da investigação policial é uma realidade no País, que deve ser realmente trabalhada nessa questão. Inclusive, já há súmula vinculante do Supremo - a Súmula Vinculante nº 14 -, que garante ao advogado o acompanhamento das informações constantes do inquérito policial. O que precisa ser evoluído é tirar aquela figura do inquérito policial como mero procedimento investigativo, um procedimento administrativo, e se garantir uma persecução penal plena ao acusado desde o início da persecução do Estado. Porque, quando a gente verifica a criação do Estado, a gente consegue visualizar muito bem aquela questão de que, quando se cria o Estado, as pessoas abrem mão de parte de suas garantias e de suas liberdades em prol da criação do Estado. E com isso, em relação à Teoria Geracional dos Direitos Fundamentais, muito bem tratada por Karel Vasack e pelo Prof. Paulo Bonavides, a gente vê que quando se trata de liberdade há uma série de imposições que são feitas ao Estado para que se garanta ao réu o devido processo legal.
E quando nós verificamos essa oportunidade do plea bargain associado também à questão do juiz de garantias, é interessante a ideia do juiz de garantias por qual motivo? Justamente pela necessidade. Não que um juiz de garantias vá evitar que ocorra o erro judiciário, porque o duplo grau de jurisdição existe justamente com essa finalidade. Da mesma forma, não há como se dizer que o juiz que tenha contato com a prova inicialmente, ainda na fase inicial do processo, quando da realização das cautelares, aquele acompanhamento feito pelo juiz, de alguma forma, vá contaminar o juiz. Na verdade, seria o ideal, assim como acontece no procedimento do júri... Porque no procedimento do júri nós temos realmente a figura do juiz de garantias: temos o juiz da primeira fase do Tribunal do Júri, que é o juiz que faz a admissibilidade da acusação, e, posteriormente, o processo é submetido ao plenário do júri, o qual, de forma soberana, vem a decidir a causa.
Mas o que importa em relação a essa questão é justamente que quanto ao plea bargain, sendo aceito no Brasil, deve ter uma atuação muito presente do Poder Judiciário, uma vez que o Poder Judiciário faz o controle de ilegalidade e de inconstitucionalidade todos os atos, uma vez em especial, porque todos nós, aqui presentes, somos - na verdade, quase todos - representantes do Estado e convivemos numa República. O pressuposto inicial da República é a possibilidade de correição dos atos praticados pelos agentes públicos. E, em sendo o plea bargain realizado inicialmente entre o Ministério Público e o acusado, sem que haja uma interferência, um controle do juiz, ainda naquele primeiro momento, isso pode realmente trazer algum malefício para o acusado.
R
Como disse o Prof. Lucian, a respeito da questão das pesquisas que foram realizadas, é por isso que é necessário, quando o juiz for aplicar o benefício constante lá do art. 65, inciso III, alínea "d", do Código Penal, que fala especificamente sobre a confissão espontânea, que a confissão se dê de forma circunstanciada, assim como deve ser no plea bargain. Que haja um esposamento sobre as circunstâncias dos fatos e que o juiz possa fazer esse controle, e o juiz não seja um mero chancelador do acordo realizado entre o Ministério Público e o acusado, principalmente porque a característica principal da jurisdição é a definitividade, e a consequência da definitividade se dá pela qualidade especial, que conta com a sentença transitada em julgado, que é a definitividade, que, na verdade, é a materialização da lei no caso concreto.
Então, dessa forma, a atuação do Poder Judiciário é imprescindível durante toda a persecução penal.
Realmente, seria excepcional a possibilidade de aplicação de juízo de garantias, que poderia ser aplicado de uma forma muito simples, sem a necessidade de se criar outros cargos de juízes, outra questão de custos, e seria basicamente que o juiz que decidisse as cautelares antecipatórias da persecução penal decidiria... Um exemplo: na existência de duas varas, uma vara decidiria as cautelares, e a outra vara julgaria o processo.
Realmente, é uma questão interessante, mas isso não quer dizer que o juiz que tenha acesso às cautelares seja um juiz que estaria contaminado de alguma forma e que isso seria um empoderamento muito grande do juiz. Na verdade, nós temos os meios recursais justamente para garantir o duplo grau de jurisdição e a certeza de que a pessoa terá um julgamento justo.
Quando se fala sobre a questão das consequências disso, que seria um aumento do número de encarceramentos, se nós formos analisar as estatísticas, o Brasil não é um país que prende exacerbadamente. O Brasil é um país que prende, e prende mal, porque, se houvesse um sistema prisional em que se aplicasse realmente os preceitos do Direito Penal, que é a prevenção...
R
(Soa a campainha.)
O SR. PAULO AFONSO CORREIA LIMA SIQUEIRA - Já está acabando meu tempo?
(Intervenção fora do microfone.)
O SR. PAULO AFONSO CORREIA LIMA SIQUEIRA - Ah, tá.
A prevenção e a retributividade específica, e houvesse efetivamente uma condição de ressocialização, com certeza o Direito Penal teria, hoje, outro viés. Mas isso não pode ser atribuído ao Poder Judiciário, uma vez que compete ao Executivo realizar a execução da pena de forma material, competindo ao juiz da execução penal fazer o acompanhamento, como um superintendente da execução da pena.
Então, o grande questionamento que deve ser realizado não é afastar o Poder Judiciário do controle das atividades, principalmente da persecução penal.
E, quando se fala especificamente sobre o projeto, da Emenda 25, quando se fala em devido processo legal... E é inerente a toda atividade da persecução penal a necessária existência do devido processo legal. Ainda que haja um plea bargain ou outra, um acordo e não persecução, que essas medidas...
Na vara em que eu trabalho hoje, eu tenho mais de 2 mil processos. Existem processos que são de baixa complexidade e situações que podem ser resolvidas, e isso traria uma maior efetividade ao processo, ao processo como um todo, e garantia da razoável duração do processo, em especial a possibilidade de o juiz se debruçar sobre causas mais complexas e garantir também estrutura aos órgãos de defesa, a fim de que se tenha a plena consciência de que a decisão... Porque não se pode dizer que o processo visa a uma decisão final, e sim garantir que o acusado, seja ele quem for, seja rico, seja pobre, tenha as mesmas garantias defensivas que qualquer acusado merece.
Então, essas eram as minhas considerações.
O SR. PRESIDENTE (Humberto Costa. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - PE) - Muito obrigado, Dr. Paulo Afonso, que aqui representa a Associação dos Magistrados Brasileiros.
Antes de passar a palavra à Dra. Simone Schreiber, eu queria relatar aqui algumas contribuições que nos foram dadas por intermédio do Portal e-Cidadania, e cada um dos expositores, sendo do seu desejo, poderá comentá-las.
Marcelo Brito, do Distrito Federal, afirma que: "Esse pacote anticrime deveria ter tramitação prioritária em ambas as Casas Legislativas".
Bianca Guirelli, do Mato Grosso do Sul: "Qual o posicionamento dos convidados a respeito da legítima defesa de agentes de segurança pública?".
Marcelo Almeida, de Minas Gerais: "Ou se trabalha contra o crime ou se é a favor do crime. Não existe meio-termo nesta área. O isento não passa de lobo em pele de cordeiro".
Luiz Cláudio, do Rio de Janeiro: "O pacote anticrime reduz significativamente o gasto com transferência de detentos e trânsito para fóruns. Esses pontos já o fazem necessário".
Matheus Souza, do Rio Grande do Norte: "A audiência penal sem o contato presencial com o juiz não ofende o princípio da ampla defesa? Não reduz a chance de o juiz ver ilegalidades?".
R
Portanto, essa é a primeira leva de contribuições, e eu passo a palavra à Dra. Simone Schreiber, Desembargadora do TRF da 2ª Região, representante da Associação Juízes para a Democracia.
A SRA. SIMONE SCHREIBER (Para exposição de convidado.) - Bom dia a todos, bom dia, Senador Humberto Costa.
Eu agradeço muito o convite à Associação Juízes para a Democracia. Eu fico muito honrada de estar aqui, representando a Presidente Valdete Souto Severo, nesta audiência pública, para dar alguma contribuição para o debate a respeito do PL 1.864, que é o chamado pacote anticrime, cujo objeto seria estabelecer medidas contra a corrupção, o crime organizado e crimes praticados com grave violência à pessoa.
Eu queria dizer que a Associação Juízes para a Democracia aprovou uma nota técnica sobre a íntegra desse projeto. Ela é ampla, é muito grande, tem 70 páginas, e eu queria me colocar à disposição dos Senadores que quiserem receber. Aliás, nós já faremos isso, enviaremos essa nota técnica aos gabinetes dos Exmos. Senadores, Exmas. Senadoras, para municiar, assim, o debate a respeito do projeto.
São muitos pontos. Eu fiz realmente uma análise ampliada para esta audiência pública. Eu não tinha muita ideia de quanto tempo eu poderia falar. Então, eu vou tentar pontuar algumas questões.
Eu vi que o Dr. Luis Carlos Valois está aqui também. Ele é integrante da AJD, e eu queria dizer que é uma associação que não é corporativa. O objeto é apenas a defesa da democracia, dos direitos humanos, do Estado democrático de direito, da Constituição... Então, eu acredito que algumas coisas na minha fala vão ser complementadas pelo Dr. Luis Carlos, e isso me deixa um pouquinho mais tranquila, porque é muita coisa.
Eu queria apenas dizer, para começar, que todas as medidas ou quase todas as medidas defendidas pelo Ministro da Justiça nesse projeto de lei vão importar em aumento de encarceramento. Eu acho que os Exmos. Senadores e Senadoras têm que ter isso em mente, porque nosso País já tem um grave problema de superencarceramento. Nós somos o quarto país no mundo... E aqui eu até vou ler, para não me perder: o último relatório Depen, atualizado em junho de 2016, aponta para 726.712 presos para 368 mil vagas. Nós temos uma taxa de ocupação de 197%! Então, há, sim, um problema de superencarceramento no País.
Dessas pessoas encarceradas, sendo o quarto país do mundo em termos de números de encarceramento, nós temos 40% de presos provisórios. Quarenta por cento desses 726 mil presos - isso são dados de 2016 - são de presos provisórios, pessoas que ainda não foram julgadas de forma definitiva, que ainda não têm a sua culpa afirmada pelo Estado brasileiro com uma sentença ou um acórdão transitado em julgado.
Então, o Estado não consegue garantir um mínimo de condições humanas, de humanidade, de condições inerentes à própria situação de ser humano dessas pessoas.
Nós vimos, recentemente, uma grave crise no presídio do Pará, em que foram assassinados mais de 50 presos, dentre eles muitos presos provisórios. E, ainda que não fossem, o Estado tem responsabilidade sobre a condição em que estão essas pessoas que estão presas no País.
O aumento do encarceramento e o problema do encarceramento ainda por cima não são uma solução eficiente para resolver o problema da segurança pública no País. O aumento do encarceramento não levou à redução do problema da segurança pública, não nos fez nos sentirmos mais seguros, não diminuiu o número de homicídios, o índice de violência no País. Então, nós temos que repensar e analisar se encarcerar mais pessoas vai implicar uma melhoria ou uma solução para o problema de segurança pública.
R
Eu queria dizer que isso não é um problema só dos juízes, ou só dos membros do Congresso Nacional, ou só do Poder Executivo. É de todos nós. Os três Poderes têm que estar engajados nessa reflexão. Encarcerar mais vai adiantar?
E o Projeto de Lei 1.864, que nós chamamos de pacote anticrime, em todas as medidas pensadas pelo Sr. Ministro da Justiça, todas elas aumentarão imediatamente o número de pessoas encarceradas. Então, a gente tem que refletir um pouco sobre isso.
Embora o pacote fale que é um projeto para diminuir ou para combater a corrupção, principalmente o crime organizado, várias medidas aqui não se aplicam diretamente nem tangencialmente aos crimes de corrupção. São medidas muito mais amplas do que isso.
Eu vou pontuar apenas algumas questões sobre as quais eu acho que os Exmos. Senadores deveriam refletir um pouco.
Então, medidas que vão implicar incremento imediato do encarceramento previstas no PL 1.864.
O projeto introduz um conceito, que é o seguinte: pessoa que se dedique a conduta criminosa habitual ou reiterada ou profissional que integre organização criminosa.
Na nossa lei atual, nós temos algumas categorias, que são: pessoas que têm antecedentes criminais, ou seja, pessoas que têm condenações criminais anteriores e que recebem, por isso, algumas vezes, tratamento mais gravoso da lei penal; pessoas reincidentes... O conceito de reincidência é bem específico: pessoas que, depois de terem sido condenadas por sentença definitiva, transitada em julgado, cometeram crimes. Esse conceito de reincidência também implica tratamento mais gravoso muitas vezes, no Código Penal, só que são conceitos bem definidos.
A jurisprudência do Supremo Tribunal e do Superior Tribunal de Justiça já está consolidada no sentido de que... Uma anotação na folha de antecedentes criminais, pertinente a um inquérito policial, por exemplo. A pessoa foi indiciada na polícia, no inquérito policial. Mas, se essa anotação não levou a uma sentença transitada em julgado condenatória, essa anotação não pode implicar prejuízo para essa pessoa, não pode acabar levando à majoração da pena, por exemplo.
Por que que o Supremo Tribunal Federal afirma isso, e há uma súmula do Superior Tribunal de Justiça que afirma isso também? Porque isso decorre do princípio da presunção de inocência.
O princípio da presunção de inocência, que está na Constituição, afirma que as pessoas que ainda não foram condenadas por sentença transitada em julgado têm que ter o tratamento de inocente. Então, só o fato de uma pessoa ter sido, eventualmente, indiciada por um delegado de polícia ou ter sofrido uma ação penal, ter sido acusada pelo Ministério Público de alguma coisa, se isso não levou a uma condenação e se não levou a uma condenação definitiva, ela não pode ser tratada como culpada e não pode ser prejudicada, digamos assim, na sua situação jurídico-penal, no processo em que ela esteja respondendo.
R
O projeto traz essa figura da conduta criminal habitual, reiterada ou profissional, e essa pessoa que estaria categorizada como uma pessoa que tem uma conduta criminal habitual, reiterada ou profissional sofre vários reveses aqui, ela tem vários tratamentos muito gravosos, só que não há nenhuma tentativa de definir o que é esse conceito.
Então, eu queria apelar aos Exmos. Senadores: se for para aprovar essa categoria... Primeiro, seria necessário nós pensarmos em um conceito do que isso significa que não afrontasse o princípio da presunção de inocência. Por exemplo: pessoas que tenham condenações anteriores transitadas em julgado. Então, a gente poderia extrair daí uma conduta criminosa habitual.
Só quero registrar que o nosso Código diz que cinco anos depois da última condenação a pessoa recupera o seu status de primária, porque a pessoa não pode passar a vida inteira carregando uma pecha de criminosa habitual, porque isso a impediria de retomar a vida e seguir adiante, ressocializar-se, etc. Mas, de qualquer maneira, seria necessária uma definição, porque, da maneira como está, o juiz pode extrair do quê? De anotações na folha de antecedentes, do preconceito, eventualmente, que ele tenha em relação àquela pessoa, de uma estigmatização? É muito grave isso.
E eu vou dizer para V. Exas. todos os efeitos que vai trazer se a pessoa for categorizada como criminosa habitual, reiterada ou profissional.
Então, primeiro ponto - estou pulando um monte de coisas, porque já sei que vou ter pouco tempo: ampliação do regime inicial fechado.
Hoje em dia...
(Soa a campainha.)
A SRA. SIMONE SCHREIBER - Está vendo? Nossa... Nem comecei. Não falei da execução provisória da pena, não falei da prisão preventiva obrigatória...
O SR. PRESIDENTE (Humberto Costa. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - PE. Fora do microfone.) - Mais cinco minutos.
A SRA. SIMONE SCHREIBER - Mais cinco minutos. Vamos lá.
Então, hoje em dia, por exemplo, o regime inicial fechado obrigatório para reincidentes e pessoas condenadas além dos oito anos de prisão vai ampliar isso e vai dizer que a pessoa que tem essa pecha de criminoso habitual vai ter que iniciar o cumprimento da pena obrigatoriamente em regime fechado.
O acordo penal, sobre o qual já vimos as críticas muito pertinentes do professor que nos brindou aí com uma fala, americano, existem vários poréns nessa questão do acordo penal, ele vai permitir que as pessoas sejam presas sem o devido processo legal, sem terem oportunidade de se defender, mas isso é uma outra discussão na qual não vou poder entrar aqui, mas olhem o que está dito no projeto: se a pessoa for criminosa habitual, dedique-se à prática do crime de forma profissional, o acordo vai ter que, necessariamente, prever uma pena em regime fechado! Quer dizer, ela não vai ter nem uma... E é uma categoria absolutamente aberta!
Então, eu novamente apelo aos Exmos. Senadores e Senadoras que reflitam um pouco sobre se é o caso mesmo de manter essa categoria no projeto.
A prisão preventiva obrigatória. Isso vale os meus últimos minutos.
O Supremo Tribunal Federal, o Superior Tribunal de Justiça, durante esses 30 anos de vigência da Constituição Federal de 1988, rechaçou todas as tentativas de inclusão na lei de hipóteses de prisão preventiva obrigatória. Todas. É dito pelo Supremo Tribunal Federal, nos crimes de antidrogas, crimes hediondos, crimes do Estatuto do Desarmamento e outros, que todas as situações devem ser aferidas caso a caso pelo juiz.
Vamos pensar num pequeno traficante, num rapaz jovem, negro, de periferia, que foi pego ali, na boca da comunidade, com droga e que acabou sendo categorizado como traficante. Se nós aceitássemos a prisão preventiva obrigatória, como prevista na Lei Antidrogas, essa pessoa presa em flagrante não teria a oportunidade de liberdade provisória, mas isso retira do juiz a possibilidade de analisar aquela situação e, eventualmente, conceder a ele uma liberdade provisória.
R
Então, na jurisprudência absolutamente consolidada do Supremo Tribunal Federal, ele declarou inconstitucionais todas essas previsões legais e, agora, ela volta ao código dizendo o seguinte: se o agente é reincidente ou se está envolvido na prática habitual, reiterada, profissional de infrações penais ou se integrar organização criminosa, o juiz deve denegar a liberdade provisória, ou seja, uma tentativa de reintroduzir a prisão preventiva obrigatória. Acontece que nós já temos um índice absurdo de presos provisórios no regime, no sistema prisional. E essa questão já foi rechaçada pelo Supremo.
