Discurso no Senado Federal

HOMENAGEM PELO TRANSCURSO DOS 80 ANOS DE DEOSCOREDES MAXIMILIANO DOS SANTOS, MESTRE DIDI, A MAIOR FIGURA VIVA DA TRADIÇÃO RELIGIOSA AFRO-BRASILEIRA.

Autor
Abdias Nascimento (PDT - Partido Democrático Trabalhista/RJ)
Nome completo: Abdias do Nascimento
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • HOMENAGEM PELO TRANSCURSO DOS 80 ANOS DE DEOSCOREDES MAXIMILIANO DOS SANTOS, MESTRE DIDI, A MAIOR FIGURA VIVA DA TRADIÇÃO RELIGIOSA AFRO-BRASILEIRA.
Aparteantes
Eduardo Suplicy.
Publicação
Publicação no DSF de 18/10/1997 - Página 22282
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM, ANIVERSARIO DE NASCIMENTO, DEOSCOREDES MAXIMILIANO DOS SANTOS, LIDER, TRADIÇÃO, CRENÇA RELIGIOSA, CULTURA AFRO-BRASILEIRA, ESTADO DA BAHIA (BA).

O SR. ABDIAS NASCIMENTO (Bloco/PDT-RJ. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, sob a proteção de Olorum, inicio este pronunciamento.

Se a cultura africana é a principal matriz da cultura brasileira, a religião constitui o ponto focal de onde essa cultura se irradiou. Pois é na prática religiosa que se encontram os elementos constitutivos da visão de mundo e da cosmogonia africanas, onde se expressam com maior profundidade e clareza os traços fundamentais que caracterizam a maneira africana de ser e estar no mundo. Não foi à toa que os europeus, ao invadirem e ocuparem o continente africano, buscaram sempre destruir ou, pelo menos, neutralizar as manifestações religiosas, que percebiam claramente como o principal esteio ideológico a sustentar a identidade individual e de grupo, sem a qual os africanos seriam presa fácil da exploração e da inferiorização humana promovidas pelos "colonizadores".

Transplantadas para as Américas com o tráfico de africanos escravizados, as religiões africanas aqui desenvolveram, como forma de sobrevivência, a estratégia do disfarce e do silêncio. Nesse contexto, a oralidade impôs-se como necessidade, não apenas do ponto de vista de sua dinâmica interna, mas também, e principalmente, de seu posicionamento de defesa diante da cultura branca dominante. Daí o primado da tradição, que, num sistema de comunicação oral, constitui o veículo de conservação e transmissão do saber, através do tempo e do espaço, entre as gerações.

É assim, com enorme respeito e admiração que subo hoje a esta tribuna para prestar minha homenagem à maior figura viva da tradição religiosa afro-brasileira, que encarna em si mesmo toda a força, poder e mistério de um sistema de crenças que persistiu a séculos de massacre físico e psicológico. Refiro-me a Deoscóredes Maximiliano dos Santos, Mestre Didi, o Assogbá do Axé Opô Afonjá, uma das mais importantes comunidades religioso-culturais afro-brasileiras. Nascido em Salvador, Bahia, em 1917, filho da respeitada sacerdotisa Mãe Senhora, Mestre Didi é descendente de uma antiga linhagem de sacerdotes dos cultos de origem ketu-nagô. Tendo alcançado ainda a convivência com africanos na Ilha de Itaparica, foi iniciado aos oito anos de idade no culto dos ancestrais - o culto dos eguns -, tendo recebido o título de Korikouê Olkukotun; e, aos 15, no culto dos orixás. Ainda adolescente, foi investido com vários títulos e funções na complexa hierarquia das duas comunidades religiosas, afirmando-se como líder natural da tradição afro-brasileira. Em 1936, pelas mãos da ialorixá Obabiyi - Eugênia Ana dos Santos, a famosa Mãe Aninha -, é confirmado Assogbá, supremo sacerdote do culto de Obaluaiê, no Axé Opô Afonjá, uma das comunidades mais ortodoxas e fiéis aos ensinamentos e tradições transmitidos pelos seus fundadores africanos. Membro mais velho da linhagem dos Axipá no Brasil, em 1968 foi ordenado Balé-Xangó, numa histórica cerimônia realizada na cidade de Oyo, Nigéria, de onde o culto, assim como seus próprios antepassados, foram trazidos para a Bahia quase dois séculos atrás.

