Discurso no Senado Federal

HOMENAGEM POSTUMA PELO TRANSCURSO DO PRIMEIRO ANO DA MORTE DO SENADOR DARCY RIBEIRO.

Autor
Abdias Nascimento (PDT - Partido Democrático Trabalhista/RJ)
Nome completo: Abdias do Nascimento
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • HOMENAGEM POSTUMA PELO TRANSCURSO DO PRIMEIRO ANO DA MORTE DO SENADOR DARCY RIBEIRO.
Aparteantes
Epitácio Cafeteira, Junia Marise, Ramez Tebet.
Publicação
Publicação no DSF de 05/03/1998 - Página 3319
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM POSTUMA, DARCY RIBEIRO, EX SENADOR, ESTADO DO RIO DE JANEIRO (RJ).

O SR. ABDIAS NASCIMENTO (Bloco/PDT-RJ. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs. e Srs. Senadores, sob a proteção de Olorum, inicio este pronunciamento.

É com orgulho e emoção que assomo hoje a esta tribuna para reverenciar uma das figuras mais ilustres e brilhantes de nossa História política e cultural contemporânea. Orgulho por ser seu sucessor nesta cadeira do Senado, de onde me esforço em honrar seu espírito luminoso e combativo. Emoção por estar aqui relembrando, não uma figura que conheci pelos registros da História, mas uma pessoa com a qual tive a oportunidade de compartilhar alegrias, sofrimentos, esperanças, no caminho de construirmos, ao lado de tantos outros companheiros, uma alternativa, uma possibilidade de futuro para o povo deste País. Refiro-me ao intelectual, ao político, ao educador, ao humanista, ao Senador Darcy Ribeiro, cujo primeiro aniversário de falecimento transcorreu aos 17 dias de fevereiro último, com quem mantive uma relação amiga e de cooperação intelectual desde a década dos cinqüenta até a sua morte.

Nascido na então bucólica Montes Claros, em 26 de outubro de 1922, Darcy Ribeiro absorveu em sua infância a rica cultura do interior mineiro, impregnada das influências matriciais européias, africanas e indígenas, que mais tarde, reelaboradas pelo seu gênio de poeta-cientista, o transformariam num dos co-fundadores da verdadeira identidade nacional. Aos três anos de idade, ficou órfão de pai - o que mais tarde, em suas saborosas Confissões, viria a considerar “muito confortável, já que não houve quem me domesticasse”. Criado pela mãe, Dona Fininha, mestra querida e mãe dedicada, viveu, em seus primeiros anos, uma vida de pobreza digna, que o aproximaria definitivamente dos segmentos excluídos de nossa população.

Em 1939, Darcy deixou para trás a cidade natal, rumo a Belo Horizonte - “um meninão boboca de pequena cidade do interior, precisando ser desfeito para ser refeito”, nas suas próprias palavras. Ia estudar Medicina, desejo de há muito acalentado por ele mesmo e por sua mãe, seguindo o exemplo do tio Plínio, “o homem mais culto da cidade”. A Belô de então era, a seus olhos, “enormíssima e belíssima”, “aberta em avenidas e ruas de larguras imensas”. Eram os tempos em que o prefeito Juscelino Kubitschek edificava o conjunto urbano da Pampulha, a cargo de Oscar Niemeyer, cujas obras nascentes encheram os olhos do jovem estudante. Nesse ambiente efervescia também uma cultura que iria produzir toda uma geração de escritores, intelectuais e políticos de enorme proeminência na vida brasileira. Não surpreende, assim, que, pouco atento às aulas de Medicina, ministradas durante o dia, Darcy passasse as noites em discussões, nos bares, com colegas que lhe mostravam a crueldade da ditadura do primeiro Getúlio, as lutas da democracia contra o Eixo, o reacionarismo do Estado Novo, a demagogia dos corais de Vila-Lobos, a nova literatura nacional de Jorge Amado, José Lins do Rego e Graciliano Ramos, que o encantou. Como o encantou também o primeiro contato com o ideário socialista, vilipendiado e cruelmente perseguido nestas terras, mas vitorioso no Velho Mundo, onde, após a batalha de Stalingrado, a União Soviética se consagrava na luta contra o nazi-fascismo. As marcas desse contato não se esvaneceriam. Mais tarde, diria ele: “Não sou comunista, nem marxista sou, mas sou discípulo, herdeiro de Marx, que vejo espantado como denominador comum de todas as ciências do homem.”

A atividade político-estudantil colocou o jovem Darcy em contato com o sociólogo norte-americano Donald Pierson, que com ele visitou as cidades históricas do interior mineiro, assombrando-se com a riqueza da cultura barroca. Surgiu daí a oferta de uma bolsa de estudos para a Escola de Sociologia e Política de São Paulo, oferta que Darcy, após ser dispensado do serviço militar, acabou aceitando. Foram, então, anos de agitação estudantil - Darcy era militante de carteirinha da UNE -, mas também de profícuos estudos e contatos no ambiente muito especial criado, na cidade e na universidade, por sábios franceses, ingleses, alemães, italianos e norte-americanos. Luminares como o próprio sociólogo Pierson, o alemão Emille Willems, antropólogo, e Herbert Baldus, etnólogo e poeta, os sábios franceses Lèvi-Strauss e Roger Bastide, o inglês Radcliffe Brown... Uma plêiade em que também brilhavam nomes de brasileiros como o historiador Sérgio Buarque de Holanda.