E uma pequena palavra, já que não tocou o sino ainda, a respeito da execução provisória da pena. O projeto só rende homenagens à jurisprudência do Supremo na parte da execução provisória da pena, porque no mais é totalmente desconsiderada a jurisprudência construída pelo Supremo de densificação dos princípios constitucionais que protegem os acusados, e há vários pontos, a gente poderia ficar aqui falando horas sobre isso. Eu estou à disposição para responder eventuais questionamentos.
Agora, sobre a execução provisória da pena, Exmos. Srs. Senadores, Exmas. Sras. Senadoras presentes, eu gostaria de dizer o seguinte: o Supremo Tribunal Federal está bem dividido a respeito desse tema. Sim, atualmente ele afirma que é possível essa execução provisória da pena. Essa matéria ainda não foi decidida de forma definitiva. Então, não sei se é realmente conveniente que o Congresso Nacional insira numa legislação um tema que é constitucional, porque, se o Supremo entender que ela viola a presunção de inocência, todas as tentativas de inclusão de regras... Na verdade, ele procura regrar, introduzir em cada parte do Código regras, dispositivos pertinentes à execução provisória da pena. Isso é uma questão que vai ser examinada agora pelo Supremo Tribunal Federal. Então, talvez fosse o caso de aguardar para ver se o Supremo Tribunal Federal vai manter efetivamente a posição até agora adotada por um escore muito apertado de seis a cinco. Eu não estou dizendo que ele não vai reafirmar isso. Eu até acho que, quando você já tem uma segunda condenação definitiva, você ser encarcerado... Lógico que, quando nós defendermos que, quando a pessoa tem uma segunda condenação no tribunal, talvez seja mais difícil a reversão desta condenação, que é interessante que essa pessoa já inicie o cumprimento da pena...
(Soa a campainha.)
A SRA. SIMONE SCHREIBER - O.k. Eu só quero dizer que nós estaremos arcando com o risco efetivamente de pessoas que eventualmente possam ter as suas condenações anuladas, ou as suas penas reduzidas, ou as suas condenações revertidas acabarem cumprindo penas de forma injusta.
Então, Senador Humberto Costa, eu queria agradecer muito a oportunidade de estar aqui. Estou à disposição para eventuais debates.
E muito obrigada.
O SR. PRESIDENTE (Humberto Costa. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - PE) - Bem, agradeço aqui à Dra. Simone Schreiber, Desembargadora do TRF da 2ª Região, que aqui representou a Associação de Juízes para a Democracia.
E, de imediato, eu convido a Dra. Rebecca Shaeffer, Advogada Sênior do Fair Trials, para que possa também, durante dez minutos, fazer o uso da palavra.
A SRA. REBECCA SHAEFFER (Para exposição de convidado. Tradução simultânea.) - Bom dia!
Obrigada, Presidente, Senador Humberto Costa, e distintos Senadores, por me convidarem para falar hoje. Eu espero que o meu testemunho possa ajudá-los a avaliar a proposta sobre delação premiada.
Eu sou Advogada Sênior numa ONG chamada Fair Trials International, baseada em Londres, Bruxelas e o Washington, onde eu trabalho. E trabalhamos em reformas e procedimentos criminais e de direitos humanos pelo mundo.
R
Estudamos a delação premiada em 90 jurisdições do mundo, documentando a existência de delação premiada e introduzindo dispositivos únicos na proteção aos direitos humanos nos sistemas que encontramos.
Tivemos um informe em 2017 chamado "O Desaparecimento do Julgamento" e trabalhamos com o Departamento de Estado dos Estados Unidos, com a USAID, com a United Nations Office on Drugs and Crime e com outros em situações em que há ameaça aos direitos humanos e à proteção do Estado de direito.
Espero que, refletindo sobre práticas de delação premiada globais, isso possa ajudar a introduzir a delação premiada aprendida com outras jurisdições. Já passamos por esse processo para identificar melhores práticas, para evitar abusos na delação premiada por falta de regulamentação e para submeter isso ao controle judicial.
Nos Estados Unidos, de onde eu sou, somos o maior usuário da delação premiada, e 90% dos nossos casos federais nunca vão a juízo. Isso não é um fenômeno que o Brasil quer emular. Os Estados Unidos pregam uma forma de justiça, mas operamos um sistema judicial baseado em confissão, que não faz parte do sistema democrático, que não tem a ver com isso e que, nas últimas décadas, pode ser ligado ao fenômeno de encarceramento em massa. Como vocês sabem, os Estados Unidos têm a maior taxa de encarceramento do mundo, de mais de 650 por cada cem mil, o que corresponde a um terço no Brasil. Acho que as comunidades minoritárias, especificamente as de latinos e de negros, estão pouco representadas no sistema. Estima-se que um terço dos negros nos Estados Unidos tem uma condenação. Comunidades foram devastadas pelo encarceramento. A unidade familiar, a segurança alimentar, o emprego, o empoderamento, o engajamento cívico, tudo é impactado pelo encarceramento em massa. Essa situação está causando um dano enorme ao nosso País. Precisa-se de reformas.
Esse nível de encarceramento em massa nunca seria possível sem o sistema de delação premiada, de acordo judicial. Há que se vigiarem as investigações criminais. É fácil haver condenações judiciais mesmo com má conduta da polícia, com evidências fracas. Fazer vista grossa a todos os procedimentos judiciais e policiais é muito perigoso. E as condenações e confissões... O sistema judicial baseado em confissões reduz os incentivos e reduz as investigações rigorosas. Eles não precisam fazer isso quando sabem que vão obter uma condenação. Isso se torna forte quando os pobres e as pessoas que não têm acesso à boa defesa se tornam fracos e objeto de condenações. Há uma indução dos réus para se julgarem culpados.
Isso ocorre parcialmente, porque, no caso dos Estados Unidos, a delação premiada se espalhou, houve uma expansão do sistema criminal. Certos comportamentos são criminalizados, são alvo de ações policiais, são processados pelas Cortes penais, gerando doença mental e vários tipos de doenças na sociedade.
R
Mas, com o acordo, é fácil obter condenações. Sem o plea bargain, não poderiam tantas pessoas ser condenadas. Oitenta por cento são crimes menores nessas condenações resultantes do plea bargain. Essas condenações limitam as possibilidades de a sociedade florescer.
O crime não se reduz por conta das condenações. Uma análise feita pela Comissão de Sentenciamento Nacional relatou que esse aumento no encarceramento pode reduzir qualquer benefício econômico que poderia ser ganho com a evitação de julgamento. O plea bargain também pode produzir resultados arbitrários, pessoas encarando acusações similares para penas; pode reduzir a confiança nos diferentes sentenciamentos. Isso pode reduzir a confiança pública no sistema judiciário. A confiança pública também determinou alta taxa de pessoas inocentes, alegando culpa. Dezoito por cento das exonerações nos Estados Unidos saem de alegações de culpa, mas isso é uma estimativa subavaliada.
Porém, nos Estados Unidos, a versão do plea bargain é diferente da mundial. As associações de direitos humanos procuram práticas comparativas para identificar bons exemplos com os quais podemos aprender. Primeiro, é importante aprender que muitas jurisdições continuam a proibir o plea bargain, incluindo a de Portugal. A Corte Constitucional, explicitamente, proibiu o plea bargain, dizendo que é incompatível com a separação dos Poderes e com a presunção de inocência. Muitos países europeus, como Holanda, Dinamarca, Suécia e Suíça, não incluem essa prática como forma de acordo judicial. É entendido nessas jurisdições que esse poder de negociação é diferente nos casos econômicos e criminais. Então, os sistemas e os julgamentos justos pelo mundo são bem diferentes. Por exemplo, na Argentina, no Chile e em outros países, o plea bargain só é permitido em pequenos casos, como aqueles de sentenças de cinco anos ou menos. Outras jurisdições proíbem o plea bargain em casos de jovens ou ofensas menores, ou sensíveis, por exemplo, requerendo a evidência. Nas jurisdições europeias, os réus têm que ter acesso a advogados e total acesso às provas antes de aceitar a negociação de culpado, e a regulação para a alegação de culpado é diferente do que há nos Estados Unidos, em que as pessoas têm condenação 300% maior do que a de outros países.
Esse é um caso muito extremo. Nenhum país se parece com o nosso. A maior parte dos países tem os benefícios da condenação por assunção de culpa. Então, o percentual de 50% de desconto que há na legislação é muito alto para os padrões internacionais, e há o risco de se alegar culpa. Regular o desconto pode evitar haver muitas discricionariedades nesses acordos.
R
Isso tem base na Constituição alemã. O Tribunal Constitucional alemão estabeleceu matéria de verdade, dando a decisão de que tem que haver mais evidência do que apenas a assunção de culpa. Também há uma proibição de colocar pressão no réu para confessar. Particularmente, um desconto muito grande na pena pode afetar a decisão do réu. Também há uma exigência de abrir para a Corte todas as partes da negociação.
Além da Alemanha, esse corpo gostaria de estudar também o caso chileno. A Comissão Constitucional estudou todas as formas de plea bargain mundial e combinou a forma de estabelecer o plea bargain por direito consuetudinário e pela lei civil. Não só nos Estados Unidos, mas em outras jurisdições, vimos que, uma vez que o plea bargain for introduzido, ele pode dominar todo o procedimento jurídico no país. E, depois dessa revolução, o governo novo usa acordo de cooperação para perseguir casos de corrupção e particularmente membros dos regimes anteriores. E, dentro de alguns anos, começará a introduzir plea bargain em todos os sistemas criminais, em todos os casos criminais. Quando o primeiro foi introduzido, em 2009, 12,9% dos casos usaram plea bargain. Cinco anos depois, em 2014, quase 90% foram resolvidos com plea bargain. Há uma propaganda pública com essa mudança, um impacto público, e isso minou a mensagem anticorrupção do governo.
Então, o que podemos aprender com a prática global em relação a essa legislação? Eu revi a tradução da legislação. Eu acho que alguns elementos deveriam ser considerados. Não está claro, de acordo com a minha leitura da legislação, que o réu será informado adequadamente sobre seus direitos e sobre as consequências do que ele negociou, não há garantia explícita, evidência, incluindo que não há limites no tipo de casos em que o plea bargain vai poder ser usado.
Como eu mencionei antes, o desconto da condenação potencial é grande, e pode haver muita discricionariedade, resultados arbitrários, e afetar a Polícia e o Poder Judiciário, que podem evitar procedimentos e evidências que podem ter efeitos no processo. E o direito de recurso como transparência pode também ser afetado pela negociação. Então, ações contra a má conduta policial, a descoberta de provas que podem gerar a inocência, tudo isso pode ser afetado. Há o risco de aumentar a taxa de condenação e de diminuir os incentivos para soltar réus antes do julgamento. Todos esses resultados podem reduzir as abordagens de desencarceramento e a soltura, aumentando os abusos.
R
Acho que o Brasil não deveria adotar o plea bargain. Esse modelo na legislação pode ter ameaças significativas aos direitos humanos e à proteção dos direitos. Deveria ser adotado um piloto. O julgamento justo, fair trial, está à disposição para ajudar nesse piloto ou estudo. Estudos preliminares e recomendações podem ser fornecidos por nós. Forneceremos informação do mundo inteiro para ajudar vocês nessa reforma legislativa.
Obrigada.
O SR. PRESIDENTE (Humberto Costa. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - PE) - Obrigado, Dra. Rebecca Shaeffer. Quero pedir também que ela possa nos enviar o seu relatório, o seu texto.
Passo de imediato a palavra à Dra. Carol Proner por dez minutos.
A SRA. CAROL PRONER (Para exposição de convidado.) - Bom dia, Senadora, Senadores!
Quero cumprimentar, na pessoa do nosso Senador Humberto Costa, todas e todos aqui presentes pela oportunidade da palavra, neste caso saindo um pouco do assunto do Direito Penal e Processual Penal para trabalhar um tema que toca parcialmente o Direito Internacional Público, a ideia da modificação da lei a respeito de organizações criminosas e os meios e métodos de obtenção de provas, formações de equipe para combater determinado tipo de crime, em especial também o crime de corrupção, que é sobre o que mais nos interessa conversar neste momento.
Eu falo também a partir do interesse nacional e da capacidade do Senado Federal e deste Congresso Nacional de se preocuparem e deliberarem também quanto à questão econômica e às questões de interesse nacional que dizem respeito às alterações incutidas nesse projeto e que vão além das flagrantes questões mais graves relacionadas ao Direito Penal e ao processo penal, como já mencionado pelos colegas aqui, professores e advogados aqui presentes, e que são muito pouco tratadas.
Tentei organizar as ideias em forma de um texto um pouco coloquial que está embasado por artigos e estudos que eu vou disponibilizar para as assessorias e para os Srs. Senadores e as Sras. Senadoras.
Eu gostaria de dizer que faço esta fala com o pressuposto do máximo respeito às funções do Poder Legislativo, especialmente à legitimidade do Senado em matéria de administração e planejamento econômico do Estado, por entender que não é possível apartar a análise desse ambicioso projeto de lei que prevê a alteração de 14 diplomas legislativos do contexto de crise e disfuncionalidade dos Poderes que vive o Brasil de 2019.
Talvez, Srs. e Sras. Senadores, o cotidiano não nos permita o tempo e a distância necessários para enxergar a espantosa crise disfuncional que leva o País a ser estudado atualmente do exterior para cá como um case, como um exemplo bastante completo do uso do sistema de justiça por intermédio da permissividade do ativismo e da legitimidade do sistema acusatório autônomo e independente para outras finalidades, um Poder que passa a invadir e sujeitar a competência de outros Poderes.
Esse alerta, eu o faço representando aqui um número bastante importante de profissionais do campo do Direito que, há anos, há alguns anos, vem alertando, vem percebendo que algo está fora dos trilhos da legalidade e do garantismo jurídico, revelando-se, e agora com minúcias e detalhes, um assombroso engenho em prejuízo dos interesses nacionais.
R
É aqui que eu gostaria de enquadrar a análise de um dos aspectos deste pacote ora sob análise desta Comissão de Constituição e Justiça.
Aparentemente, se as promessas de revelações desses jornalistas investigativos prosperarem, acompanhadas do dever do Estado de investigá-las, estamos a poucos passos de descobrir como foram feitos os acordos de cooperação internacional entre as autoridades brasileiras e congêneres internacionais para o chamado combate à corrupção das empresas estatais e nacionais brasileiras. Estamos muito próximos de saber o quanto foi subtraído, surrupiado dos demais Poderes, Executivo e Legislativo, para que os acordos secretos entre a Petrobras e os órgãos públicos e privados de outros países fossem realizados, para entender os acordos de leniência mantidos em segredo bem como a intencionalidade de perseguir estatais, como a Eletrobras, a Petrobras e o BNDES.
Eu não vou fulanizar. Não nos interessa quem; esse não deve ser o foco. Estamos mais preocupados em entender as funções e atribuições de poderes e competências e em acionar os freios e contrapesos democráticos que no momento ainda podem operar para evitar o pior. Somente o Senado Federal, por interesse público, para o bem do patrimônio nacional, onerado gravosamente, pode exigir saber o que foi feito com relação ao chamado Projeto Pontes, para capacitar agentes no combate à corrupção e ao terrorismo, para compreender como ocorreu, em que condições e com quais critérios ocorreu a colaboração dos funcionários públicos do Estado para formar as equipes de investigação que geraram as provas que hoje nutrem os grandes escritórios de advocacia de países estrangeiros contra o Brasil.
Sabemos de alguns casos, mas não de todos. Há muita informação que ainda permanece sob sigilo, uma reserva infundada e agredindo, a priori, os interesses nacionais. Esses acordos que envolvem membros do Ministério Público Federal e, em especial, da Força-Tarefa da Lava Jato, aparentemente, envolvem até mesmo antigos membros da Procuradoria-Geral da República num intercâmbio de documentos que são usados contra a Petrobras, contra o patrimônio da maior estatal brasileira, atingindo o conceito mais primário de interesse nacional. Somente o Congresso pode avaliar se a lei contra práticas corruptas no exterior, de 1997, aprovada pelo Brasil, é cumprida como se deve, se é fiel ao cumprimento desse compromisso legal que, se mal usado, pode, sim, servir de instrumento não de combate à corrupção, mas de estratagema frente a países e economias fragilizadas.
É muito importante que as Sras. Senadoras e os Srs. Senadores prestem atenção à forma como opera a lei ratificada pelo Brasil em 1997, a forma de legislação estadunidense para este País. A lei responsabiliza o todo pela parte, responsabiliza a empresa como um todo pela má conduta de seus funcionários, pela gravidade das consequências desse tipo de raciocínio, e deve ser mediada pelo Ministério da Justiça, definido como autoridade competente, bem como a lei prevê cuidados especiais em cláusulas específicas.
Essa lei de 1997 cria a estratégia do todo pela parte, esta que foi usada pela Operação Lava Jato na base dos demais acordos que hoje vêm sendo paulatinamente descobertos, como é o caso do acordo mãe entre Petrobras, Departamento de Justiça e a Comissão de Valores Mobiliários daquele país, onerando o Brasil em bilhões de dólares, US$3 bilhões aos acionistas que comprovem prejuízos junto à Bolsa de Nova Iorque, R$2,5 bilhões para o famoso Fundo da Lava Jato.
R
Nós traduzimos esse acordo recentemente, ele está à disposição dos senhores para consulta e conferência do que aqui estou afirmando.
Como avaliar o prejuízo à Petrobras, à Eletrobras? Eu poderia falar das empresas nacionais. Como estimar o que perdemos com danos de imagem, dos nomes dessas empresas, de empregos, de viabilidade, de cadeia produtiva? Não por acaso, todas essas empresas representam as políticas de conteúdo nacional que, perfeitas ou não, vinham estruturando a construção civil, o transporte e o sistema de produção de energia do País com critérios de autonomia e soberania.
O que isso tem a ver com o projeto de lei ora analisado? Os senhores vão entender a razão.
