Discurso no Senado Federal

SITUAÇÃO DA INFANCIA NOS ESTADOS UNIDOS DA AMERICA.

Autor
Jutahy Magalhães (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/BA)
Nome completo: Jutahy Borges Magalhães
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA INTERNACIONAL. POLITICA SOCIAL.:
  • SITUAÇÃO DA INFANCIA NOS ESTADOS UNIDOS DA AMERICA.
Publicação
Publicação no DCN2 de 11/02/1994 - Página 701
Assunto
Outros > POLITICA INTERNACIONAL. POLITICA SOCIAL.
Indexação
  • ANALISE, GRAVIDADE, SITUAÇÃO, INFANCIA, PAIS ESTRANGEIRO, ESTADOS UNIDOS DA AMERICA (EUA).
  • ELOGIO, VONTADE, BILL CLINTON, PRESIDENTE DE REPUBLICA ESTRANGEIRA, PAIS ESTRANGEIRO, ESTADOS UNIDOS DA AMERICA (EUA), INCENTIVO, PROGRAMA, DESENVOLVIMENTO, AUXILIO, INFANCIA.
  • COMENTARIO, NECESSIDADE, ESFORÇO, GOVERNO BRASILEIRO, OBTENÇÃO, AUXILIO, PAIS ESTRANGEIRO, MELHORIA, SITUAÇÃO, CRIANÇA, PAIS.

    O SR. JUTAHY MAGALHÃES (PSDB - BA. Pronuncia o seguinte discurso.) - Sr. Presidente, Sras e Srs. Senadores, muito se tem falado, nesta Casa, nos órgãos de imprensa, nos meios acadêmicos, acerca das mazelas que afligem a infância brasileira. Tornou-se já lugar comum a referência as crianças abandonadas, desassistidas, a toda essa realidade pungente que nos entra pelos olhos adentro cada vez que saímos às ruas de qualquer de nossas grandes cidades. São os meninos famintos. a pedir esmolas, praticando pequenos furtos ou submetidos precocemente às duras exigências do mercado de trabalho. São as meninas sobrevivendo no submundo revoltante da prostituição infantil. São as crianças, ainda bem pequenas, que, acossadas pelo frio, amontoam-se sob uma marquise qualquer para passar a noite.

    De fato, as imagens de rua que agridem nossa consciência são reflexo de uma realidade que os indicadores sociais só vêm confirmar: de cada mil crianças nascidas vivas no Brasil 65 morrem antes de completar cinco anos de idade, número quase duas vezes maior do que no Paraguai e mais de três vezes superior àquele registrado na Colômbia. Registre-se, por oportuno, que, comparado ao daqueles dois países, nosso PNB per capita representa mais do que o dobro.

    A experiência já vivida indica que, realmente, os progressos de um país com relação à saúde, à alimentação e à educação não dependem apenas de seu desenvolvimento econômico, mas também de um compromisso sustentado para a melhoria do bem-estar dos pobres. Evidência disso, seguramente mais surpreendente do que o exemplo brasileiro supra-referido, é a situação da infância nos Estados Unidos da América, assunto que me traz hoje à tribuna desta Casa.

    Como já afirmamos, são hoje do conhecimento geral as situações extremas de privações que afetam a vida de milhões de crianças no mundo em desenvolvimento. Muitas pessoas bem informadas, todavia, com certeza surpreender-se-iam ao tomar conhecimento de que também nos países mais ricos do mundo uma parcela crescente de crianças vem enfrentando dificuldades.

    Apesar de um crescimento econômico de aproximadamente 20% durante a década de 80, não logrou a sociedade norte-americana impedir que 4 milhões de suas crianças passassem a viver na pobreza naquele período. No total, vinte por cento dos adolescentes norte-americanos vivem hoje abaixo da linha da pobreza, taxa essa duas vezes superior à registrada em qualquer outro país industrializado.

    Uma das conseqüências mais diretas e mais dramáticas da pobreza é a doença. O empobrecimento a que foi submetida significativa parcela da população norte-americana ao longo dos anos oitenta não poderia deixar de ter reflexos na saúde de suas crianças. Antes do fim da década, doenças evitáveis recomeçaram a ocorrer. Enquanto a nível mundial o número de casos de sarampo, a mais devastadora entre as doenças infantis, era reduzido em cerca de 66% e o número de mortes causadas por essa doença decrescia de 2,5 milhões por ano para pouco mais de 1 milhão, nos EUA mais de 55 mil casos foram registrados entre 1989 e 1991, incluindo 64 mortes - o número mais alto em duas décadas. A imunização infantil caiu para até 10% em algumas cidades do interior do país, índice mais baixo do que o de qualquer país do hemisfério ocidental, com exceção da Bolívia e do Haiti.