Em 1949, Mestre Didi publica, pela editora e livraria Moderna, seu primeiro livro, Iorubá Tal Qual se Fala, um dicionário e vocabulário Iorubá-Português, no qual chama a atenção para a existência e persistência da utilização de uma língua africana como meio de identificação e comunicação de grupos afro-brasileiros concentrados nos templos ou terreiros do candomblé. É o início de uma vasta obras, incluindo livros e ensaios, sobre a cultura oral afro-brasileira. Uma obra que inclui: Axé Opô Afonjá, com prefácio de Pierre Verger e notas de Roger Bastide, editado no Rio de Janeiro em 1962, pelo Instituto de Estudos Afro-Asiáticos; Contos de Nagô (1963), com ilustrações de Carybé, pela GRD do Rio de Janeiro; West African Rituals and Sacred Art in Brazil, em co-autoria com sua esposa, a Antropóloga Juana Elbein dos Santos, editado em 1967, pelo Instituto de Estudos Africanos da Universidade de Ibadan, Nigéria; Um Negro Baiano em Ketu, edição do Jornal A Tarde, Salvador, 1968; Ancestor Worship in Bahia: The Egun Cult, editado pelo Journal des Americanistes, no 48º Encontro das Sociétés des Americanistes, Paris, 1969; Eshu Bara Laroyê: A Comparative Study, pelo Instituto de Estudos Africanos da Universidade de Ibadan (1971); Eshu Bara: Principle of Individual Life in the Nago System, mais uma vez em colaboração com Juana Elbein dos Santos, publicado em 1973, na coletânea La Notion de Personne en Afrique Noire, edição do Centre National de Recherche Scientifique, de Paris; Religião e Cultura Negra na América Latina, em co-autoria com Juana Elbein dos Santos, publicado pela Unesco, em 1977, em co-edição com a Siglo XXI, na coletânea África na América Latina; Contos de Mestre Didi, editado pela Codecri, do Rio de Janeiro, 1981; Por que Oxalá usa Ekodidé, Fundação Cultural do Estado da Bahia, Salvador, 1982; The Nago Culture in Brazil: Memory and Continuity, na coletânea African Studies, edição da Unesco, Paris, 1985; Xangô, El Guerrero Conquistador y Otros Cuentos de Bahia, Buenos Aires, SD, 1987; no mesmo ano, Contes Noires de Bahia (Brésil), Paris, Editions Khartala; Mito da Criação do Mundo, com litogravuras de Adão Pinheiro, Editora Massangana, Recife, 1988; História de um Terreiro Nagô, pela Max Limonad, São Paulo, 1989.

Fiz questão de citar individualmente cada um dos componentes dessa lista exaustiva apenas para ressaltar o fato de um autor brasileiro, com uma vasta obra publicada em vários países de diferentes continentes e em diversos idiomas, ser virtualmente desconhecido em sua própria terra. Talvez por não ser um branco falando sobre o negro, mas, sim, um autêntico produtor da cultura afro-brasileira, dotado de suficiente capacidade e ousadia para exprimir, com a própria voz, a visão e os anseios de sua comunidade.

De par com seus deveres religiosos e sua obra literária, Mestre Didi elaborou e desenvolveu também, desde a sua adolescência, um importante trabalho na área das artes plásticas - particularmente depois de ter sido eleito chefe do culto de Obaluaiê, e, como tal, estar incumbido da função e responsabilidade do manejo dos materiais sagrados e de zelar pela tradicional execução de emblemas e paramentos rituais. Em 1964, realizou em Salvador sua primeira exposição individual, início de uma carreira que o consagraria como o artista mais expressivo e autêntico da tradição africano-brasileira. Estados Unidos, Argentina, França, Inglaterra, Nigéria, Gana - esses são alguns dos países em que ele expôs, em mostras individuais e coletivas, suas belas e elegantes esculturas, elaboradas com materiais como couro, búzios, contas, sementes e nervura de palmeira. Nelas se fazem presentes os elementos plásticos dos modelos tradicionais em novas concepções, esculturas-objetos diretamente inspiradas no significado dos símbolos em suas relações míticas, testemunhando explorações estéticas profundamente ligadas, do ponto de vista formal e conceitual, à cultura de que se originam. Como explica o pesquisador Marco Aurélio Luz, "o valor máximo da arte escultórica de Mestre Didi está em conseguir estabelecer um padrão estético original que harmoniza a passagem do espaço no contexto das recriações profanas, mantendo a complexidade simbólica e a profundidade das elaborações sagradas".

Tudo isso valeu a Mestre Didi uma profusão de prêmios e menções elogiosas, inscrevendo o seu nome na reduzida galeria dos artistas plásticos brasileiros, de qualquer origem, considerados dignos de tal reconhecimento. Uma vez mais, porém, isso não lhe trouxe a merecida fama fora dos círculos especializados.