Em alguns países, e o Brasil não é um caso isolado, a corrupção passou a ser considerada o mal do século XXI, a justificar todo o experimentalismo jurídico, para justificar a exceção, o combate implacável diante do que nunca foi feito antes, porque, como justificam os procuradores, é um mal maior, sistêmico, transnacional, tão grave como um câncer a corroer a sociedade por dentro, por baixo, invisível, como tanto se justificou na condução dessa megaoperação. E o resultado é, para fins deste projeto de lei, a tentativa de fazer passar, na névoa que tem esse projeto de coisas que não são vistas, que não são faladas, que não são comentadas, competências do Executivo e do Legislativo para o Ministério Público Federal e para a Polícia Federal, para o sistema acusatório, portanto.
Entremeada nesse complexo e ambicioso projeto está a proposta muito pouco comentada, mas que parece ser uma prioridade para os autores do projeto de lei, a de fazer passar algo a contrabando, que autoriza até mesmo as ilegalidades já cometidas.
(Soa a campainha.)
A SRA. CAROL PRONER - Vejamos a proposta de alteração: Capítulo XVIII do projeto de lei, mudança da Lei 12.850, de 2013, que define organização criminosa e dispõe sobre a investigação criminal e os meios de obtenção de provas, etc., e dá outras providências. O art. 3º foi incutido na lei, ele não existia. Não foi uma alteração, portanto, do art. 3º da lei, é uma nova redação, é uma inclusão de conteúdo novo na lei.
Art. 3º Em qualquer fase da investigação ou da persecução penal de infrações penais praticadas por organizações criminosas, [...] serão permitidos, sem prejuízo de outros já previstos em lei, os seguintes meios de obtenção da prova:
.................................................................................................................................. (NR)
Art. 3º-A. O Ministério Público Federal e a Polícia Federal poderão firmar acordos ou convênios com congêneres estrangeiros para constituir equipes conjuntas de investigação para a apuração de crimes de terrorismo, crimes transnacionais ou crimes cometidos por organizações criminosas internacionais.
.....................................................................................................................................................................................................
§2º O compartilhamento ou a transferência de provas no âmbito das equipes conjuntas de investigação devidamente constituídas dispensam formalização ou autenticação especiais, sendo exigida apenas a demonstração da cadeia de custódia.
§3º Para a constituição de equipes conjuntas de investigação, não se exige a previsão em tratados.
§4º A constituição e o funcionamento das equipes conjuntas de investigação serão regulamentadas por meio de decreto. " (NR)
R
Pois bem, diante dessa alteração, caso seja aprovada, o que faremos com as competências do Poder Executivo, o que faremos com as competências do Poder Legislativo, de poder celebrar tratados que oneram o patrimônio nacional?
O Ministério das Relações Exteriores, o Itamaraty, diga-se de passagem, paulatinamente, foi sendo "escanteado" nos debates sobre o combate à corrupção, a partir justamente da formação de equipes especializadas, com treinamento técnico internacional de procuradores.
Vejamos, então, como isso aconteceu nos Estados Unidos - e nós temos a excelente contribuição aqui da Rebecca e do outro professor sobre a situação do plea bargain -, mas também vejamos como foram investigadas as empresas naquele país, como a Enron, e vejamos os resultados dos processos abusivos contra essas empresas, como foram revertidos nas Cortes superiores após demonstrados os abusos dos procuradores daquele país no uso, por exemplo, das delações premiadas.
Eis, portanto, uma surpresa, uma nebulosa ou o que eles chamam de cavalo de troia, que revela, a meu ver, a má-fé da proposta, já que o Ministro da Justiça não fala publicamente sobre esse aspecto nas entrevistas que concede. Há uma má-fé justamente em tentar a posteriori o que não se tem perdão a priori. Seguramente, serão revelados em breve acertos muito pouco soberanistas de nossos procuradores, treinados com a eficácia das equipes estadunidenses. Esse grupo não esconde sequer - falo desse grupo de procuradores daquele país - a gratidão pela colaboração informal que obtiveram de nossos servidores públicos. Sabe-se que a Lava Jato chegou a criar uma pessoa jurídica de direito privado num acordo lateral com a Petrobras, acordo este que foi homologado pela 13ª Vara Federal de Curitiba e que está sob investigação no Ministério Público Federal, na Procuradoria-Geral da República.
O que, em direito internacional, na tradição do nosso direito internacional público, poderia significar uma traição aos interesses nacionais, eles chamam de combate à corrupção transnacional e sistêmica, que exige o aparato de uma lei ampliada.
Imaginemos, por um segundo, hipoteticamente, se outros países soberanos fariam a mesma coisa, se poderia haver procuradores, por exemplo, alemães trazendo aqui informações privilegiadas de eventuais cometimentos de crimes de corrupção por funcionários da Siemens, do Deutsche Bank, do Post, do Telekom ou, então, procuradores franceses trazendo informações sobre a Air France, o Carrefour, a Peugeot. Imaginem se esses procuradores cruzariam as fronteiras e viriam ao nosso sistema de Justiça, ao departamento de Justiça brasileiro, fornecer e entregar, com base nesse projeto de lei, nessa lei - que é uma base também das relações internacionais dos Estados Unidos com demais países -, informações do todo pela parte. Imaginem procuradores de países soberanos...
(Soa a campainha.)
A SRA. CAROL PRONER - ... que oferecem informações privilegiadas ao nosso sistema de Justiça. É difícil imaginar uma situação parelha.
Então, a ressalva é sempre necessária. Com isso, eu já vou para a conclusão, porque o meu tempo já acabou.
É desnecessário dizer - já me antecipo a uma coisa que sempre aparece nos debates - que sou absolutamente a favor de rígidos e criteriosos mecanismos de combate à corrupção, implacáveis contra empresas e funcionários públicos e privados, principalmente em relação ao uso do dinheiro público, o que não significa ser feito dessa forma. Esta não é a única forma de combater a corrupção, violando direitos individuais e garantias públicas e privadas e comprometendo a autonomia e a soberania do País.
R
Eu poderia citar outros graves problemas desse pacote anticrime, como, por exemplo, o Banco Nacional Multibiométrico e as impressões digitais, violando, para quem é inclusive religioso, o direito sagrado a deliberar sobre o seu próprio corpo, suas células, seus genes...
(Soa a campainha.)
A SRA. CAROL PRONER - ... e a definir se aceita ou não ser mapeado para qualquer fim. Eu poderia trabalhar esses outros aspectos que também envolvem o direito internacional, mas não há mais tempo.
Então, eu só quero dizer que essas nebulosas estão incutidas no projeto e se apresentam, a meu ver, disfarçadas, em pontos chocantes já mencionados pelos criminalistas, no pacto de necropolítica, já mencionado por Pedro Serrano e outros. As graves mudanças disfarçadas podem nos levar a um servilismo em relações internacionais, surrupiando as competências do Congresso Nacional em produzir a reflexão sobre compromissos os mais gravosos da história do País, considerando-os isoladamente pelos seus efeitos no desmonte patrimonial estatal.
É escandaloso, é inaceitável, é um insulto aos Srs. Senadores e às Sras. Senadoras, é uma zombaria de poderes num ativismo judicial que invadiu a competência de todo e qualquer Poder soberano deste País.
Muito obrigada. (Palmas.)
O SR. PRESIDENTE (Humberto Costa. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - PE) - Muito obrigado, Dra. Carol Proner.
Eu quero, de imediato, passar a palavra ao Dr. Rodrigo Baptista Pacheco, Vice-Presidente do Colégio Nacional dos Defensores Públicos Gerais.
Peço ao nosso querido Velhinho Trabalhador, Elmano Férrer, que me substitua por dois minutos só.
O SR. RODRIGO BAPTISTA PACHECO (Para exposição de convidado.) - Sr. Senador Humberto Costa, Sras. e Srs. Senadores, senhores presentes, inicialmente, o Colégio Nacional dos Defensores Públicos Gerais agradece a oportunidade democrática aberta pelo Senado para que a Defensoria Pública brasileira possa contribuir para o projeto que modifica profundamente o Código Penal, o Código de Processo Penal e diversas leis especiais.
A Defensoria Pública Estadual atua em grande parte dos processos criminais no Brasil. No Estado do Rio de Janeiro, por exemplo, a Defensoria é responsável por 93% das audiências de custódia, por 80% dos processos criminais e por 95% do atendimento na execução penal. Portanto, este espaço é fundamental para que a instituição, que está todos os dias dentro dos presídios brasileiros, atendendo as pessoas presas e seus familiares, bem como exercendo o direito fundamental à defesa, apresente sua posição sobre parte do projeto.
Destaco que parte do projeto, em especial, as medidas de combate à corrupção e crimes eleitorais, não será abordada em minha fala, pois penso que a Defensoria Estadual não tem significativa atuação nesses casos. Nesta audiência, abordarei três pontos do projeto que a Defensoria vê com extrema preocupação: a ampliação do conceito de legítima defesa, a introdução da justiça negocial no processo penal brasileiro e o uso da videoconferência no interrogatório e na audiência de custódia como regra.
Em relação à legítima defesa, é necessário dizer que se trata do único ponto em que se propõe a flexibilização da legislação penal; em todos os demais pontos, de um modo ou de outro, há um endurecimento da lei penal processual ou da execução penal, seguindo a tendência das últimas três décadas que, comprovadamente, não funcionou. Não estamos, com isso, dizendo que a solução para os graves problemas de segurança pública passa pelo abrandamento da lei, mas destacamos que o momento político brasileiro de intensa polarização e incerteza não recomenda as modificações estruturais que o projeto, caso aprovado, ensejará. Muitas dessas modificações, e no tema da legítima defesa não é diferente, trabalham com conceitos jurídicos indeterminados, abertos demais, o que gera, além de tudo, insegurança jurídica, mas é preciso ter clareza.
R
No único ponto em que a legislação se mostrará mais benéfica, o projeto acaba por ampliar a possibilidade de exercício da violência de Estado. Não ignoramos que a intenção é louvável: conferir maior segurança aos agentes de segurança pública - na prática, aos policiais militares -, mas alertamos que não se devem ignorar também os alarmantes dados sobre a letalidade policial no Brasil. O aumento de 18% na estatística nacional das mortes provocadas por policiais militares está na contramão da redução dos homicídios no geral, que é de 13%, o que revela a gravidade da mudança proposta.
O Relator, Senador Marcos do Val, receia, abro aspas, "que os acréscimos ao art. 25 contenham tão somente um efeito simbólico". Essa gravidade não é meramente simbólica, deixando claro que o simbólico aqui significa a sinalização de que a letalidade policial será incentivada e não inibida. Pasmem: no Estado do Rio de Janeiro, comparando os primeiros semestres de cada ano, a letalidade policial aumentou, nos últimos 6 anos, escandalosos 340%. Saímos, em 2013, de 200 homicídios praticados pelas forças de segurança e chegamos, em 2019, a 881 homicídios.
O art. 23 cria uma causa de diminuição ou de isenção de pena nas causas de exclusão de ilicitude praticadas sob escusável e insuperável, de acordo com o parecer do Relator, medo, surpresa ou violenta emoção. É importante destacar uma consequência pouco debatida. Por ser norma penal mais benéfica, deverá retroagir para atingir casos anteriores, o que poderá dar ensejo a várias revisões criminais com o objetivo de rediscutir condenações já transitadas em julgado. Então, para além do simbólico, tem-se mais um ponto gerador de insegurança jurídica e, no limite, de impunidade.
As principais críticas à redação consistem na utilização de expressões extremamente vagas e relacionadas à intenção do agente, algo subjetivo e de difícil aferição.
Destaco ainda que essas hipóteses também beneficiam os agentes de segurança, algo contraditório na medida em que deles se exige um comportamento e um treinamento oficial que não permitiriam a alegação do medo. O Relator declara expressamente, abro aspas, "que a falta de treinamento adequado dos agentes é só uma das inúmeras mazelas que acometem a segurança pública do País", fecho aspas, e ainda assim sustenta a necessidade de flexibilização da lei vigente.
A Defensoria Pública, enquanto instituição constitucionalmente voltada à promoção de direitos humanos, têm a obrigação de fazer este alerta: a proposta é prejudicial à sociedade.
Ao ampliar a hipótese de legítima defesa para agente de segurança pública, no art. 25, há também uma nítida violação do princípio da igualdade, previsto na Constituição da República, na medida em que se trata de uma norma benéfica voltada para categoria profissional específica. Por outro lado, há incompatibilidade da ampliação da hipótese de legítima defesa com a noção de segurança pública prevista no art. 144 da Constituição, cujo texto prevê expressamente a necessidade de preservação da incolumidade das pessoas.
É fundamental trazer para a discussão a Lei 13.060, que disciplina o uso de instrumentos de menor potencial ofensivo pelos agentes de segurança. O art. 2º proíbe o uso de arma de fogo contra pessoas que não representem risco imediato de morte ou lesão aos agentes de segurança pública ou terceiros, o que é aparentemente contraditório com o estímulo do uso de arma de fogo abrangido pelo projeto.
R
O atual conceito de legítima defesa é suficiente para abranger o uso da força pelos agentes de segurança pública nas hipóteses de atual ou iminente agressão, como revela a experiência de defensores públicos que atuam nos pouquíssimos casos que deságuam nos tribunais do júri brasileiros na defesa de policiais que se envolvem nos chamados autos de resistência. Eu, inclusive, fui titular do Tribunal do Júri de São Gonçalo e lá atuei na defesa de diversos policiais militares envolvidos com os chamados autos de resistência.
Por fim, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, a cuja jurisdição o Brasil se submete por força de tratado internalizado - no caso, Favela Nova Brasília -, determinou ao Brasil a adoção de medidas para que o Rio de Janeiro reduza a letalidade policial. Lembro que é a face mais brutal de um grande problema que é a violência estatal. Recente pesquisa da Defensoria Pública do Rio, lançada na última sexta-feira, sobre os casos de tortura aponta que a cada dia três pessoas presas são torturadas no Estado do Rio de Janeiro.
Considerando que foram apresentadas emendas no sentido da supressão das proposições relacionadas ao tema, opinamos fortemente no sentido de que esta Casa Legislativa sinalize contrariamente ao aumento da violência estatal, para rechaçar o projeto no que diz respeito à ampliação das hipóteses de exclusão de ilicitude e, mais especificamente, da legítima defesa direcionada ao pretenso resguardo da atividade policial, que, como dissemos, restará mais vulnerada e, consequentemente, precarizada.
Em relação ao uso de videoconferência no interrogatório e nas audiências de custódia, o projeto, com o claro objetivo de reduzir custos e talvez atento à crise fiscal brasileira, torna regra a realização do interrogatório e da audiência de custódia por videoconferência.
O Condege, colégio que aqui estou representando, coloca-se contrário ao uso de videoconferência como regra e defende sua excepcionalidade com base em três argumentos principais.
Em primeiro lugar, o projeto é contraditório, tendo em vista a faceta econômica e fiscal, pois haverá um grande aumento de gastos na aquisição de equipamentos para a instalação de videoconferência em todas as comarcas e em todos os presídios, uma despesa que, no atual cenário, alguns tribunais não têm condições de suportar.
Destaco ainda que toda audiência de videoconferência deverá contar com a presença de dois defensores: um no presídio e outro na sala onde a audiência ocorrer. Essa exigência decorre de imposição legal e também com o objetivo de assegurar um depoimento livre de pressões no presídio.
(Soa a campainha.)
O SR. RODRIGO BAPTISTA PACHECO - Ora, se hoje apenas 40% das comarcas contam com Defensoria Pública, como garantir a presença de dois defensores em cada audiência por videoconferência?
A audiência de custódia e o interrogatório presenciais têm como objetivo claro humanizar o processo penal e levar o juiz a se aproximar do caso concreto. A presença física do réu na sala de audiência, sem a mediação de uma tela, permite que o juiz olhe quem está julgando, sinta o cheiro, entenda os dramas e as vulnerabilidades de quem está no cárcere. A tela torna o réu um sujeito distante, uma imagem que reduz o drama do processo penal.
Por fim, a audiência de custódia foi introduzida no Brasil para verificar a necessidade e a legalidade da prisão, mas também para a prevenção e o combate à tortura. Portanto, no caso específico da audiência de custódia, a videoconferência é absolutamente incompatível com sua essência e suas finalidades. No entanto, a própria forma processual do ato exige que o custodiado seja levado à presença da autoridade judicial. Esse é o seu direito subjetivo, uma garantia fundamental de direitos humanos prevista em diplomas internacionais. É evidente que uma apresentação que se promova por intermédio de videoconferência destoa completamente da essência do ato de apresentação, restando completamente solapadas as finalidades do direito convencional em questão, voltadas à promoção da imediação entre a autoridade judicial e a pessoa privada de liberdade.
R
Não podemos deixar de lado a noção de que estão em conflito o direito convencional do custodiado, de caráter supralegal, e o feixe de atos normativos relacionados à forma processual de materialização do ato de apresentação da pessoa privada de liberdade às autoridades judiciais. São normas evidentemente assimétricas, e não há dúvidas de que os tratados internacionais internalizados pelo Direito brasileiro se encontram em patamar hierárquico muito superior ao das normativas pertinentes, ainda que se considere o que dispõe atualmente o Código de Processo Penal.
Enquanto a razão do direito à imediação com a autoridade judicial é a proximidade física e pessoal capaz de proporcionar uma pronta análise da legalidade do auto de prisão em flagrante, a indelegável avaliação de eventuais ofensas à integridade física do preso é importante. A Defensoria só chegou a esse dado alarmante de três presos torturados por dia única e exclusivamente por causa da audiência de custódia presencial.
Numa análise mais acurada da necessidade de adequação da manutenção da custódia prisional cautelar, reservam-se as exceções à adoção das alternativas previstas nas já citadas normativas, dentre as quais não se encontra a possibilidade de realização por videoconferência, pela absoluta incompatibilidade do meio com a lógica do ato da apresentação.
Em relação ao acordo penal, a primeira crítica a apontar é que o projeto é semelhante ao formulado pelo Ministério da Justiça. Ocorre que, pelo que consta, o Ministério da Justiça é formado, em sua maioria, por profissionais com experiência na Justiça Federal, cuja realidade é completamente distinta daquela da Justiça Estadual.