Em 1946, após obter o diploma em Antropologia, Darcy faz uma opção de carreira que causa estranheza aos seus amigos e familiares: vai ocupar o cargo de etnólogo no então Conselho Nacional de Proteção aos Índios. Vai passar também, segundo ele mesmo, os melhores anos de sua vida, quando, dedicando-se ao estudo dos indígenas do interior da Amazônia, ganha prestígio como intelectual brasileiro de pensamento absolutamente original. Sua família, e sobretudo sua mãe, só percebeu que o filho não fracassara quando este, em 1950, ganha o prêmio Fábio Prado de ensaios pelo livro Religião e mitologia kadiwéu. “Foram os jornais, chegando a Montes Claros com o meu retrato, que convenceram minha gente de que eu não era um caso totalmente perdido.”

Anos depois, Darcy se indagava: “(...) por que me meti no mato, com os índios? Por que lá permaneci, atrelado à natureza e a eles, por tanto tempo? Sei lá. Curiosidade intelectual, me incentivando uma carreira de pesquisador profissional? Essa bem podia ser minha motivação principal. Insatisfação que se oferecia a mim, em São Paulo, ganhando dinheiro, ou na boa vida do Rio? Também podia ser. Creio que todas essas coisas funcionaram, mas o que me reteve lá anos e anos foi, acho agora, o encantamento pelo Pantanal e depois pela Amazônia, um deslumbramento com a humanidade índia, tão ínvia e tão essencial.”

Dois anos depois, em 1952, Darcy Ribeiro assume a direção do Setor de Estudos do Serviço de Proteção ao Índio, com o apoio do Marechal Cândido Rondon, então Presidente do Conselho Nacional de Proteção aos Índios. Nessa qualidade, foi responsável pela fundação, em 1953, do Museu do Índio, que a Unesco destacou como o primeiro do mundo a ser criado com o propósito de quebrar o preconceito contra os indígenas.

O Sr. Epitacio Cafeteira (PPB-MA) - Permite-me V. Exª um aparte?

O SR. ABDIAS NASCIMENTO (Bloco/PDT-RJ) - Com muito prazer.

O Sr. Epitacio Cafeteira (PPB-MA) - Nobre Senador Abdias Nascimento, o Senador Darcy Ribeiro foi, na realidade, um vitorioso na vida. O seu amor pela nação indígena foi registrado inclusive no meu Estado, o Maranhão, onde realizou estudos sobre os índios do vale do Turiaçu. Mas eu não queria ressaltar seus feitos, porque uma sessão seria pouco para falarmos sobre a figura de Darcy Ribeiro, bem como uma semana, porque S. Exª, na realidade, dedicou a sua vida à nossa terra, ao Brasil. Sofreu constrangimentos, mas jamais se abateu. As suas maiores características eram o amor ao índio e o amor à cultura, não para o seu próprio proveito, mas para que o povo pudesse ser culto. Então, a passagem pela vida de Darcy Ribeiro é algo que enriquece a História do Brasil. Darcy Ribeiro foi um vitorioso em tudo, inclusive venceu um câncer. Na década de 70 permitiram que Darcy Ribeiro, então cassado e exilado, viesse morrer no Brasil. Ele voltou e venceu o câncer. Só na década de 90 um outro câncer chegou para levá-lo do nosso convívio. Nesses 20 anos de sobrevida, de nova vida, ele prestou serviços inestimáveis a este País, inclusive o trabalho feito aqui no Senado, quando examinou a legislação sobre Educação. Congratulo-me com V. Exª, que requereu esta sessão para que pudéssemos homenagear Darcy Ribeiro. Nobre Senador, sinto-me pequeno diante de uma figura tão grande como Darcy Ribeiro, único Senador que passou por esta Casa e foi por todos reverenciado, apesar de ter sido discriminado pelo regime militar. Darcy Ribeiro conseguiu vencer o regime e as suas idiossincrasias. Retornando para cá, ele faleceu, passou para o andar de cima, deixando uma lição de grandeza, de brasilidade, de amor aos índios, ao povo, à vida e principalmente à terra brasileira. Parabenizo V. Exª pelo brilhante discurso.

O SR. ABDIAS NASCIMENTO (Bloco/PDT-RJ) - Agradeço o aparte de V. Exª, que só contém verdades a respeito do nosso querido Darcy Ribeiro.

O Sr. Ramez Tebet (PMDB-MS) - Permite-me V. Exª um aparte?

O SR. ABDIAS NASCIMENTO (Bloco/PDT-RJ) - Ouço V. Exª com muito prazer.