Mas as notáveis contribuições de Mestre Didi não se esgotam no terreno religioso e artístico. Desde 1967, a serviço da Unesco, tem realizado, especialmente na Nigéria e no Benim, importantes pesquisas a respeito de pontos especiais de origem dos afro-brasileiros de ascendência nagô. Ao mesmo tempo, suas preocupações com o destino da cultura e do povo de origem africana no Brasil o levam a atuar em organizações identificadas com esses mesmos propósitos. É o caso da Secneb - Sociedade de Estudos da Cultura Negra no Brasil, de Salvador, na qual foi escolhido, em 1974, conselheiro e coordenador de assuntos comunitários. Na mesma linha, cabe destacar o notável trabalho educativo realizado pela Secneb, em conjunto com o Axé Opô Afonjá, que funcionou por quase dez anos: a Minicomunidade Obá-Biyi - uma escola que incorporou ao seu currículo, bem como à sua prática pedagógica como um todo, os elementos fundamentais da tradição africana no Brasil. Embora interrompida em função dos eternos problemas de recursos financeiros que infelizmente costumam acompanhar iniciativas dessa natureza, a Minicomunidade constitui um marco revolucionário na história da pedagogia no Brasil, tanto pela orientação pedagógica, que contemplava os elementos fundamentais da tradição nagô, quanto pela metodologia, caracterizada pelo respeito à alteridade ou à diferença, fundamental num contexto de multirracialidade e pluriculturalismo. Ainda assim, e embora os alunos que por ela passaram apresentassem melhor aproveitamento dos conteúdos curriculares e sensível redução na evasão escolar, burocratas do Ministério da Educação resolveram cortar as verbas que a mantinham, sob a alegação de que se tratava de uma experiência "de cunho religioso". Com os novos ventos que sopram de Brasília, onde temos pela primeira vez um Presidente da República aparentemente preocupado em encaminhar soluções para a questão racial neste País, esperamos que esse importante projeto possa ser retomado.

Certa ocasião, no apartamento do casal Zora e Antônio Olinto, fiquei conhecendo Mãe Senhora, a respeitada sacerdotisa do Axé Opô Afonjá, da Bahia. Sentada numa poltrona imponente como um trono, Mãe Senhora indicou-me um assento próximo a ela. Colocou suas mãos sobre minha cabeça e respondeu a minha indagação: "Sim, você tem compromisso com os Orixás; mas sua tarefa não é dentro do terreiro. Sua missão é trabalhar pelos santos lá fora". Conhecer Mãe Senhora significou um reforço da velha amizade que me ligava a seu filho Deoscóredes Maximiliano dos Santos, ou Mestre Didi. Com Mestre Didi, tive o prazer de compartilhar uma experiência inesquecível, embora as palavras de Mãe Senhora me tivessem desestimulado de um aprofundamento maior nos ensinamentos e nos mistérios do candomblé.

Corria o ano de 1969 e eu, recém-chegado aos Estados Unidos, vivia o período inicial de um exílio que deveria prolongar-se por mais de uma década. Em Nova York eu havia retomado uma breve experiência, iniciada no Rio de Janeiro, pintando alguns quadros com motivos afro-brasileiros. Certo dia, recebi na casa em que estava hospedado a visita do Mestre Didi e de sua esposa Juanita. Mostrei a eles minhas tentativas pictóricas. Numa determinada tela, onde se viam Xangô e suas três esposas, na imagem de Oxum, Didi se deteve, apontando-a para Juanita. Trocaram um olhar significativo e eu os interpelei. Queria saber se, na minha superficial formação religiosa, havia cometido alguma barbaridade sacrílega. Porém, ambos acalmaram minha ansiedade, indagando como e por que eu havia colocado, no olho de Oxum, um símbolo de Ifá, o Orixá que vê o passado e o futuro, e conhece o destino dos seres humanos. Respondi-lhes que apenas havia expressado um impulso artístico, sem nenhuma outra intenção. Eles, então, me ensinaram que Oxum era o único Orixá a quem Ifá havia concedido o poder de, igual a ele, ver e conhecer a sorte dos homens e das mulheres. Mas a mim Oxum estava concedendo a graça de conhecer todas as dimensões dos seus poderes, por meio dos seus símbolos e emblemas rituais.