Lembro aqui da famosa campanha das dez medidas de combate à corrupção, cujos formuladores tinham experiência apenas na Justiça Federal. Ocorre que o maior impacto daquela campanha, tal como o presente projeto, se dará nas varas criminais estaduais, apontando que aumentará o número de condenações e, por consequência, do aprisionamento. E é pública e notória a tragédia do sistema prisional brasileiro, com superlotação, chacinas e mortes violentas e não violentas. No Estado do Rio de Janeiro, morre um preso a cada 45 horas; no Estado de São Paulo São Paulo, morre um preso a cada 19 horas. Se isso não é tragédia, não há outra palavra para definir.
Outra crítica importante decorre do natural desequilíbrio de armas entre o Estado e o indivíduo submetido a um processo penal. Peço aos ilustres Senadores que reflitam se há equilíbrio na mesa de negociação entre um membro do Ministério Público e uma pessoa acusada criminalmente, no mais das vezes presa cautelarmente.
Nesse aspecto, impacto nos Estados é muito drástico. A realidade de cada Estado é muito heterogênea, seja no que toca à administração penitenciária ou no que toca à Defensoria Pública.
As renúncias são completamente desequilibradas, pois, enquanto a acusação abre mão apenas da aplicação da pena tal como cominada, o indivíduo é obrigado a renunciar ao direito de produzir prova...
(Soa a campainha.)
R
O SR. RODRIGO BAPTISTA PACHECO - ... a sua pena é reduzida de forma limitada, e o acordo é equiparado a uma sentença penal condenatória com fixação de indenização mínima à vítima. Há uma ilusão de solução consensuada, porque o que há de fato é uma submissão do réu numa política de redução dos danos, semelhante a um contrato de adesão.
Trago à discussão um fenômeno comum no sistema processual brasileiro, que é overcharging. O excesso na acusação é rotineiro na prática forense. Apesar de não haver impeditivo legal, é controversa a possibilidade de rejeição parcial da denúncia, o que legitimaria o excesso da acusação.
Gostaria de citar aqui dados da pesquisa da Defensoria Pública com a Senad. Foram analisadas 2.591 sentenças de tráfico na região metropolitana do Estado do Rio de Janeiro. Em 42% delas, houve denúncia por tráfico e associação; desses 42%, em mais da metade o réu foi absolvido pela associação.
(Soa a campainha.)
O SR. RODRIGO BAPTISTA PACHECO - Já vou pular aqui.
Há outro tema - só para finalizar - relevante para o debate desse ponto do acordo penal que é pauta no Condege. No Brasil, apenas 40% das comarcas contam com defensorias públicas, segundo dados do Mapa da Defensoria elaborado pelo Ipea, o que coloca os acusados submetidos à advocacia dativa, que, talvez no afã de maior produtividade, poderá induzir a celebração de mais acordos penais. Destaco ainda recente matéria do ConJur sobre afastamento de advogado dativo combativo que prejudicava o trabalho do juiz, o que seria impossível com a presença de um defensor público.
Por fim, a doutrina penal ensina que, nos Estados Unidos, 90% dos casos são resolvidos pelo acordo penal. Isso gerou um enorme impacto no acesso à Justiça, pois o processo penal passou a ser elitizado...
(Soa a campainha.)
O SR. RODRIGO BAPTISTA PACHECO - ... enquanto a massa negra e pobre é submetida a condenações sumárias em escala industrial. Segundo estudos, o acordo penal é o grande responsável pelo encarceramento em massa, tornando os Estados Unidos o país mais preso do mundo.
Para concluir, Sr. Senador, Sras. e Srs. Senadores presentes, a Defensoria Pública tem várias outras críticas. Há uma nota técnica elaborada por todos os Defensores Públicos-Gerais do Brasil, mas é importante destacar nossa grande preocupação com a ampliação do conceito de legítima defesa, o acordo penal e, finalmente, o uso como regra da videoconferência para a audiência de custódia.
Muito obrigado. (Palmas.)
O SR. PRESIDENTE (Humberto Costa. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - PE) - Eu agradeço ao Dr. Rodrigo Baptista Pacheco.
Esta Mesa foi concluída agora. Nós vamos agora contar com os outros convidados para este debate. Não sei se, por uma questão de economia de tempo, seria melhor a gente nem mudar a posição... Pode ser?
Eu queria, então, antes de passar a palavra, ler aqui mais algumas contribuições.
Yasmin Viriato, de Pernambuco: "Em números, a mudança terá qual impacto social?"
Thalita da Silva, do Paraná: "Não tem como implantar um sistema igual a esse que é 'copiado' dos EUA em sua maioria, sendo que o país possui cultura e problemas diferentes. Seria mais benéfico aprovar o Código Penal que está no Congresso Nacional, pois está atualizado com os problemas de hoje no País".
José Augusto, do Amazonas: "O Congresso tem a responsabilidade de entregar um diploma efetivo no combate à corrupção em resposta aos anseios e valores da sociedade".
Mariana Santos, de São Paulo: "Excelente colocação da Dra. Simone, uma pena o tempo de debate ser tão limitado". Também acho.
"Esse pacote isenta os policias que matam em serviço, mesmo que seja cometido mediante erro?" É uma interrogação.
R
Então, passo a palavra agora ao Dr. Edvandir Felix de Paiva, Presidente da Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal (ADPF).
O SR. EDVANDIR FELIX DE PAIVA (Para exposição de convidado.) - Boa tarde a todos.
Queria agradecer ao Presidente da Mesa, Senador Humberto Costa, pelo convite para participarmos de um debate. Talvez fossem necessários dias para que pudéssemos analisar todas as questões do chamado pacote anticrime.
A Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal primeiro quer dizer que o pacote anticrime não é uma bala de prata para resolver o problema da segurança pública brasileira. É importante esclarecer a sociedade para que ela não tenha uma perspectiva que não vai ser solucionada, que não vai ser atendida logo depois da aprovação do pacote.
Os problemas do sistema de segurança pública e de Justiça Criminal são muito mais profundos, eles são multifacetados, e é necessário que haja um embate nas várias e várias causas do problema de segurança pública no País - o problema de a população ter pouca esperança ou pouco conceito da atuação policial, da atuação da Justiça e do combate à impunidade no País. Então, é muito bom ficar claro isso.
Nós entendemos, porém, que o chamado pacote anticrime traz algumas contribuições importantes. Ele foi um compilado de situações que foram vistas pelo então Ministro da Justiça na sua labuta profissional e dos profissionais que o cercam. E nós aqui - obviamente, em 10 minutos não daria para abordar todos os temas - escolhemos três aspectos.
O primeiro deles é relativo ao agravamento do cumprimento da pena, o agravamento das condições de cumprimento de pena, de livramento condicional, de saídas temporárias. Eu trabalhei cinco anos no sistema penitenciário, eu o conheço de ver - não o conheço de ouvir, conheço-o de ver -, de ter trabalhado aqui, na Papuda, que ainda é um local menos pior do que outros no País, de ver como é a dinâmica da execução penal no Brasil. E o que a gente vê são cidadãos presos em condições ruins, mas que passam quase toda a sua pena sem nenhuma obrigação. Preso no Brasil não trabalha, preso no Brasil não tem condições de ressocialização. É uma falácia falar em ressocialização neste País, não há política de ressocialização, há uma ou outra tentativa, mas não há uma política forte e bem-dotada de ressocialização. É preciso entender que há indivíduos que não são passíveis de ressocialização, por opção deles ou por condição de vida, mas há muitos que têm essa possibilidade. Mas nós não fazemos essa triagem, nós fazemos de conta que ressocializamos e, depois, por um bom comportamento na cadeia, nós os colocamos na rua, em livramentos condicionais, em temporárias.
R
Eu falo em nome e em memória de dois colegas Delegados de Polícia Federal que faleceram no ano passado dentro de suas casas, junto com suas famílias, porque bandidos estavam em saída temporária e invadiram suas casas. Um, que estava saindo para o trabalho e estava naquele dia identificado como policial, foi morto dentro de sua casa; outro, numa confraternização com suas filhas, no Maranhão, Dr. Davi, foi morto também por uma pessoa que estava em saída do Dia das Mães. Essas pessoas deveriam estar presas.
Então, em nome e em memória desses dois colegas, eu fiz questão de abordar esse tema. É necessário, sim, que o preso cumpra a pena; se não integralmente, que ele só possa ter benefícios a partir de determinado momento do cumprimento, e isso tem que ser lá para frente. O projeto fala em três quintos, o que é melhor do que é hoje. Hoje se cumpre um sexto e, dali a pouco, se começa a colocar preso na rua. A triagem de temporária é apenas por bom comportamento. Então, coloca-se na rua uma pessoa que não está sofrendo nenhum tipo de... Se não está trabalhando na prisão, não está passando por nenhum processo de ressocialização, ele vai colocar a sociedade em risco. Então, esse é um ponto que nós consideramos que é importante que seja analisado pelos Senadores e Deputados para que possa ser melhorado em relação à realidade atual do País.
Eu tenho algumas dúvidas quando se fala de política de desencarceramento, que o Brasil é um país que tem uma das maiores populações carcerárias do mundo. Também é necessário dizer que o Brasil é a quinta população mundial, então tem muitos presos mesmo. Não vejo como solução colocar preso perigoso na rua, preso que tem histórico de matar pessoas, de cometer crimes gravíssimos, não vejo essa solução.
Eu vejo muito aqui falta de investimento, falta de construção de penitenciárias decentes, de condições de trabalho dentro da penitenciária para quem é passível de ressocialização após feita uma triagem. Ocorre que a gente não cuida desse lado, é um lado caro, não cuidamos desse lado. Então vamos fazer de conta que a melhor solução é não encarcerar, é não passar para a sociedade uma intenção do Estado brasileiro de combater a impunidade e separar da sociedade as pessoas que estão lá para causar danos seriíssimos?
O segundo ponto que nós vamos abordar é sobre plea bargain. O plea bargain foi muito bem abordado tanto pelos nossos colaboradores externos quanto pelos juízes. Nós temos uma preocupação muito grande com qualquer sistema que venha dando poder quase que absoluto para um órgão, para que esse órgão faça, junto com uma outra parte que é hipossuficiente... É uma parte que não tem a mesma força do Estado, vão fazer... O Estado vai dizer: "Você resolva com os procuradores, com o Ministério Público, com os acusadores. Resolva com ele lá e traga aqui para mim, juiz, que eu vou homologar." Nós temos uma preocupação muito grande, nós temos uma diferença cultural, uma diferença econômica, temos uma sociedade em grande parte desprotegida, que não pode ficar na mão de um acordo penal.
R
É bom dizer, é bom deixar claro, e eu vou ser um pouquinho mais didático nesse assunto, que vigem no Brasil os princípios da fragmentariedade e da subsidiariedade, que são mundialmente conhecidos no Direito Penal. E fragmentariedade é escolher as condutas mais perniciosas à sociedade, e subsidiariedade é que o Direito Penal deve atuar somente quando os outros ramos do Direito não conseguirem resolver.
E, aí, nós vamos pegar essa parte, que foi considerada mais importante pelo legislador brasileiro - tanto, que o tipificou como crime -, e vamos deixar para que haja uma negociação entre partes, com disponibilizações de direitos, visto que, muitas vezes, o acusado não teria nem condições de paridade de armas para decidir sobre aquilo.
Então, se é necessário que nós tenhamos um processamento mais rápido; se é necessário que nós tenhamos, em alguns casos, uma simplificação do processo, que se faça pela criação de procedimento sumário, que se faça com controle judicial absoluto. Preocupa-me muito a criação do plea bargain no Brasil. E, depois, o plea bargain, porque nós temos uma tradição de ativismo, de suplantar as competências dos outros Poderes, daqui a pouco estaremos fazendo interpretações, invocando institutos externos...
(Soa a campainha.)
O SR. EDVANDIR FELIX DE PAIVA - ... de que o plea bargain pode ser aplicado para qualquer tipo de crime. Daqui a pouco, estar-se-á negociando sobre homicídio, sobre uma corrupção de imensa monta. Isso nos preocupa bastante, porque nós temos tradição de fazer esse tipo de alargamento de interpretação neste País.
Então, nós entendemos que o plea bargain é um erro, porque está sendo recortado lá de um instituto e aplicado na nossa sociedade, que é completamente diferente. A nossa tradição, do nosso Direito, é completamente diferente da de onde estão trazendo, mas, se for aplicado, que pelo menos haja balizas muito, mas muito, rígidas em relação aos limites e ao controle judicial que deve ser feito.
E, por fim, só para encerrar, nós lamentamos profundamente que o pacote anticrime não traga nada sobre como as polícias e sobre como o sistema de investigação vão funcionar no País, porque não bastam só a legislação penal e processual penal: é necessário dar condição às polícias de trabalharem; é necessário que as polícias tenham um certo grau de autonomia para trabalharem. Investigação envolve - principalmente investigação de corrupção - muito o Poder Público, e uma polícia que esteja sob o jugo completo de um governo muitas vezes não consegue fazer o seu trabalho.
(Soa a campainha.)
O SR. EDVANDIR FELIX DE PAIVA - A Polícia Federal faz a sua autonomia na marra, mas ela corre o risco de cortes de recursos a todo momento. Neste momento mesmo, estamos com um corte de recursos e contingenciamento. O nosso diretor-geral não tem mandato, pode ser exonerado a qualquer momento, e em todos os governos se discute se o Ministro da Justiça manda ou não manda na Polícia Federal.
Irrita-nos bastante quando falam: "A Polícia Federal do ministro tal". A Polícia Federal não foi do Ministro Márcio Thomaz Bastos, a Polícia Federal não foi do Ministro Cardoso, não foi do Ministro Jungmann e não é do Ministro Moro. A Polícia Federal é a polícia do Brasil, uma polícia de Estado e republicana, e ela precisa de condições para que possa atuar, independentemente de qual seja a política governamental do momento.
Então, infelizmente, não há previsão de mandato para o diretor da Polícia, não há previsão...
(Soa a campainha.)
O SR. EDVANDIR FELIX DE PAIVA - ... de nenhum nível de autonomia para as polícias dos Estados, que têm a mão do Governador muito forte.
R
Então, sem esse tipo de previsão, nós não teremos, de verdade, condições de combater o crime, e esse assunto deveria estar no pacote anticrime.
A todos muito obrigado e obrigado ao Presidente da Mesa.
O SR. PRESIDENTE (Humberto Costa. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - PE) - Agradeço ao Presidente da Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal, Dr. Edvandir Felix de Paiva, e, de imediato, eu passo a palavra ao Dr. Felipe da Silva Freitas, Pesquisador em Criminologia na Universidade Estadual de Feira de Santana.
O SR. FELIPE FREITAS - Muito obrigado pelo convite.
Eu queria cumprimentar todas e todos na pessoa do Presidente desta reunião, o Senador Humberto Costa, e registrar aqui a presença e cumprimentar o Deputado Paulo Teixeira, que tem sido alguém fundamental na outra Casa do Congresso Nacional para balizar essa discussão.
Eu quero começar esta reflexão afirmando que, do meu ponto de vista, este não é apenas um debate jurídico sobre técnica legislativa, constitucionalidade e redação. Este é um debate sobre as condições de vida e de morte de mulheres e homens brasileiros, cuja própria existência é objeto de dúvida, de escárnio e de relativizações das mais variadas.
Eu falo de mulheres e homens cujo sentido da vida é posto em xeque em afirmações e práticas violentas, como as que temos assistido na voz de altas autoridades da República, que, sem temor ou assombro, declaram que há tipos de pessoas que podem e devem morrer como se fossem baratas. Eu entendo que nós precisamos afirmar que não. Eu não considero que, sob a égide de uma ordem supostamente democrática, alguém deva morrer como se fosse barata, e, portanto, é dever de todas e todos nós repor alguns aspectos centrais da discussão.
E para ilustrar esse tipo de consideração que eu estou fazendo aqui, sobre vida e morte, eu queria ler uma declaração de abril de 2019, da Sra. Luciana Nogueira, companheira do Sr. Evaldo Rosa dos Santos, de 51 anos, músico carioca que, no dia 7 de abril de 2019, foi fuzilado por militares do Exército brasileiro quando trafegava com a sua família na região de Guadalupe, no Rio de Janeiro.
Após ter visto o marido morrer, com mais de 200 disparos oriundos de armas do Exército brasileiro, a Sra. Luciana indagou: "Por que o quartel fez isso, meu Deus? Os vizinhos começaram a socorrer o meu marido, mas eles continuaram atirando. Eu botei a mão na cabeça, eu pedi socorro, eu disse para eles que era meu marido, mas eles não fizeram nada. Ficaram de deboche". Fecho aspas.
É desse deboche que nós estamos tratando; é da mão na cabeça dessa senhora que nós estamos tratando; é das condições e do pedido de socorro das pessoas na sociedade brasileira que esta Comissão está tratando quando reflete sobre o conjunto de medidas indicadas pelo Ministério da Justiça sob a alcunha de pacote anticrime.
Então, para modular a indignação ética necessária para a reflexão sobre esse tema, com a racionalidade exigida para a gente tomar decisão em matéria legislativa e, em especial, em matéria penal, eu gostaria de propor dois eixos de reflexão que podem ajudar a gente a elucidar um pouco o debate sobre o pacote, em especial sobre as alterações referentes a excludente de licitude no que diz respeito à legítima defesa.
As considerações que eu gostaria de aqui apresentar são de ordem política, mas também são de ordem jurídica e administrativa, buscando pensar sobre as questões de por que e como o pacote anticrime vem sendo debatido nas duas Casas do Congresso Nacional e qual o cabimento dessas medidas dentro da ordem constitucional.
R
Do ponto de vista político, o primeiro aspecto que me parece relevante é o modo como essa matéria foi apresentada. Diferentemente de como costumeiramente se faz, quando um pacote legislativo é apresentado pelo Governo Federal, esse pacote não foi debatido no âmbito do Governo - ou está sendo, pelo Congresso Nacional - com a assessoria e a participação de especialistas. Não houve, por parte do Ministério da Justiça, qualquer estudo técnico que fosse trazido a público que embasasse a elaboração dessa proposta.