    Atentem, Srs. Senadores, que não me refiro a um país pobre ou insignificante. Falo dos Estados Unidos da América, a única superpotência da atualidade, supostamente terra de fartura e opulência. No entanto, 8 milhões de crianças norte-americanas não contam com cuidados de saúde.

    Mas além dessa faceta menos conhecida da realidade dos EUA, marcada pela pobreza e pela doença, afetam a vida das crianças de lá outros sérios problemas sociais, que com esses se imbricam, e que recebem mais destaque nos meios de comunicação. É o caso, por exemplo, dos abusos cometidos contra crianças.

    Conquanto os maus tratos à infância sejam tema freqüente dos noticiários, de livros e de filmes, o que muitos ignoram é que a situação tem-se agravado. O número de casos de abuso de crianças relatados triplicou durante a década de 80 nos Estados Unidos. A cada dia, cerca de três crianças morrem em decorrência de maus tratos!

    É também bastante divulgada a circunstância de que, nos Estados Unidos, a problemática do abuso de drogas atinge proporções mais alarmantes do que em qualquer outra país do mundo. Talvez até em decorrência dos elevados padrões de renda e de consumo da maioria da população norte-americana, os traficantes de entorpecentes elegeram aquele país como mercado prioritário e, aparentemente, inesgotável. Trata-se de verdadeira epidemia, de conseqüências devastadoras. E, o que é mais triste, também as crianças pagam o ônus da moléstia social.

    Há vários anos, sucessivas administrações norte-americanas têm dado prioridade ao combate às drogas. A expressão normalmente empregada é "guerra às drogas". Ao que tudo indica, tais esforços têm sido vãos. Apesar deles, o abuso dessas substâncias e os crimes a elas relacionados, muitos deles vitimando crianças, aumentaram.

    Por outro lado, estima-se que nasçam anualmente cerca de 375 mil bebês expostos às drogas, inclusive os chamados "filhos do crack", crianças que já vêm ao mundo dependentes desse tóxico de efeitos ainda mais deletérios do que os da cocaína. Infelizmente, o programa governamental que existiu no passado para a Ajuda a Famílias com Crianças Dependentes foi interrompido na década de 80. Muitas outras crianças, filhas de pais dependentes, crescem carentes de cuidados morais e materiais.

    A violência urbana, característica até há pouco marcante das grandes cidades norte-americanas, começa agora a espalhar-se pelas ruas e escolas das comunidades do interior. Trinta por cento das crianças das cidades do interior conheceram alguém que morreu quando tinham 15 anos de idade.

    Por carência econômica, um número crescente de norte-americanos vive nas ruas, um fenômeno praticamente inexistente nos anos de maior afluência dos EUA. Atualmente, 31% dos sem-teto são famílias com crianças; no início da década de 80, essa taxa era de 21%. Essas crianças sem lar estarão seguramente em desvantagem no que se refere à nutrição, condições de saúde, desempenho escolar etc.

    As desigualdades raciais, que desde o século passado têm provocado derramamento de sangue e muito sofrimento, ainda persistem nos EUA, severas e marcantes, quando apenas alguns anos nos separam do século XXI. Como sempre, as crianças não são poupadas da insensatez do mundo dos adultos. A mortalidade infantil, por exemplo, que é de 8 por mil nascimentos entre a população branca, chega, entre os negros, a 18 por mil - uma taxa mais alta do que a da Costa Rica ou da Jamaica.

    Para alguns norte-americanos dedicados ao trato das questões sociais, tais disparidades podem levar o país a transformar-se em duas nações: uma com os privilégios do Primeiro Mundo e outra com as privações do Terceiro Mundo.

    Algumas das mudanças sociais que afetam as crianças norte-americanas, contudo, nem sempre se vinculam ao problema da pobreza. O acentuado aumento de casos de pais ou mães que assumem os filhos sozinhos ou sozinhas, por exemplo, é, muitas vezes, uma opção que se relaciona com o tipo de vida característico das sociedades pós-industriais contemporâneas. Por outro lado, essas famílias são, freqüentemente, vítimas mais fáceis do empobrecimento. Na década de 80, mais de 1,1 milhão de famílias assumidas isoladamente por pais ou mães caíram abaixo da linha da pobreza. Enquanto resultados de opções existenciais, tais problemas estão fora do alcance imediato do governo. Cabe a ele, não obstante, implementar políticas capazes de aliviar os efeitos desses problemas. As tentativas nesse sentido têm se mostrado, até o presente, inadequadas, fracassando no objetivo de garantir uma rede de segurança para as crianças.