Assim, inspirado por esse encontro com Didi, tratei de ampliar aquele momento tão significativo da espiritualidade afro-brasileira em plena Nova York. Contatei um babalorixá norte-americano formado nos templos ñañigos de Cuba - o sacerdote Oseijema, que atualmente dirige uma comunidade-templo na Carolina do Sul. Oseijema preparou uma recepção à altura do Alapini afro-brasileiro. Localizado no Harlem, o templo de Oseijema anoiteceu iluminado, florido, com o corpo sacerdotal vestindo seus paramentos solenes. Os tambores soaram, enchendo a noite de ritmos quentes. E Didi foi recebido solenemente como um verdadeiro príncipe-sacerdote de sua raça. E ambos, Oseijema e Didi, naquele encontro, mais uma vez testemunharam a importância das religiões africanas como instrumentos de coesão e fortalecimento da cultura de um povo separado e dividido pela violência do colonialismo escravista.

Entretanto as peripécias do exílio me levaram a um périplo de um ano na Nigéria, Universidade de Ifé, na qualidade de professor-visitante. Entre os colegas havia um Babalaô, quero dizer, um sacerdote de Ifá, a quem solicitei que lesse para mim o opelê desse orixá. Foi uma cerimônia longa, demorada, ele falando iorubá, um intérprete traduzindo do iorubá ao inglês e minha esposa, Elisa Larkin do Nascimento, traduzindo o acentuado inglês nigeriano para o português. Em resumo, Ifá me dizia que quem me havia escolhido para filho não fora Xangô, conforme suposição de outros pais-de-santo que desconheciam a difícil iniciação no universo de Ifá. Este me afirmara que eu era um filho de Oxum. Aí então compreendi as palavras de Mãe Senhora e a razão daquela pintura que provocara o comentário de Mestre Didi.

Para ultrapassar as abstrações manipuladas pela produção mistificada da consciência, o negro é obrigado não apenas a se inserir corretamente no sistema social de classes, forçando a sociedade dominante a lhe abrir espaços como indivíduo e como coletividade. Deve também assumir seus outros aspectos reprimidos, em especial os que se relacionam à rica tradição cultural afro-brasileira, onde se encontram os elementos que lhe fornecem uma sólida identidade histórica. Desse ponto de vista, Mestre Didi constitui referência e referencial obrigatórios, exemplo e paradigma da humanidade afro-brasileira em sua luta secular pela afirmação de sua dignidade.

Assim, os 80 anos de Mestre Didi, que agora se completam, são motivo de comemoração e regozijo numa comunidade cujas tradições se fincam profundamente no respeito e reverência aos mais velhos como sustentáculos e transmissores da cultura. Para marcar a data, a Editora Pallas, do Rio de Janeiro, acaba de republicar "Por que Oxalá usa Ekodidé", em edição fac-símile da primeira edição, de 1966, com ilustrações de Lenio Braga. É nesse espírito que eu conclamo a todos a se juntarem a mim na emocionada saudação que faço a esse baluarte da cultura afro-brasileira:

Axé, Mestre Didi!

O Sr. Eduardo Suplicy (Bloco-PT-SP) - Senador Abdias do Nascimento, permite-me V. Exª um aparte?

O SR. ABDIAS DO NASCIMENTO (Bloco-PDT-RJ) - Com muito prazer, ouço o nobre Senador Eduardo Suplicy.

O Sr. Eduardo Suplicy (Bloco-PT-SP) - Quero cumprimentar V. Exª pela extraordinária aula com que hoje premia o Senado Federal, que nos permitiu conhecer, com a profundidade que demonstra V. Exª, a tradição religiosa afro-brasileira. Em seu pronunciamento, V. Exª ressaltou que os colonizadores que foram à África procuraram acabar sobretudo com os valores religiosos do povo para que, com maior eficácia, explorassem e destruíssem muito daquilo que era importante para o desenvolvimento dos povos africanos. Nesta homenagem a Didi, V. Exª traz muito daquilo que nem todos nós brasileiros conhecemos e, assim, brinda-nos com uma síntese de obra tão importante. Senador Abdias do Nascimento, cumprimento V. Exª pelo discurso. Muito Axé!

O SR. ABDIAS NASCIMENTO (Bloco-PDT-RJ) - Agradeço o aparte de V. Exª e o incorporo ao meu pronunciamento.

Gostaria também de lembrar a V. Exª, que é representante do Estado de São Paulo, que Didi acaba de merecer, na última Bienal de São Paulo, uma sala especial para mostrar a importante obra escultórica que está realizando, em profunda conexão e simbologia com os terreiros de candomblé da Bahia.

Muito obrigado pelo seu aparte, que ajudou a reforçar as minhas palavras desta tribuna.

Muito agradecido a V. Exª.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 18/10/1997 - Página 22282