E, de acordo com a matéria dos Jornalistas Ricardo Baltazar e Fernanda Mena, publicada em 2 de abril de 2019, na Folha de S.Paulo, foram desconsideradas as contribuições dos Conselhos Nacionais, vinculados ao Ministério, e as críticas apresentadas formalmente pelos órgãos vinculados ao Sistema de Justiça Criminal e Segurança Pública.
Na versão do projeto que foi apresentada, não são citados trabalhos científicos, boas práticas... Não há sequer uma exposição de motivos, como costumeiramente existe numa medida cotidianamente apreciada nesta Comissão, por exemplo. Existe lá uma tal justificativa que não tem a forma clássica de uma exposição de motivos que se apresenta em qualquer conjunto de leis dessa iniciativa.
Na versão apreciada, há apenas uma citação de uma aprovação popular, em que a gente não sabe, efetivamente, de que se está falando.
Além disso, o projeto também não tem estudo de impacto orçamentário.
Segundo levantamento realizado pelo Pesquisador Renato Lima, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o custo da implementação desse pacote é da ordem de R$481 bilhões em dez anos. Isso significaria rasgar a Emenda 95, à qual eu tenho absoluta crítica, mas que foi aprovada pelo Congresso Nacional e que instituiu um novo regime fiscal, fixando o teto de gastos. Portanto, se estamos na Comissão de Constituição e Justiça, também é importante que pensemos sobre essa dimensão da inconstitucionalidade desse conjunto de propostas.
Do ponto de vista jurídico, o pacote é frágil em vários aspectos e consiste basicamente no recrudescimento penal e na retirada de garantias individuais de acusados e réus. É isso o centro, o eixo - se é que tem um eixo - que organiza o pacote.
E ele mistura três coisas diferentes: segurança pública, política criminal e combate à corrupção, que traz aí um aspecto de uma política criminal, com dimensões e rebatimentos na política de segurança pública. Ao fim e ao cabo, não resta nada; nada fica de pé.
O tema da investigação policial e o tema dos homicídios são completamente descartados, que são os temas centrais de uma política de prevenção à violência numa sociedade democrática.
E eu vou focar, portanto, nos aspectos da excludente de licitude. Nesse ponto, o projeto não só rasga a lógica do Código Penal, como joga fora o que a gente sabe na Constituição e no Direito brasileiro sobre legítima defesa.
A legítima defesa, no Brasil, foi instituída pelas ideias de uma agressão injusta, de que essa agressão seja atual ou iminente, de que a ação de legítima defesa ocorra para proteger um direito seu ou de outrem - ou seja: o direito à vida, o direito à integridade, etc. - e de que o sujeito aja com moderação, dentro dos meios necessários para garantir a defesa. Não é um tapa e um tiro de canhão. Essa proporcionalidade está no texto da lei e está bem legislada pelo Código Penal brasileiro. E, quando há excesso na justa motivação, existe toda uma modulação que o juiz sabe, pode e deve fazer, para não punir indevidamente e preservar o direito de autodefesa.
R
A lei já prevê, nos parágrafos do art. 24 do Código, os casos que valem para todo cidadão e que enquadram os profissionais de segurança pública. Não há, no texto da lei atual, nenhuma dubiedade ou lacuna que mereçam reparo ou inovação.
A proposta do Ministro Sergio Moro é inócua e desnecessária, mas a segunda parte do inciso I do parágrafo único do art. 25 proposta não é inócua e desnecessária; ela é perigosa, equivocada, genocida, inconstitucional. Vejamos por quê.
A proposta do Ministro Moro... E eu estou assim designando porque, na resposta do Ministério da Justiça aos jornalistas da Folha de S.Paulo, o próprio Ministério da Justiça reconheceu que ela é da lavra do texto do Ministro. Então, se o Ministro quer que assim o seja, assim o façamos.
A proposta do Ministro Moro é que seja considerado legítima defesa o caso em que o agente policial ou de segurança pública que, em conflito armado ou em risco iminente de conflito armado, previne injusta e iminente agressão a direito seu ou de outrem.
O texto confunde tudo aí. Ele confunde atividade policial de prevenção, que é busca pessoal, revista, ronda, patrulha no bairro, com legítima defesa e introduz uma anomalia jurídica...
(Soa a campainha.)
O SR. FELIPE FREITAS - ... chamada de conflito armado, que é expressão contrabandeada do Direito Internacional e que não tem qualquer equivalente em termos de Direito Penal nacional. Está aqui a Profa. Carol, que é especialista em Direito Internacional, e pode nos ajudar. Não tem correspondente.
O que é conflito armado? É um equívoco, uma bravata, uma atecnia, uma aporia, uma inconstitucionalidade. Não há outro modo de a gente descrever que não seja usando as palavras com a clareza que elas têm.
Na prática, a legítima defesa é o que ocorre para repelir uma agressão que ainda não começou, mas que está prestes a ocorrer. E a boa técnica policial é que vai distinguir um caso de ação preventiva, uma abordagem, um assunto de inteligência, uma prevenção, daqueles casos nos quais é legítimo o uso da força. Portanto, o uso da força já está regulado.
E, no caso de haver morte ou agravo à integridade do sujeito decorrente disso, a legislação já prevê.
(Soa a campainha.)
O SR. FELIPE FREITAS - Como diz a Profa. Manuela Abath, professora da Universidade Federal de Pernambuco, "trata-se de uma total descaracterização do próprio instituto da legítima defesa, que deixa de ser uma reação defensiva, para se tornar uma ação preventiva. Em outras palavras, o pacote anticrime não representa reformulação ou aprimoramento do instituto da legítima defesa, mas sim uma autorização para matar". Fecho aspas.
É por esse conjunto de motivos que organizações do movimento negro brasileiro peticionaram à Corte Interamericana de Direitos Humanos, denunciando a gravidade das violações praticadas e solicitando medidas para a garantia dos direitos da população negra pobre e moradora das periferias no Brasil, destacando que não se vislumbra qualquer benefício para a segurança pública com o afastamento do controle jurisdicional, permitindo-se à autoridade policial livrar o acusado segundo o seu próprio arbítrio.
(Soa a campainha.)
O SR. FELIPE FREITAS - Além disso, as regras de legítima defesa terão um efeito altamente erosivo para o funcionamento das delegacias de polícia e para a relação entre Polícia Militar e Polícia Civil e sobre a própria dinâmica das operações policiais, que passarão a ser ainda mais perigosas para os profissionais de segurança pública.
R
É grave que não haja até agora, em tudo o que foi dito pelo Governo desde janeiro, uma única proposta voltada à assistência dos policiais civis e militares, ao apoio e fortalecimento das suas carreiras, à sua formação ou à valorização dos seus saberes profissionais. O que se vê é a lástima de um estímulo à guerra e à violência, que põe em risco valorosos homens e mulheres que se arriscam na rua, com baixas patentes, numa guerra inglória, na qual quem tomba é o Estado democrático de direito.
Na prática, os dados de que dispomos confirmam o aumento tanto da violência policial quanto da letalidade policial.
No primeiro trimestre 2019...
(Soa a campainha.)
O SR. FELIPE FREITAS - ... no Estado do Rio, cresceu o número de mortes em números superiores... Foi o maior crescimento desde 1998, e esse quadro se repete em várias pesquisas.
Eu não vou mais ler, porque já passei do tempo. Posso citar as referências aqui do Prof. Armando Zarcone; da Profa. Poliana Ferreira, minha colega de grupo de pesquisa; do Antropólogo Michel Misse; da Profa. Manuela Abath, que já citei, de Pernambuco. Posso depois enviar essas referências todas a esta Comissão.
O ponto central do pacote, como um todo, e na mudança de regra da legítima defesa, de modo particular, não resolvem os problemas existentes; é apenas um fantasma criado pela intenção beligerante de um gabinete ministerial que se vocaciona a chamar para a guerra e para o confronto.
Que esta Casa contribua para repor a discussão, assim como tem sido feito por parte de valorosos Parlamentares na Câmara dos Deputados, e que a gente possa afirmar que toda vida tem o mesmo valor...
(Soa a campainha.)
O SR. FELIPE FREITAS - ... e que ninguém pode morrer como se fosse barata.
Muito obrigado. (Palmas.)
O SR. PRESIDENTE (Humberto Costa. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - PE) - Muito obrigado, Dr. Felipe da Silva Freitas.
De imediato, eu passo a palavra à Dra. Nathalie Fragoso, advogada e pesquisadora.
A SRA. NATHALIE FRAGOSO (Para exposição de convidado.) - Bom dia. Aliás, boa tarde já.
Eu cumprimento o Senador Humberto Costa e, na sua pessoa, os demais Senadores e Senadoras desta Casa também.
E, para não extrapolar o tempo que me foi atribuído, eu vou tocar em dois grupos de questões que guardam muita proximidade com a minha prática, e o primeiro deles diz respeito ao encarceramento feminino.
Eu gostaria de abordar alguns aspectos que já foram, inclusive, abordados pela Dra. Simone, mas observando os impactos perversos que já se anunciam desde agora. E eu quero retomar, para isso, a história da disputa por marcos específicos, que enderecem às questões experimentados pelas mulheres presas e sua família e seus filhos e que tiveram, enfim, grande participação desta Casa, inclusive.
Em 2016, foi aprovada a Lei 13.257, que é o marco legal da primeira infância. Esse marco legal, fruto da articulação de uma série de atores, se destinava a endereçar cuidados à primeira infância e enxergando, na violação dos direitos das mães em situação vulnerável, uma circunstância de violação de direitos das crianças. Endereçou, portanto, providências à situação de prisão provisória, permitindo a ampla substituição da prisão preventiva pela domiciliar.
Nós começamos a monitorar no CADHu, que é o Coletivo de Advogados de Direitos Humanos, ainda em 2016, a aplicação dessa lei. E, até 2017, o que nós constatamos foi uma desrespeitosa, uma insistente recusa na sua aplicação.
Em 2017, nós apresentamos o HC Coletivo 143.641, que pretendia que essas prisões ilegais fossem todas revogadas ou substituídas pela prisão domiciliar. Em 2018, isso foi concedido.
R
Ainda em 2018, uma Senadora desta Casa, Senadora Simone Tebet, apresentou um projeto de lei para que aquilo que foi decidido no HC entrasse no texto do Código de Processo Penal, ou seja, para que a ampla possibilidade de substituição fosse mantida, mas que o dever de substituição fosse respeitado, fosse observado nos casos em que a Segunda Turma do STF estabeleceu, ou seja, crime sem violência e crimes que não sejam cometidos ou em que mulheres que não foram acusadas de terem cometido crimes contra seus descendentes, filhos, netos.
Isso virou lei, e espanta... Aliás, ainda há mais um passo dessa história, porque, em outubro de 2018, o Ministro Lewandowski, numa decisão monocrática, decidiu também que as mulheres reincidentes, tecnicamente reincidentes, não estavam excluídas da incidência do seu julgamento, não estavam excluídas da incidência da lei, como esclareceu, diante de algumas denúncias, de uma série de resistências à aplicação do que havia sido decidido pela Segunda Turma do STF, que o HC vale para as mulheres cuja condenação tenha transitada em julgado, ou seja, para o todo do processo das mulheres que não tenham sido condenadas definitivamente. Mulheres, portanto, por princípio inocentes, não podem esperar encarceradas pela sua condenação ou absolvição. Isso foi decidido.
Pouquíssimo tempo depois, portanto, em desatenção ao árduo trabalho das organizações, das pesquisadoras, das ativistas que se empenharam na conquista dessas leis; em desrespeito e em desconsideração à decisão judicial que já foi tomada pelo STF; em desrespeito e desconsideração ao que tem sido crescentemente exposto na mídia e nos canais de denúncia, no que diz respeito ao contexto do encarceramento feminino no Brasil, um encarceramento que está relacionado a crimes relacionados a comércio de drogas, com frequência de pequenas substâncias; encarceramento que tem como alvo as mulheres mais vulneráveis, as mulheres negras, as mulheres em circunstâncias de vulnerabilidade econômica; encarceramento que impacta as crianças; encarceramento que coloca todas as gestantes em situação de gestação de risco... E um risco concreto, não é?
Frequentemente se entende, nessa gestação de risco, uma licença que nós tomamos para avançar um argumento, mas não: há dados recentes que foram trazidos aos autos por pesquisadores do Rio de Janeiro, indicando que um quarto das crianças que nascem no cárcere do Rio de Janeiro nascem com sífilis congênita, uma coisa que poderia ser facilmente evitada, por exemplo, com um pré-natal adequado, com assistência, com o não serem expostas a um ambiente de precariedade e violência, como são as mulheres brasileiras.
Diante disso, tão pouco tempo depois, a gente se depara com um projeto de lei que, no art. 233, determina ou pereniza a execução provisória na lei processual penal, por um lado; um projeto de lei que, no art. 310, §2º, restabelece ou tenta restabelecer a proibição da liberdade provisória, ou seja, a obrigação de determinação da prisão preventiva.
Por mais que não se fala em mulheres nesses casos, ameaçam-se essas conquistas, e se ameaçam essas conquistas desrespeitando a literalidade tanto da lei quanto da decisão judicial. Fala-se em criminalidade, envolvimento com atos ilícitos que sejam habituais, retirado o profissional, quando o STF determinou que mulheres reincidentes não estão afastadas da incidência da decisão.
R
Fala-se em habitualidade, reiteração, quando a gente sabe que a maior parte das mulheres estão acusadas. Mas, se consideradas culpadas, estão normalmente em posições de absoluta vulnerabilidade e exercem, sim, aquela atividade de comércio de pequenas substâncias como forma de angariar sustento para si e para os seus, de que realmente dependem as crianças que estão sob sua responsabilidade.
Então, esse projeto, no que diz respeito ao encarceramento feminino, tanto é um claro retrocesso como é um claro desrespeito ao tanto de pesquisa, ao tanto de envolvimento, ao tanto de engajamento que se processou, inclusive, nesta Casa.
E um segundo grupo de questões que eu gostaria de abordar muito brevemente, porque também já foi tocado por vários outros participantes, porque sou também pesquisadora integrante do InternetLab, que é um centro independente de pesquisa em direito e tecnologia, é o referente a esses avanços, esses movimentos do projeto, no sentido da incorporação da tecnologia ao cotidiano na Justiça Criminal. Um desses exemplos está no art. 185, que é o artigo que trata do interrogatório do réu, e o que acontece com esse artigo é que, estabelecendo como possibilidade o uso da videoconferência, nos casos em que haja a possibilidade de prevenção de custos, em que haja a possibilidade de poupar custos; ao acrescentar a audiência de custódia como um dos atos que podem ser também realizados por videoconferência; ao determinar que presos, em comarcas diferentes daquelas em que estão sendo julgados, necessariamente serão julgados, serão interrogados por essa maneira, essa alteração generaliza o uso da videoconferência, e o faz presumindo - consta ali, das motivações - que não há prejuízo para o réu, quando há prejuízo para o réu, diagnosticado em outras jurisdições e em pesquisas que se dedicaram a perscrutar esses impactos.
Em países como a Alemanha, por exemplo, excepcionalmente é possível que se use videoconferência no processo penal, mas quando há uma testemunha que está em situação de vulnerabilidade e de risco; quando há um perito que não possa participar presencialmente. É absolutamente excepcional, precisa ser justificada, porque se reconhece que há um claro prejuízo ao exercício de garantias.
A pessoa acusada, o réu é crescentemente alienado do processo penal, por um lado; por outro, enfrenta uma série de dificuldades ao exercício de garantias muito básicas: a fala, o compartilhamento de questões, de comentários com seu advogado fica prejudicado; a possibilidade de confrontação de testemunhas, de acareação, fica prejudicada; a própria percepção do julgador acerca do réu é também prejudicada, porque é dificultada ali a percepção de sinais não verbais... A posição da câmera, alguns estudos indicam, pode determinar se um réu é observado de maneira mais ou menos intimidadora. Há uma série de questões que são negligenciadas. E essa é uma negociação, essa é uma alteração que parece banal, parece uma adoção de tecnologia, no sentido de otimizar o funcionamento da Justiça Criminal, quando há claros prejuízos que mereceriam ser considerados, para que esse tópico fosse endereçado, para que esse tópico fosse tratado no projeto.
Já foi também observado que, no caso da audiência de custódia, o uso da videoconferência infirma o propósito do ato. Se o objetivo é verificar a regularidade, a legalidade da prisão em flagrante; se o objetivo é verificar...
(Soa a campainha.)
A SRA. NATHALIE FRAGOSO - ... se houve ou não violência, retirar a pessoa, o corpo dela, de onde eventualmente estarão inscritos os sinais dessa violência, é fragilizar o ato, é fragilizar o procedimento. Esse é um dos pontos.
Outro ponto absolutamente importante, que também diz respeito a esse movimento de absorção dessas facilidades tecnológicas, diz respeito aos bancos de dados, tanto de perfis genéticos quanto de perfis multibiométricos, e eu começo pelo banco de dados de perfis genéticos, porque há ali um esforço de expansão do número de afetados; há uma expansão do tempo dentro do qual esses dados serão mantidos; a coleta de dados... Perde completamente referência a relação com a gravidade do crime ou a natureza do crime. Se a gente fala em crimes com violência, crimes hediondos, qualquer crime doloso passa a ensejar a coleta compulsória de material genético.
R
E também, para endereçar esse ponto...
(Soa a campainha.)
A SRA. NATHALIE FRAGOSO - ... eu gostaria de abordar algumas outras experiências em outras jurisdições, porque há outras jurisdições que coletam, de fato, esse tipo de material, mas inserem, na lei processual penal - e aqui eu retomo novamente o caso da Alemanha -, que informações genéticas podem ser armazenadas e em que casos, porque obrigam que aquele que pede e aquele que determina justifiquem por que é que a coleta de dados genéticos daquela pessoa se justifica, por que que é necessária, por que que é adequada, por que que é proporcional. Afinal de contas, trata-se de uma restrição sensível da privacidade, trata-se de dados sensíveis que estarão ali armazenados pela autoridade, pelo Estado. Esse é um ponto, e sujeito, é claro, a uma série de questões.
É interessante talvez mencionar que há algumas regulações para além da LEP. Hoje em dia, já há a Lei de Identificação, que decorre de resoluções que regulam a rede nacional de bancos de perfis genéticos.