    As responsabilidades governamentais para com a deterioração das condições de vida das crianças norte-americanas na última década não podem ser minimizadas, contudo. Sob as duas administrações que antecederam a atual diversos programas de bem-estar foram interrompidos.

    Indicações existem, todavia, de que hoje um novo acordo em favor da criança está sendo forjado. Muitos dos objetivos anunciados da administração Clinton, em especial a declarada intenção do Presidente de tirar da pobreza todas as famílias com um responsável trabalhador, apontam nesse sentido.

    Da mesma forma, também o projeto de universalizar a assistência à saúde, no qual está pessoalmente engajada a própria Primeira-Dama, representaria imensos benefícios para aquela significativa parcela de crianças que atualmente não tem acesso a cuidados médicos.

    Iniciativas importantes estão surgindo, outros sim, no campo da legislação trabalhista. É o caso, por exemplo, do Ato para a Licença Médica e Familiar (Family and Medical Leave Act). Esse projeto, que foi obstruído e perdeu sua força pela ação das duas administrações anteriores, foi agora rapidamente transformado em lei. Garantindo até 12 semanas de licença não remunerada para que o trabalhador possa cuidar do recém-nascido ou de parentes doentes, ele deverá, conquanto não se aproxime dos padrões de muitos países europeus, aliviar a pressão sofrida por muitas famílias norte-americanas.

    É de se esperar que a queda nos índices de imunização seja interrompida e, inclusive, revertida, levando-se em conta a declaração do Presidente Clinton de que a imunização é um direito de todas as crianças - "assim como água limpa e ar puro" - e o respaldo prontamente oferecido pelo Congresso, que apressou-se em ampliar os fundos para a expansão do programa nacional de vacinação.

    A intenção manifestada pelo Presidente Clinton, desde sua campanha eleitoral, de dar novo impulso ao Head Start também encontrou acolhida favorável junto ao Congresso.

    Funcionando desde 1965, o Head Start é um dos programas de desenvolvimento infantil mais bem-sucedidos em toda a história dos Estados Unidos. Trata-se de um programa de abrangência nacional projetado para dar às crianças menos favorecidas uma melhor arrancada na escola e na vida. Seus amplos objetivos incluem a melhoria da saúde, do desempenho intelectual, da prontidão para a atividade escolar, do ajustamento pessoal e emocional, bem como das atitudes sociais e do comportamento das crianças menos favorecidas em idade pré-escolar. O projeto reflete a consciência de que as oportunidades e conquistas dos primeiros anos de vida são de crítica importância, particularmente para as crianças das classes pobres.

    Os resultados positivos do Head Start, particularmente no que tange ao incremento da capacidade de aprendizagem das crianças que participaram do programa, justificam plenamente a nova ênfase que a ele se pretende dar, inclusive com a ampliação de sua abrangência para atender todas as crianças que a ele se candidatarem.

    O que importa observar, no entanto, Sr. Presidente, Srs. Senadores, é que o novo enfoque que passa a ser dado à problemática da infância nos Estados Unidos não tem para nós brasileiros interesse puramente acadêmico.

    Em sua mensagem à Assembléia Geral das Nações Unidas, em setembro de 1993, o Presidente Bill Clinton mencionou também um novo compromisso com as crianças de todo o mundo: "Assim como nosso próprio país iniciou novas reformas para garantir que todas as crianças dos Estados Unidos tenham cuidados de saúde adequados, devemos empenhar-nos mais para produzir vacinas básicas e outros tratamentos para doenças curáveis, para atender as crianças em todo o mundo. Esse será o nosso melhor investimento."

    Cabe ao Governo e às forças vivas da sociedade brasileira, Srs. Senadores, não apenas envidar todos os esforços para trazer para nossas crianças o auxílio internacional que, aparentemente, começará a fluir em maior volume. Cumpre, ainda, reconhecer a verdade da assertiva feita pelo primeiro mandatário norte-americano: não existe investimento melhor do que aquele a ser feito nas crianças de todo o mundo. Devemos, nós também, fazer a nossa parte. Diversos países mais pobres do que o Brasil realizaram conquistas significativas no sentido de levar os benefícios básicos do progresso a todos os seus cidadãos. É hora de dar absoluta prioridade àqueles que, através da história do Brasil, têm sido sempre relegados ao esquecimento.

    Era o que eu tinha a dizer, Sr. Presidente. (Muito bem!)


Este texto não substitui o publicado no DCN2 de 11/02/1994 - Página 701