(Soa a campainha.)
A SRA. NATHALIE FRAGOSO - Eu já vou interromper.
Mas essas garantias, essas resoluções que até estabelecem que informações, como serão guardadas, quem estabelece, quem observa, quem monitora, constam de instrumentos infralegais, e não podem constar. São frágeis, especialmente diante de uma tal alteração.
Enfim, fico à disposição para tratar dos bancos biométricos e da Lei de Interceptações, logo em seguida, na fase das perguntas.
Mas eu gostaria de dirigir, talvez, um último apelo a esta Casa, especialmente nesse último ponto, no que diz respeito à absorção dessas novas tecnologias. Há um risco grande de erosão de garantias. E, se não for para estabelecer garantias, se não for para fincar o processo penal em seus limites, que respeitem o estado de inocência, que respeitem os direitos da pessoa acusada, para que, então, a atividade legislativa? Se não é a intenção conter arbítrio com a palavra, ainda que soe ingênuo, para que debater a lei? Então, eu acho que, se é esse o propósito que anima esta Casa, se é essa a incumbência que a Constituição deposita em V. Exas., que se atentem para isso, porque há muito risco. Há uma série de questões que precisam ser adequadamente ponderadas.
Obrigada. (Palmas.)
O SR. PRESIDENTE (Humberto Costa. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - PE) - Muito obrigado, Dra. Nathalie Fragoso.
De imediato, eu passo a palavra ao Sr. Douglas Elias Belchior, que é integrante do movimento Uneafro.
O SR. DOUGLAS ELIAS BELCHIOR (Para exposição de convidado.) - Boa tarde a todas e todos. É uma satisfação estar aqui com vocês.
Obrigado pelo convite.
Eu cumprimento a todos, na figura do nosso Senador Humberto Costa.
Eu sou professor de História e eu milito no movimento negro desde adolescente. E, há muitos anos, há 20 anos, eu me dedico à educação popular organizada em periferias em São Paulo e, depois de alguns anos, pelo Brasil afora, através de um trabalho, de um movimento chamado Uneafro, ao qual eu me dedico. E passo para vocês, aqui, um material, para que vocês conheçam, por favor, mais de perto.
Em algum momento dessa trajetória, ao invés de dedicar todo o tempo à prática da educação como um instrumento de construção de uma sociedade mais justa, como a gente acredita... Nós, educadores, aqueles que optam por essa profissão por vocação, como foi meu caso, acreditam nisso.
R
Mas, em algum momento dessa trajetória, o tempo passou a ser dividido também com um dado cruel da realidade, que é o fato de que, nos lugares mais pobres deste País, não por acaso ocupado majoritariamente por pessoas negras, onde o Estado não está presente a partir dos direitos garantidos na Constituição, entre eles a educação, mora um Estado de violência profunda, de estupro, de negação de direitos, sobretudo a partir da prática dos agentes do Estado, da sua polícia.
Em algum momento dessa trajetória, um trabalho ligado ao movimento negro, que tinha como função apenas ser propositivo de uma ação, passou a ser também denunciante de uma realidade, que é a realidade histórica do genocídio negro brasileiro.
Em 1997, ocupava uma cadeira nesta Casa, do Senado Federal, um herói brasileiro chamado Abdias do Nascimento, que discursou o seguinte parágrafo:
A polícia substitui capitães do mato, enquanto o chicote e o pelourinho dão vez ao pau de arara e à cadeira do dragão [fazendo analogia ao que historicamente se consolidou como um dos piores momentos da história brasileira, a ditadura militar, não muito diferente do corriqueiro e normal arbítrio que a gente encontra todos os dias neste País]. Mas o espírito que preside [apesar dessa oscilação] esse processo é exatamente o mesmo: manter os negros - e, por extensão, os pobres em geral - no seu lugar, ou seja, nas periferias [nos lugares e marginalização], à margem do processo de desenvolvimento do País, sem condições de reivindicar um quinhão mais justo do bolo nacional.
São palavras de Abdias do Nascimento, há mais de 20 anos aqui, no Senado Federal.
Eu estou usando as palavras do Abdias sobre a negação da existência e da participação do povo negro, do ponto de vista do desenvolvimento do nosso País, porque o pacote anticrime apresentado por Sergio Moro e por este Governo e a lógica estabelecida por este Governo em relação ao papel que o Estado deve ter conversam drasticamente com a tarefa histórica das elites brasileiras em negar a vida e a dignidade ao povo negro.
E, do ponto de vista da ação repressiva do Estado, este lugar, que deveria ser o espaço de diálogo dos diferentes, o espaço de busca por consensos, de diminuição de conflitos, tem sido historicamente espaço da profecia, da elaboração e da prática do genocídio contra os pobres e os negros no Brasil. Os números demonstram isso a cada momento.
Nesse documento que eu distribuí a vocês, há uma leitura do Atlas da Violência feita pela UneAfro e que repete... Eu vou falar aqui porque isso está sendo registrado, vai para os Anais... Eu gostaria, inclusive, que esse texto constasse, na íntegra, do documento oficial do dia de hoje.
São mais de 65 mil pessoas mortas por ano, sendo 72% delas mortas a tiros e 75% delas, pessoas negras. Das pessoas negras assassinadas, 55% são homens de 15 a 29 anos, em idade produtiva. Todos eles ou a maioria esmagadora, pobres e de baixa escolaridade. Então, a condição social cruza com o elemento radical da violência promovida pelo Estado e incentivada - e eu vou falar sobre isso - pelo Estado.
R
Há violência civil generalizada e incentivada pela prática do Estado, que é exemplo de sociabilidade para a população civil.
Fala-se muito - e tem que se falar - sobre feminicídio, que tem crescido assustadoramente, e cada vez mais se fala disso. Sempre houve, mas agora se fala com mais frequência e é importante que seja falado. Mas há um elemento racial perverso também em relação à questão do feminicídio: 66% das mulheres assassinadas no Brasil são negras.
Parei de falar de número. Mentira. Quero continuar falando de número, porque é uma pena que haja pouca audiência dos Senadores neste espaço. E eu agradeço a importância dele.
Há quase 800 mil pessoas presas, das quais 40% são provisórias, e não causa choque a discrepância visual na presença de negros na comparação entre negros e brancos nesses espaços; não causa espanto ou choque o fato de que a polícia e os assassinatos, de maneira geral, atinjam sobremaneira a população negra.
Em Altamira, metade das 58 pessoas decapitadas, mortas, num conflito promovido, provocado e estimulado pelo Estado é negra.
Se o debate fosse sincero sobre a necessidade de se resolver o problema da segurança pública no Brasil...
Os nossos debatedores, aqui, colocaram brilhantemente todas as questões importantes. Nós queremos diminuir a violência.
Prender mais ou dar condições de liberdade, para que a polícia mate mais, resolve o problema? As experiências, pelo mundo afora, demonstram que não. Os estudiosos provam que não. Mas nós vivemos um momento da história, que é o momento da vingança dos estúpidos, da vingança da mediocridade, da vingança da hipocrisia, quando não se tem apego aos números, às comprovações científicas, aos estudos. Então, nós estamos lidando com um exercício entre o que é racional e razoável e o que é irracional e estúpido. E esta Casa...
É uma pena que o Major Olimpio não tenha podido ficar. É uma pena. Eu já tive francos debates com ele em São Paulo. É um dos cães de guarda da estupidez nesta Casa, que professa uma política que quer matar pessoas; que não gasta o seu tempo como Parlamentar... E a maioria, infelizmente, nas duas Casas, em vez de pensar soluções para os problemas, gasta o seu promovendo iniciativas que irão provocar ainda mais violência.
E eu vou citar rapidamente três pontos e eu vou falar muito rápido, porque todos já falaram brilhantemente aqui.
Em relação à barganha contida no propósito desse documento, dessa proposta, é preciso imaginar que... Eu moro em Itaim Paulista, e um menino qualquer, em qualquer situação que denuncie, delate ou caguete situações, por mais que ele possa ter a pena abrandada pelo regime do Estado, ele não vai ter a pena abrandada quando volta para sua comunidade; ele vai ser morto. Portanto é, mais uma vez, o Estado promovendo uma dinâmica que vai provocar o conflito, se não naquele momento, no retorno.
E aqui já foi dito sobre o elemento do criminoso habitual. Cara, esse termo vale uma tese de doutorado! Quem é o criminoso ou é considerado criminoso habitual no País, o alvo natural da violência do Estado e do elemento da criminalização por parte da Justiça? Quando a Justiça foi justa para os pobres e para os negros no Brasil?
R
Quando o sistema judiciário foi razoável? Quando os juízes... E eu acho um absurdo as audiências a distância...
(Soa a campainha.)
O SR. DOUGLAS ELIAS BELCHIOR - Mas eu quero dizer também que, lamentavelmente, as audiências com presença física, quando o juiz tem a oportunidade de sentir o cheiro... Rodrigo, você foi brilhante na sua exposição, mas é triste a verdade. A maioria esmagadora daqueles que têm o poder de decidir a vida da pessoa nunca cruzou com essa pessoa, com as características dessa pessoa que está do outro lado do tribunal se não em uma condição de patrão. Convive com negros em que situação a maioria esmagadora dos juízes deste País que tem origem na classe média? E o cheiro que sentem acham ruim.
Existe a construção no imaginário de uma sociedade fruto de 400 anos de escravidão que desenha, quando a gente fecha o olho, o estereótipo de quem é violento e de quem é criminoso habitual.
(Soa a campainha.)
O SR. DOUGLAS ELIAS BELCHIOR - Vou terminar.
Portanto, a barganha é mais um elemento para radicalizar o genocídio prendendo ou devolvendo para a comunidade para que o povo se mate, para que a gente se mate entre si.
Eu não vou gastar mais tempo aqui.
O excludente de licitude - não vou falar da aberração - não tem validade só na palavra do documento que está colocado aqui; ele está presente na narrativa e já está sendo construído um imaginário em torno disso, porque já há, historicamente, uma autorização para se matar determinado perfil e agora há isso presente na narrativa oficial dos dirigentes do Estado. Então, o capanga de um fazendeiro se sente muito mais autorizado, para além da normativa, por exemplo, da posse de arma que está sendo estendida.
Nós estamos construindo, Senador Humberto, um exercício importante de unidade do movimento negro brasileiro que tem ido a fóruns internacionais.
(Soa a campainha.)
O SR. DOUGLAS ELIAS BELCHIOR - O Prof. Felipe citou isso. Fomos à Comissão Interamericana denunciar o pacote. É uma pena que eu não pude mostrar o vídeo aqui, que eu quero deixar a serviço de vocês e que mostra os comissários esculachando os representantes do Estado brasileiro na sessão oficial. E de novo, agora, a Coalizão Negra por Direitos, que é essa frente de movimento negro, denuncia de novo o Estado brasileiro por conta do decreto de armas. A gente vai levar isso ao fim e ao cabo na denúncia internacional de um país que tem mais negros fora da África e o que mata mais negros no mundo, um a cada 23 minutos.
Nós estivemos com o Presidente do Senado, Senador Humberto. Ele se sentou em uma cadeira, na Sala da Presidência, e disse: "Esta cadeira tem 200 anos, tem que tomar cuidado para não quebrar". E eu disse a ele: "Se essa cadeira tem 200 anos, é possível que essa cadeira... É possível não; essa cadeira foi feita por mãos escravizadas, e esta Casa tem a obrigação de abrir o seu canal de diálogo". Ele prometeu isso, e eu peço aos Srs. Senadores que cobrem de Davi Alcolumbre. Ele se comprometeu a garantir espaço para que juristas do movimento negro venham a esta Casa para debater tanto o pacote quanto as políticas relativas à questão carcerária e à segurança pública como um todo aqui. E nós temos de cobrar isso dele.
Eu encerro, termino dizendo que faz coro e vira debate no Brasil o racismo dos outros, a violência dos outros. E tem muito espelho nos Estados Unidos. Nós estamos aqui falando com um colega que traz um exemplo copiado pelo Moro no pacote: o plea bargain. É preciso fazer de exemplo também a resistência.
R
Fez um sucesso no Netflix um filme chamado Os cinco do Central Park ou Olhos que Condenam. Vocês devem ter ouvido falar. E a Oprah Winfrey tem um programa e levou...
(Soa a campainha.)
O SR. DOUGLAS ELIAS BELCHIOR - Encerro com isso. Ela levou o elenco do filme e os cinco personagens reais do acontecimento, cinco crianças que foram acusadas de um estupro que não cometeram e ficaram presas por muitos anos. Eles cresceram, isso virou uma história importante na literatura de luta antirracista nos Estados Unidos.
Durante o programa - encerro com isso porque vale para agora -, um dos atores, perguntado por Oprah o que ele tinha aprendido com esse mergulho na história, respondeu algo que a gente precisa de repetir aqui. Ele disse, para a história dos cinco do Central Park - negros acusados de um estupro que não cometeram, coisa que acontece em São Paulo com o Pedro, com o Micael, com o Ítalo, com o Alailson, que são presos porque a polícia forjou a prisão deles; com o Weslley Rodrigues agora, que foi preso no Alemão ontem, forjado pela polícia; com a Preta Ferreira, presa em São Paulo, criminalizada: "A Justiça não merece o nome que tem". (Pausa.)
O SR. PRESIDENTE (Humberto Costa. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - PE) - Muito obrigado, Prof. Douglas.
Eu quero registrar que o Dr. Rodrigo Pacheco vai precisar se ausentar.
Nós temos somente mais um orador inscrito, o Dr. Luis Carlos Valois, porque o Dr. Rodolfo Queiroz Laterza, que viria representando a Adepol, não vai conseguir chegar a tempo.
De imediato, passo a palavra ao Dr. Luis Carlos Valois, que é membro também da Associação Juízes para a Democracia e do IBCCrim.
O SR. LUIS CARLOS VALOIS (Para exposição de convidado.) - Boa tarde a todos!
Vou tentar ser breve. Pelo adiantado da hora deve estar todo mundo querendo almoçar.
Senador, vou falar diretamente ao senhor, porque com quem quero falar mesmo é com os Senadores que estão com esse projeto para votar. Vai ficar registrado, mas vou falar diretamente ao senhor que é mais fácil, até porque eu já estava de frente com o senhor e já iria falar de frente. Eu vim para cá, mas vou falar.
Eu sou juiz da execução penal há 21 anos, juiz há 26 anos e vou a penitenciária todo mês. Já fui até repreendido por ir à penitenciária todo mês. Já fui até repreendido por ir à penitenciária todo mês. "O que esse juiz está fazendo na penitenciária?" Mas é a lei que me manda ir à penitenciária todo mês. "Mas por que juiz vai à penitenciária todo mês?" Porque a lei manda, e eu vou.
Eu sou do Amazonas. Quando ocorreu a rebelião em que morreram 64 presos, em janeiro de 2017, eu estava em casa. Um delegado da Polícia Federal me chamou para ajudar no fim da rebelião. Os corpos todos estavam amontoados, jogados na frente da penitenciária. A princípio, eu nem estava atendendo o telefone, porque eu estava de recesso, não estava trabalhando, não estava de plantão. Cheguei lá, e vi aquele caos todos. A polícia não sabia o que fazer, e eu percebi o que acontece com a segurança pública com relação ao sistema penitenciário. É justamente isto: é sempre um experimento, é sempre gente aprendendo; não existe um conhecimento concreto sobre o que acontece no sistema penitenciário. A gente fica falando do sistema penitenciário, fica falando de preso, mas ninguém cria um conhecimento, um estudo em que se ouvem aquelas pessoas e se dialoga com elas que estão lá primeiro. Então, estava todo mundo perdido. Por que perdido? Porque o Secretário mesmo, delegado da Polícia Federal há anos, a primeira vez em que ele estava lidando com o sistema penitenciário era aquela. Isso já foi falado aqui, sobre a Polícia Federal, a Justiça Federal lidar com o sistema penitenciário, com que não está acostumada, mas era o Secretário de Segurança, na época, esse delegado da Polícia Federal. E aqueles corpos, para ele e para todo mundo, não eram nada, mas eu, que sou juiz há 20 anos, conhecia a cabeça que estava jogada no chão, eu conhecia as pessoas de quem não dava nem para saber a cor porque estavam carbonizadas, e aquilo me fez perceber o porquê... Isso é um indicativo de o quanto os Srs. Senadores devem analisar as leis pela perspectiva de quem traz essa lei para ser avaliada.
R
Nós temos, na história, um Legislativo fazendo leis, criando penas, aumentando penas, temos o Judiciário dizendo que isso não é problema dele, "meu problema é encarcerar, isso é problema do Executivo, que tem que construir penitenciária". O Legislativo diz: "Isso não é problema meu, eu não tenho que conseguir penitenciária, eu só tenho que fazer lei". E o Executivo diz que tem que construir penitenciária, mas ele não tem culpa, porque quem está fazendo a lei é o Legislativo, que está mandando prender. Só que a gente chegou a um cúmulo de um agente do Executivo fazer uma lei para prender, quer dizer, ele, que era para cuidar da penitenciária, está fazendo lei para prender. Não há nada sobre sistema penitenciário nessa lei, mas... Nada melhora o sistema penitenciário, é só para encarcerar.
E há uma coisa que é preciso ser vista, porque a gente está numa Comissão de Constituição e Justiça: a prisão no Brasil já não cumpre a lei de qualquer forma. Qualquer Lei de Execução Penal que você pegar, de qualquer editora, vai ter uma página, vai ter um artigo de todas as páginas que não é cumprido. Nós temos uma lei na realidade, uma prisão na realidade e uma prisão na lei totalmente diferentes. No Brasil, toda prisão é ilegal. Quer dizer, só para começar a discutir lei que encarcera, a gente tinha que, primeiro, discutir a prisão: a prisão cumpre a lei? A prisão não cumpre a lei no Brasil, não cumpre a Constituição, não cumpre nada.
E nós temos um pacote, o que já é um absurdo, porque ninguém pode fazer um pacote de leis, porque as leis são feitas com princípios, com normas, quer dizer, a lei é feita depois de um estudo. Você fazer um pacote e mudar o artigo de uma, o artigo de outra, o artigo de outra, não pode dar certo isso, porque ele não percebeu a estrutura daquela lei. E isso acontece muito na execução penal, que é o que eu estudo.
Ele começa... É o que o Prof. Geraldo Prado falou aqui do juiz de garantias, que tem que ser um juiz imparcial separado do juiz do processo de conhecimento, esse é o juiz da execução penal, que sou eu, porque o juiz da execução penal foi pensado, em 1984, justamente como um juiz isento, porque, quando um juiz condena, ele já emitiu um conceito sobre aquele fato, quer dizer, ele já violou a imparcialidade dele, ele condenou. Ele disse: "O rapaz é culpado". Então, o juiz da execução penal é um juiz para ser imparcial, para não julgar mais nada com relação ao fato, porque senão ele vai estar condenando a pessoa duas vezes pelo mesmo fato.
Quando uma pessoa é condenada, acabou o fato. A execução penal tem que partir dali para a frente. Ele foi condenado, tem aquela pena, ele tem que cumprir aquela pena. Nós não podemos, como o projeto faz, criar condições para o juiz da execução penal agravar a pena por causa do próprio crime e por causa de outros crimes. O juiz da execução penal não pode fazer isso.
R
Nós temos o §2º, mudando a Lei de Crimes Hediondos, dizendo que o juiz do processo de conhecimento pode impedir a progressão de regime. Ele não deve impedir a progressão de regime porque ele não é o juiz competente para isso, a progressão de regime é do juiz do processo de execução. Os processos são separados justamente para isso. Senão o juiz do processo de execução vai fazer o quê?
Várias questões desse projeto... Com o seu conhecimento de medicina, o senhor deve saber da história de Lombroso, e há várias questões lombrosianas nesse processo. Esse criminoso habitual é do Lombroso. "A progressão de regime ficará [...] subordinada ao mérito do condenado e à constatação de condições pessoais que façam presumir que ele não voltará a delinquir". Isso foi Lombroso que inventou. Como uma Mãe Dináh na execução penal, saber se a pessoa vai delinquir mais ou não.
Quer dizer, a execução penal tem que ser dentro do princípio da legalidade, não apenas sem lei, quer dizer, o cidadão tem que cumprir aquela pena que está na lei, não pode ter mais subjetividades, análises que ele não saiba de onde vem aquilo, objetivamente, senão é um arbítrio na execução penal, e esse arbítrio da execução penal é que faz com que o crime organizado, com que a criminalidade aumente, porque até para você punir com retribuição, punir com vingança você tem que comunicar que está punindo com vingança: "Olha, estou me vingando de você". Só que os presos não entendem isso. Os presos não entendem porque eles vivem em um caos de ilegalidade. Quer dizer, se eles estão no meio da ilegalidade, não vai adiantar aumentar pena, não vai adiantar botar em regime fechado, não vai adiantar botar nada.
Outra coisa do projeto que não vê o todo da Lei de Execução Penal, quer dizer, não vê o todo de lei nenhuma, cria vários artigos para várias leis, não vê o todo de nada, é a questão da saída temporária. O regime fechado, o regime semiaberto e o aberto foram criados para pessoas de regimes diferentes, regimes de penas diferentes. Você tem um regime de vida diferente. O regime fechado tem regras, o regime semiaberto tem regras, e para que isso? Para a pessoa não sair abruptamente do regime fechado. Se a pessoa está presa no regime fechado, para que ela tem que ir para o semiaberto? Para ela ter um controle ante de ser solta totalmente, porque ela vai ser solta. O regime semiaberto não foi feito para beneficiar, não foi feito para ser algo bom para o preso. O regime semiaberto, na verdade, foi criado como garantia da pena. O preso tem que cumprir o semiaberto quase como se fosse uma armadilha, quer dizer, ele vai para o fechado, do fechado ele vai para o semiaberto, se ele não cumprir aquelas regras do semiaberto, ele volta para o fechado.
(Soa a campainha.)
O SR. LUIS CARLOS VALOIS - Foi isso que foi pensado, não foi algo aleatório. Houve uma comissão em 1984 que criou a Lei de Execução Penal dentro de uma estrutura com os regimes fechado, semiaberto e aberto.
Outra coisa, você dizer: "Não vai ter saída temporária para esse e esse preso". Não pode, dentro do mesmo estabelecimento... Isso é a Constituição que diz: haverá estabelecimento distinto para penas de gravidades distintas. Quer dizer, você não pode dizer, no mesmo estabelecimento penal, que esse aqui tem saída temporária, esse aqui não tem, porque isso viola a isonomia, porque são regimes para pessoas que vivem no mesmo estabelecimento penal, regimes jurídicos distintos, estabelecimentos penais distintos.
Para terminar, o absurdo de registrar em lei PCC, Família do Norte, Comando Vermelho, quer dizer, um artigo de lei... Que eu saiba, uma lei é para acabar com o crime, nós vamos fazer uma lei para que aquele crime não exista mais, para punir aquele crime. Ele vem e diz assim: "É crime organizado participar do Comando Vermelho, Família do Norte, PCC"...
R
(Soa a campainha.)
O SR. LUIS CARLOS VALOIS - Isso é o absurdo maior do mundo, porque está registrado que nunca mais vai acabar o PCC, quer dizer, uma lei para registrar o crime organizado, para dizer que o crime organizado nunca mais vai acabar porque está na lei. Esse é o maior dos absurdos de todos dessa lei, que mostra o desconhecimento - não digo nem a má-fé, mas é um desconhecimento - da estrutura geral da Lei de Execução Penal.
Muito obrigado. É isso. (Palmas.)
O SR. PRESIDENTE (Humberto Costa. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - PE) - Muito obrigado, Dr. Luis Carlos Valois.
Nós tivemos aqui a informação de que o Dr. Rodolfo está a caminho, só chegou agora a Brasília. Vamos ver se ainda dá tempo, porque a audiência já se prolongou bastante.
Eu vou ler aqui mais algumas contribuições pelo e-Cidadania.
Murilo Antunes, de Minas Gerais: "Quais seriam os impactos do pacote quanto à execução da pena dos condenados em segunda instância? Como a proposta trata o cumprimento de pena em regime fechado? O que o pacote dispõe sobre a prescrição de crimes? Haverá uso de recursos financeiros públicos para implantação das medidas?".
Raissa Carla, de São Paulo: "O argumento de eficiência vinculado ao plea bargain vale o enfraquecimento de princípios democráticos, como a presunção de inocência?".
Letícia Vieira, de São Paulo: "Como a aplicação do plea bargain afeta o acesso a direitos de quem venha a realizar o acordo? Como o pacote pode afetar o encarceramento de mulheres?".
Franciele Alvim, do Rio de Janeiro: "Qual o impacto dessas medidas no orçamento público e no planejamento anual? Qual o impacto social desse pacote em relação à violência da classe menos favorecida?".
Mariana Santos, de São Paulo: "Se não o aprisionamento, o que seria eficiente para garantir a segurança pública?".
Amanda Caroline, de São Paulo: "Sou contra o pacote anticrime, pois este projeto incentiva e estimula o encarceramento em massa da população, piorando a situação do cárcere".
Rebecca Frois, do Distrito Federal: "CCJ, esse pacote anticrime não vai resolver o problema no Brasil. Como ficam os Tribunais do Júri? E onde não tem Defensor Público?".
Eu acredito que algumas das perguntas que foram enviadas, além dos comentários, já foram objeto de avaliação por parte de vários expositores.
Eu queria tecer alguns comentários rápidos e depois ver se algum dos integrantes da Mesa deseja fazer alguma complementação, se o Dr. Lucian, que aguardou até agora, também gostaria de fazer algum comentário. Mas queria prestar alguns esclarecimentos. Primeiro, esta audiência aqui já foi uma luta para ser conseguida. Na verdade, o relatório já foi apresentado. Houve tão somente um pedido de vista, mas o Relator já apresentou o seu relatório. Nós brigamos para que houvesse duas audiências públicas para que pelo menos o contraditório fosse apresentado. A presença dos Senadores aqui - vocês tiveram oportunidade de ver apenas um, dois ou três Senadores aparecerem aqui - mostra que o senso comum já está imperando no debate sobre essa questão.
R
Ainda bem que na Câmara parece que há um espírito maior para tentar fazer algumas mudanças, algumas modificações. Houve aquele grupo lá - ainda há - que já tocou em alguns pontos relevantes, não aceitando aspectos desse projeto que foi para cá enviado. Eu acho que várias colocações que aqui foram feitas, particularmente pela Dra. Rebecca e pelo Dr. Lucian, nos permitem já ter uma noção de que o chamado acordo penal não é uma saída para os problemas que nós vivenciamos aqui no Brasil. E já com a experiência vivida da chamada delação premiada e os bastidores de tudo isso que ainda nem começou a sair no The Intercept... Eu acho que, no momento em que começarem a sair os bastidores dos acordos de delação premiada, estarão dadas as condições para muita gente ir para a cadeia, coisa que, até o presente momento, parece que não está no radar daquelas instituições responsáveis pela correição da atividade dos juízes e dos integrantes do Ministério Público, mas vão ser obrigadas a defender essa questão. Então eu acredito que a fala de vocês é um alerta importante para nós de que esse instrumento, que pode em algumas situações ser utilizado de uma maneira positiva, na nossa cultura e pelo tipo de exemplo que a gente teve agora, com os acordos de leniência e os acordos de delação premiada, é motivo de preocupação.
Também já registramos várias vezes nessa discussão, e vamos enfrentar esse debate no Plenário e aqui, a questão da chamada licença para matar, que esse projeto de certa forma... De certa forma não, ele legaliza, ele coloca como uma coisa em tal grau de subjetividade que nós vamos ter um agravamento do quadro que a gente já tem hoje. Não é por acaso que, na prática, o número de situações em que isso está acontecendo aumentou, porque essa cultura se dissemina muito rapidamente, mais até do que a própria legislação. Acho que fica um alerta importante.
No tema das audiências por videoconferência, também vocês trouxeram vários aspectos importantes, particularmente no que diz respeito à audiência de custódia, que tem características bem próprias, e a gente vai também travar esse debate aqui na Comissão e no Plenário.
E a outra coisa muito relevante para a qual nós já chamamos atenção e que vários de vocês colocaram aqui, seja como preocupação ou como indagação, seja como manifestação a partir de uma avaliação, é que, se esse projeto vier a ser implementado nos moldes em que está colocado, o custo para o Brasil é algo que transcende completamente a nossa capacidade de bancar isso, a não ser - e é o que vai acontecer - que as consequências, por exemplo, da ampliação do encarceramento não se traduzam na criação de novos presídios, com condições mínimas para que as pessoas possam cumprir as suas penas dentro do que a Constituição e a legislação preveem. Queria aqui revogar a Emenda Constitucional 95 e ainda destinar muito mais recursos para que as consequências dessa legislação em termos de ampliação do encarceramento no Brasil pudessem chegar a isso.
R
Outra questão que nós temos discutido aqui... Infelizmente o Presidente da ADPF não ficou, e nós estamos discutindo aqui, especificamente, um dos argumentos que ele colocou, o de que o preso não trabalha.
Não sei se vocês sabem que já há uma discussão e está em vias de ser votado aqui no Senado um projeto de lei que estabelece, como a própria Relatora falou, a obrigatoriedade de o preso bancar a hotelaria que lhe é proporcionada quando vai cumprir sua pena. E, nesse debate, fica absolutamente claro que não há ausência de legislação que defina que o preso deve trabalhar e que isso é parte do processo da sua reinserção social. O problema é que o Estado não garante as condições para que isso aconteça. E agora querem, naquelas situações em que isso acontece, ou mesmo diante do pagamento do auxílio reclusão, que o preso tenha, como prioridade para o gasto desse recurso, o ressarcimento ao Estado pelas precárias condições em que ele está preso, deixando em segundo plano a própria reparação do dano e a sustentação da própria família. Quer dizer...
(Intervenção fora do microfone.)
O SR. PRESIDENTE (Humberto Costa. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - PE) - Então, isso também está em debate. Na verdade, isso demonstra que há uma ação generalizada, por parte deste Governo e de alguns segmentos da sociedade, no sentido de endurecer as condições relativas ao aprisionamento e também aos processos legais.
Queria pedir, já que o Dr. Rodolfo chegou, que fossem cinco minutos realmente, porque vários de nós aqui temos ainda outras...
(Intervenção fora do microfone.)
O SR. PRESIDENTE (Humberto Costa. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - PE) - Depois os que quiserem poderão...
(Intervenção fora do microfone.)
O SR. PRESIDENTE (Humberto Costa. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - PE) - Deixe só ele fazer a exposição dele rapidamente.
O SR. RODOLFO QUEIROZ LATERZA (Para exposição de convidado.) - Senador Humberto Costa, inicialmente muito obrigado.
Cumprimento todos da Mesa. Infelizmente, o voo atrasou; peço perdão.
Obrigado pela deferência à Associação dos Delegados de Polícia do Brasil.
Nós temos um estudo técnico - depois gostaria de encaminhá-lo a V. Exa. - acerca das necessidades de aperfeiçoamento do PL 1.864, de 2019, intitulado Pacote Anticrime, que tem uma versão também similar na Câmara, em comissão específica.
Certas necessidades de reparo se fazem prementes nessa proposição, ainda que haja necessidade de aperfeiçoamento, principalmente em relação ao sistema do plea bargaining, porque, a nosso ver, ele possui, em suas cláusulas, a obrigatoriedade de confissão espontânea, ou voluntária, por parte do investigado ou do processado, violando até o princípio da não autoincriminação, ainda que haja controle jurisdicional. Mas esse controle jurisdicional está um tanto rarefeito, porque ele é meramente homologatório, o que é uma temeridade a nosso ver. Falando até por experiência de causa: na presença de uma autoridade policial, suponhamos, ou mesmo de um integrante do parquet, com todo respeito ao profissionalismo de sua imensa maioria, qualquer cidadão se veria numa situação de hipossuficiência de volição, e essa hipossuficiência de volição acarretaria, sem dúvida, um desequilíbrio.
R
Outro ponto que muito nos preocupa - falo como testemunha, por ter trabalhado na Polícia Civil do Rio de Janeiro no combate às organizações criminosas - é a tipificação expressa, a construção de um tipo penal envolvendo certas modalidades de facção. Isso, além do problema decorrente de você criar um tipo penal ad hoc, vulnerabiliza e fragiliza o Estado de direito.
O Peru, quando institucionalizou crime específico para o Sendero Luminoso - ou a Colômbia, para as FARC -, legitimou essas organizações de cunho narcoterrorista. Da mesma forma, fazê-lo com o PCC, o Primeiro Comando da Capital, com o Comando Vermelho etc., cria uma vulnerabilidade sem tamanho para o Estado brasileiro. Nós já tínhamos feito esse alerta para o Ministério da Justiça, mas já tinha sido encaminhada a proposição, e tinham, inclusive, verificado que é pertinente o nosso argumento. Portanto, a criação, a construção ou a reformulação desse tipo penal com elementos descritivos objetivos mais precisos garantiria a eficácia dissuasória e punitiva, sem, no caso, legitimar essas facções criminosas, o que é uma temeridade.
Outro ponto que gostaríamos de destacar é o estabelecimento de forças-tarefas. O conceito de força-tarefa, derivado do instituto norte-americano de task force, é propriamente norte-americano e foi introduzido pelo FBI em casos específicos. Portanto, a criação de força-tarefa sem que haja uma delimitação das atribuições de cada qual criará sérios problemas de observância do sistema acusatório e do sistema dispositivo, no quais há a separação do Estado investigação, do Estado acusação e do Estado juiz.
Aqui eu não estou fazendo referências à Lava Jato nem nada não, mas simplesmente uma análise do que ocorre concretamente. Em vários trabalhos de forças-tarefas - por exemplo, de combate a milícias, de combate a homicídios -, quando não há essa delimitação, infelizmente, há um problema sério. O Brasil tem que conhecer antes a doutrina do sistema de controle de incidentes norte-americano, em que todas as agências, todas, todas que trabalham na persecução penal ou na preservação da ordem pública montam o chamado conceito de task force com delimitação equilibrada, com as atribuições de cada qual. Quando se avança na atribuição de determinada organização, aquele representante é que coordena. Infelizmente, nós não temos essa cultura e perdemos uma grande oportunidade quando da edição da Lei 13.260, a Lei Antiterrorismo, de introduzir no ordenamento brasileiro o conceito de sistema de controle integrado de incidentes, que os Estados Unidos criaram depois dos atentados de 11 de setembro.
(Soa a campainha.)
O SR. RODOLFO QUEIROZ LATERZA - Esses seriam os pontos iniciais. Desde já agradeço. Gostaríamos de contribuir com esse debate, apresentando, inclusive, o nosso estudo.
Muito obrigado. (Palmas.)
O SR. PRESIDENTE (Humberto Costa. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - PE) - Muito obrigado, Dr. Rodolfo, que já teve oportunidade de aqui participar de debate sobre esse programa e tem uma posição muito boa. Lamento não poder ter lhe concedido todo o tempo necessário.
Eu vou abrir aqui rapidamente para algumas considerações que os integrantes da Mesa queiram fazer. Peço que sejam rápidos realmente.
A Dra. Simone tem a palavra.
A SRA. SIMONE SCHREIBER (Para exposição de convidado.) - É só para fechar algumas questões, especialmente acerca de uma pergunta de uma das pessoas que participaram pela internet: "Se a solução não é prender, qual seria a solução?"
R
Eu acho que existe uma fé inabalável na prisão como uma solução para o problema de segurança pública. Essa fé na prisão não é só do Legislativo, que, sempre que há algum problema, alguma crise, alguma situação mais grave reportada pela imprensa sobre segurança pública, imediatamente aprova uma lei que aumenta, que recrudesce as penas. Ocorre que essa fé não é só do Legislativo, essa fé é também do Judiciário.
Temos que dizer, a favor do Poder Legislativo, que aprovou medidas para ampliar a possibilidade de medidas cautelares diferentes da prisão. Com isso, a pessoa não precisa ficar presa cautelarmente, existem outras soluções que a lei prevê desde 2012. Nós temos a possibilidade de substituir penas privativas de liberdade aplicadas até quatro anos por penas alternativas. Há várias soluções possíveis, e a própria audiência de custódia também veio com a promessa de reduzir o encarceramento provisório. Ocorre que os juízes têm uma dificuldade enorme de aplicar essa legislação, por preconceitos, por ideologia ou o que seja.
O que interessa é o seguinte: o projeto vem com mais do mesmo, propondo soluções que vão ampliar o problema. Além disso, quando a pessoa é colocada no sistema carcerário da maneira como ele está - nós sabemos o descalabro que é o sistema carcerário brasileiro, Dr. Valois, que deu aqui o seu depoimento -, nós estamos colocando pessoas nas mãos de facções criminosas. A pessoa entra no presídio e, no dia seguinte, está sendo cooptada por uma facção criminosa, e a família dela também fica refém de uma facção criminosa.
Então, me parece que a solução é: não encarcerar pessoas que não tenham cometido crimes violentos; sempre que possível... Se a pessoa, pela primeira vez, está se envolvendo na prática criminosa, ela deve ficar solta durante o processo e, quando se for aplicar a pena, ela deve ter a sua pena aplicada de forma substituída e, para isso, é preciso política pública, política pública de acolhimento dessas pessoas, para que elas possam encontrar caminhos que não façam com que elas reincidam no crime. Então, o mesmo investimento que se faz para construir presídio pode ser feito para se ter locais de acolhimento, assistência social, escolas etc.
Muitas outras soluções são possíveis e podem implicar realmente a melhoria da situação de segurança pública no Brasil. O encarceramento não vai implicar melhoria da segurança pública no Brasil. Acho que, sobre essa questão, os Senadores devem procurar pensar um pouco, já que os juízes têm dificuldade de fazê-lo. Nós acreditamos que os representantes do povo brasileiro, nesta Casa e na Câmara dos Deputados, têm toda condição de avaliar isso e rejeitar todas as medidas legislativas que só vão piorar a situação.
Agradecendo, mais uma vez, Senador Humberto Costa, a possibilidade de estar aqui, eu me despeço com esta fala.
Obrigada.
O SR. PRESIDENTE (Humberto Costa. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - PE) - Eu pergunto se o Prof. Lucian Dervan gostaria de manifestar-se mais uma vez.
O SR. LUCIAN DERVAN (Para exposição de convidado. Tradução simultânea.) - (Participação por videoconferência.) Muito obrigado, Senador.
Eu gostaria de comentar algo que o senhor discutiu e ouvi muitos outros palestrantes mencionarem. Trata-se da relação entre a supercriminalização e a delação premiada. Isso, na minha opinião, se o senhor olhar para o desenvolvimento histórico desses dois conceitos, verá que há uma relação simbiótica, o que significa que um se alimenta do outro. A delação premiada precisa da sobrecriminalização para existir e, ao mesmo tempo, a supercriminalização permite o crescimento da dominância da delação premiada. Então, é importante ver a relação entre esses dois e a forma como a delação premiada pode levar à supercriminalização. Isso, similarmente, como foi discutido, está muito relacionado ao que acabei de mencionar e à ideia de que a delação premiada também tende a mascarar problemas sistêmicos no sistema de Justiça Criminal. Isso pode não só mascará-los, escondê-los, mas, por causa disso, pode-se também prejudicar os esforços para fazer um trabalho relacionado a iniciativas do sistema de Justiça Criminal nesse nível. Dessa forma, a delação premiada pode ter esse efeito mais abrangente no sistema de Justiça Criminal, e isso tem que ser pensado antes de entrar nesse caminho e pensar o que esse futuro pode ser e como proativamente se preparar para isso se a delação premiada for formalmente adotada.
R
Muito obrigado.
Eu gostei da oportunidade de estar aqui com vocês e discutir, foi muito interessante discutir esse assunto.
O SR. PRESIDENTE (Humberto Costa. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - PE) - Muito obrigado pela sua contribuição e pela sua paciência.
Eu pergunto ao Dr. Felipe Freitas se deseja...
Dr. Paulo Afonso?
(Intervenção fora do microfone.)
O SR. PAULO AFONSO CORREIA LIMA SIQUEIRA (Para exposição de convidado.) - Meio que fazendo um contraponto, de tudo o que foi analisado aqui, muitas considerações foram pertinentes e bastante valorosas. Entretanto, há algumas considerações que constam aqui do projeto que são situações que já se encontram hoje presentes na nossa jurisprudência. É certo que os institutos que hoje existem precisam de aprimoramento, principalmente o instituto da delação premiada, uma vez que a delação precisa ser realizada com substratos concretos que, de alguma forma, facilitem e viabilizem a persecução penal, uma vez que o simples fato de a pessoa chegar e afirmar que fulano fez isso e beltrano fez aquilo, sem que para isso tenha qualquer questão de substrato fático-probatório robusto que viabilize uma ação penal...
Da mesma forma, a questão do plea bargain. Eu fui o primeiro juiz aqui no Distrito Federal a fazer audiência de custódia, eu inaugurei a audiência de custódia juntamente com o Ministro Lewandowski e o Desembargador Getúlio. Durante esse período, realmente, como disse o Douglas, vi pessoas negras em sua grande maioria, mas a cor da pele delas nunca me criou qualquer empecilho ou barreira para que fosse aferido efetivamente se houve ou não a questão do escopo maior do Pacto de São José da Costa Rica, que seria garantir a integridade do preso. Como disse o Dr. Felipe, ninguém pode ser considerado abaixo de um ser humano, ninguém pode ser considerado uma barata ou o que quer que seja. Não é a cor da minha pele, não é a minha condição social ou o meu grau de educação formal que vai me fazer melhor ou pior do que alguém. Acredito que essa seja a premissa que a Associação dos Magistrados Brasileiros tem em relação ao pacote anticrime.
R
Realmente, a política de encarceramento é uma política que não vai trazer benefícios para a sociedade, mas a gente precisa fazer um contraponto que decorre do princípio da proibição de insuficiência, porque o que foi visto aqui, com razão, com fundamento, foi muito a visão do preso, da pessoa que é submetida à persecução penal. Em momento algum, pelo que foi visto aqui, foi analisada a questão da sociedade como um todo. Por quê? Porque se falou aqui que não havia conflitos armados, e é uma realidade que existe no nosso País. Existe conflito armado, sim, não dentro da perspectiva de uma guerra civil declarada, mas é uma situação que existe.
Isso tudo precisa ser analisado dentro de um contexto e, como foi falado por muitos aqui, dentro da ótica... Tudo tem de ser analisado dentro de uma perspectiva sistêmica. Por quê? Ao mesmo tempo em que se fala sobre essa questão da atuação do Poder Judiciário, essa é uma situação recorrente, vista todos os dias em audiências criminais que eu realizo de segunda-feira a sexta-feira, de 14h até a hora que terminar. Muitas vezes, o preso não tem a assistência que deveria ter por parte da Defensoria Pública, uma vez que o primeiro contato que o preso tem com o acusado se dá na audiência. Ali ele perdeu uma grande oportunidade, que é a oportunidade da resposta feita pela acusação. É o momento em que o preso vai poder realizar...
(Soa a campainha.)
O SR. PAULO AFONSO CORREIA LIMA SIQUEIRA - Estou só finalizando.
É o momento em que o preso vai poder realizar a sua defesa. Ao final é o momento em que ocorre a defesa do réu através do seu interrogatório.
Então, a coisa deve ser analisada sob toda perspectiva.
Obrigado.
O SR. PRESIDENTE (Humberto Costa. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - PE) - Obrigado.
Pergunto à Dra. Rebecca Shaeffer se deseja tecer algum comentário.
A SRA. REBECCA SHAEFFER (Para exposição de convidado. Tradução simultânea.) - Eu tenho de dizer que, como estrangeira, é um pouco estranho considerar esse projeto de lei, agora que eu o conheço mais, sentada aqui nesta audiência, ouvindo as diferentes partes.
Foco meus comentários na delação premiada, nessa parte, porque aí está minha experiência.
Se pensamos em uma lei anticrime geral, da minha perspectiva externa, é difícil entender que são os problemas que quer resolver esse projeto de lei anticrime. Os pedaços diferentes não parecem conectados, não parecem responder de forma articulada a um diagnóstico da segurança no País.
Se eu pensar no que todos têm em comum, videoconferência, audiência de custódia, defesa, assassinatos e delação premiada, o que conecta tudo parece ser uma negativa da humanidade das pessoas que entram em contato com o direito, que entram em contato com juízes e promotores, tornando-os mais descartáveis. O contato deles com as polícias... As pessoas podem vê-los e ter contato humano. Essa parece uma justificativa estranha para uma lei anticrime, não me parece que vai melhorar a segurança deste País, mas só reduzir a humanidade dos seus cidadãos vulneráveis. (Palmas.)
R
O SR. PRESIDENTE (Humberto Costa. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - PE) - Obrigado mais uma vez, Dra. Rebecca Shaeffer.
Pergunto ao doutor...
(Intervenção fora do microfone.)
O SR. PRESIDENTE (Humberto Costa. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - PE) - Dr. Luis Carlos - há tanta gente aqui, perdoe-me -, pergunto se deseja também...
O SR. LUIS CARLOS VALOIS (Para exposição de convidado.) - Eu só queria ratificar o que o senhor já falou, Senador. Já existe uma legislação dizendo que o preso tem que trabalhar. E o preso quer trabalhar! Não existe um preso no Brasil que não queira trabalhar. Inclusive, já existe o art. 29 da Lei de Execução Penal dizendo que o preso deve pagar a custódia dele. Já existe isso! Estão fazendo lei sobre lei.
Outra coisa que eu quero ressalvar é que existe uma coisa em comum... Parece que ninguém percebeu, mas existe uma coisa em comum entre plea bargain, videoconferência, trânsito em julgado e segunda instância, que é a diminuição do trabalho do Judiciário. Quando um juiz diz que não precisa fundamentar a prisão do réu na segunda instância, isso serve para ele não despachar, porque ele pode determinar a prisão em qualquer momento do processo. Quando ele diz que não quer a presença do réu, não é só por causa do cheiro, mas é porque ele pode fazer isso do gabinete dele; ele não precisa sair, não precisa ir à penitenciária, não precisa de nada.
Quando o plea bargain vai ficar na mão do Ministério Público... O que acontece é que nós temos um Judiciário - e o Judiciário deveria ser um Judiciário democrático, não só um Judiciário de direito, mas um Judiciário democrático, que deveria estar nos locais, que deveria estar na rua, que deveria estar nas penitenciárias - que tem privilégios, que tem um salário que não dá para pagar a muitos magistrados. Então, ele concentra poder e não pode distribuir esse poder. Não pode haver mais magistrados, porque não há condição de pagar mais magistrados. Então, o que acontece? Como não há condição de haver muitos magistrados, ele diminui o trabalho dele, simplesmente isso: "Eu não despacho na segunda instância. Simplesmente há uma súmula, e eu mando prender automaticamente, por videoconferência. Não saio do meu gabinete, não preciso ver, não preciso sentir o cheiro, não preciso nada. Com plea bargain, eu nem toco no processo".
Nessas três questões, existe uma diminuição do trabalho do Judiciário. E o Judiciário não devia nunca, nunca, abrir mão da sua obrigação de julgar tudo. O Judiciário deveria ser o primeiro a querer que todo mundo passasse por um julgamento antes de ser punido, seja de que forma fosse, seja com pena alternativa, seja com prisão!
É isso.
O SR. PRESIDENTE (Humberto Costa. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - PE) - Muito obrigado, Dr. Luis Carlos.
Com a palavra a Dra. Carol Proner.
O SR. PAULO AFONSO CORREIA LIMA SIQUEIRA (Fora do microfone.) - Sr. Presidente, eu queria só fazer uma consideração.
O SR. PRESIDENTE (Humberto Costa. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - PE) - Peço-lhe só um minutinho.
Seja rápido, por favor.
O SR. PAULO AFONSO CORREIA LIMA SIQUEIRA - É uma consideração muito rápida a respeito da videoconferência. Realmente, a videoconferência, de alguma forma, limita o contato do juiz com o preso. Há algo em torno de um mês, eu fiz uma audiência em que a gente se utilizou do sistema de videoconferência do CNJ para garantir o acesso do preso que estava no Estado de Minas. Não tinha como realizar a audiência e garantir o direito de presença a ele porque não havia como fazer o recambiamento.
Então, o instituto, no todo, não é totalmente ruim, mas todos que falaram aqui a respeito do direito de presença do acusado... Isso é verdadeiro.
Então, eu queria agradecer.
Obrigado.
R
O SR. PRESIDENTE (Humberto Costa. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - PE) - Com a palavra a Dra. Carol Proner.
A SRA. CAROL PRONER (Para exposição de convidado.) - Muito rapidamente, Senador Humberto, é importante dizer que meu tema é diferente dos demais e que, justamente pelo fato de eu falar sobre esse tema aqui, essa também é uma realidade. Pouca gente tem falado sobre esse assunto.
É importante destacar que esse caso da inserção nesse pacote da autonomia dada ao Ministério Público Federal e à Polícia Federal para constituírem as equipes de investigação nos combates de todos os crimes transnacionais, incluindo aí a corrupção sistêmica transacional, nesse conceito muito específico, com esse propósito, já está produzindo consequências muito graves para o País. Não é apenas algo que está sendo adicionado, de certa forma regularizando o que já vem acontecendo. É que as consequências nocivas e gravosas já estão acontecendo, e nós estamos descobrindo isso todos os dias. Hoje mesmo, neste exato momento, enquanto estamos aqui, saíram novas revelações do The Intercept Brasil, e as revelações são as de que também os procuradores dessa força-tarefa, com esse nível de autonomia, estavam também planejando investigar um Ministro da Suprema Corte na cooperação com a Suíça, na cooperação internacional de combate à corrupção com a Suíça.
Então, nós não estamos falando de algo abstrato. Nós estamos falando de algo concreto, que já está acontecendo e que está sendo colocado na lei a posteriori, regulamentando, regularizando algo que vem sendo feito, atualmente, de forma ilegal, irregular e, a meu ver, criminosa. É um crime de lesa-pátria.
Era com isso que eu gostaria de terminar a minha fala.
O SR. PRESIDENTE (Humberto Costa. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - PE) - Muito obrigado, Dra. Carol, pela sua participação.
Eu também indago ao Prof. Douglas Elias se ele deseja se manifestar.
O SR. DOUGLAS ELIAS BELCHIOR (Para exposição de convidado.) - Faço apenas uma observação também gravíssima, que está contida no pacote, sobre a coleta de dados genéticos. Há um documento muito bem feito pela pesquisadora Maria José Menezes, pesquisadora da USP, militante negra da Marcha das Mulheres, em colaboração com Bianca Santana, que eu quero ler, porque é rápido.
O problema na proposta discutida é expandir indiscriminadamente a coleta de amostras de DNA sem justificativa, com altíssimos riscos sociais, muito a partir da inspiração da provocação sobre Lombroso que o Prof. Valois faz. A implicação social de ter o genoma de um indivíduo é enorme. Você não está acessando somente os dados dessa pessoa, você está acessando informações genéticas dos ancestrais dessa pessoa, dos descendentes dessa pessoa, dos irmãos, dos primos, dos tios, ou seja, de toda uma rede, de todo o grupo familiar. Como esse banco de dados vai ser gerenciado? Vai ser seguro? Quem garante a segurança? Se os dados forem vendidos, furtados, eu posso encontrar emprego porque tenho um irmão encarcerado? Isso vai ser eventualmente dirigido ou mapeado?
A informação genética não pode ser preditiva de comportamento social. É fundamental esse ponto, porque nós temos no Brasil um longo histórico eugenista, em que nós tínhamos a ciência respaldando essas informações antropométricas das pessoas. Até hoje, em algumas carreiras, as pessoas são escolhidas de acordo com seu biótipo, e nós sabemos muito bem como isso se dá. Daí é também mais uma questão gravíssima. A gente sabe disso. Temos pouca correlação de força, mas a nossa tarefa é denunciar esse absurdo de repetição histórica, que coloca como alvo a população negra no Brasil.
Muito obrigado pela oportunidade.
O SR. PRESIDENTE (Humberto Costa. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - PE) - Muito obrigado, Professor.
Eu pergunto também ao Dr. Rodolfo se deseja...
O SR. RODOLFO QUEIROZ LATERZA (Para exposição de convidado.) - Mais uma vez, agradeço, Senador. Obrigado pela consideração de ter me dado esta oportunidade.
R
Eu queria só fazer uma análise última a respeito do que contém o pacote anticrime no que se refere à expansão da excludente de ilicitude, no que se refere à legítima defesa. Vejam bem: consideramos que a legítima defesa é um pressuposto fundamental para se afastarem casos em que sobrevem uma causa de justificação, quando há a iminência de uma grave ameaça e, principalmente, de violência, considerando que nós temos situações de confrontações armadas constantes. Eu sou do Rio de Janeiro e já fui a 12 enterros de colegas de trabalho, de policiais, na minha carreira.
Todavia, eu gostaria de ressaltar a importância de se destacar expressamente o problema de se manter no texto - se eu não me engano, isto consta do texto - a previsão de que a excludente de ilicitude por legítima defesa não afasta eventual punição por excesso doloso ou culposo. Nós temos um sério problema no Brasil de observância de regras de contingência por parte, infelizmente, do Estado, por não prover...
(Soa a campainha.)
O SR. RODOLFO QUEIROZ LATERZA - ... uma doutrina adequada de uso progressivo da força. E, com todo o respeito, os operadores do direito, infelizmente, não adentram essa seara, que é outra seara que não é necessariamente normativa e jurídica, que é o estudo do uso progressivo da força, aliado às regras de engajamento. Em Israel, isso se estuda, e, nos Estados Unidos, isso se estuda, justamente como uma forma de preservar o policial envolvido no confronto e de criar quase situações factuais que legitimam ou não o afastamento de um grave e iminente perigo que legitime uma intervenção policial com o evento morte.
Obrigado.
O SR. PRESIDENTE (Humberto Costa. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - PE) - Muito obrigado.
Quero agradecer a todos os participantes e a todas as participantes e dizer da importância que esta audiência teve.
Nada mais havendo a tratar, eu declaro encerrada esta sessão.
Muito obrigado. (Palmas.)
(Iniciada às 10 horas e 09 minutos, a reunião é encerrada às 13 horas e 41 minutos.)