O Sr. Ramez Tebet (PMDB-MS) - Senador Abdias Nascimento, fico agradecido a V. Exª por me conceder este aparte. Em verdade, não me inscrevi para ser um daqueles que pudesse, com a minha modesta voz, prestar a justa homenagem àquele que, sem dúvida nenhuma, foi um grande brasileiro. Represento Mato Grosso do Sul, Senador Abdias Nascimento, e por lá também Darcy Ribeiro, como antropólogo e como educador, deixou marcas indeléveis. Assim, peço permissão a V. Exª para que aceite no seu pronunciamento a minha voz, como representante de Mato Grosso do Sul, na homenagem, na reverência à memória de Darcy Ribeiro, com quem convivi nesta Casa - e que convivência agradável; e o quanto de civismo ele transmitiu a todos nós aqui no Senado da República. Digo mais, Senador Abdias Nacimento, sem medo de errar, se hoje temos uma lei fundamental para a educação, a educação que Darcy Ribeiro tanto defendeu, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, se temos essa lei hoje devidamente aprovada e em vigor no País, sem dúvida alguma, devemos isso a Darcy Ribeiro, porque essa matéria foi relatada e teve como principal artífice a figura do Senador. Bastava isso para consagrá-lo definitivamente. Mas foi essa, talvez, a sua última grande contribuição ao nosso querido Brasil. Muito obrigado a V. Exª por permitir que pudesse interromper o seu brilhante pronunciamento para nele inserir não a minha voz, mas a voz de Mato Grosso do Sul.

O SR. ABDIAS NASCIMENTO (Bloco/PDT-RJ) - Sinto-me muito honrado com o seu aparte e também com essa solidariedade de Mato Grosso do Sul. Muito obrigado a V. Exª.

A Srª. Júnia Marise (Bloco/PDT-MG) - Permite-me V. Exª. um aparte?

O SR. ABDIAS NASCIMENTO (Bloco/PDT-RJ) - Permite-me V. Exª que continue a leitura de mais um trecho? Logo em seguida concederei um aparte a V. Exª.

A Srª. Júnia Marise (Bloco/PDT-MG) - Perfeitamente.

O SR. ABDIAS NASCIMENTO (Bloco/PDT-RJ) - Nobre Senadora, tenho receio de não concluir o meu pronunciamento, pois ainda estou no seu início. Um minuto mais, Srª. Senadora, e já lhe concederei um aparte.

Continuo, Sr. Presidente.

Era preocupação de Darcy que a antropologia brasileira deixasse de ser uma “primatologia” ou “barbarologia”, que só olha os índios como fósseis vivos do gênero humano, como se esses só importassem como objeto de estudo. O acúmulo de experiências e vivências de Darcy mostrou-lhe os indígenas como gente capaz de dor, de tristeza, de amor, de gozo, de desengano, de vergonha. “Gente que sofria a dor suprema de ser índio num mundo hostil, mas ainda assim guardava no peito um louco orgulho de si mesmos como índios. Gente muito mais capaz que nós de compor existências livres e solidárias. (...) Assim foi que aprendi a olhar os índios com os olhos deles mesmos.” Assim disse Darcy.

Conduzido pela mão amiga de Anísio Teixeira, Darcy Ribeiro passa a se dedicar à educação, tanto primária quanto superior. A partir de uma central no Rio de Janeiro, que era o Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais, monta-se uma rede desses centros junto a universidades e grupos intelectuais em São Paulo, Belo Horizonte, Salvador, Recife, Curitiba e Porto Alegre. A empreitada reunia gente como Thales de Azevedo, Gilberto Freyre, Abgar Renault e Fernando Azevedo. A idéia básica era interessar a universidade brasileira e a intelectualidade, de maneira geral, em integrar a educação no seu campo de estudos, como se fazia em medicina e engenharia. Em 1955, com a eleição de Juscelino Kubitschek à Presidência da República, é convidado a auxiliar Anísio Teixeira, agora Presidente do INEP, na elaboração das primeiras diretrizes e bases da educação nacional, a cujo aperfeiçoamento continuaria se dedicando décadas mais tarde. Um dos pontos fulcrais do debate da proposta no Congresso foi a questão da formação do magistério primário. Seus opositores, a direita, queriam, em nome da liberdade de ensino, transferir o curso de ingresso no curso normal do princípio dele para o fim. Com isso pretendiam deixar livre quem quisesse criar escolas normais. Com a aprovação da lei, isso acabou se convertendo num negócio que multiplicou geometricamente o número de cursos normais, na mesma medida em que degradou a formação do professorado de maneira irreparável.

“O que se debatia, em essência” - diria Darcy mais tarde - , “era, por um lado, o caráter da educação popular que se devia dar e, por outro lado, como destinar ao ensino popular os escassos recursos públicos disponíveis para a educação. Não nos opusemos jamais à liberdade de ensino no sentido de direito, de quem quer que seja, a criar qualquer tipo de escola às suas expensas, para dar educação do colorido ideológico que deseja. Nos opúnhamos, isso sim, em nome dessa liberdade, a que o privativismo se apropriasse, como se apropriou, dos recursos públicos para subsidiar escolas confessionais ou meramente lucrativas.” O ideal de Anísio Teixeira, abraçado por Darcy, era o de uma escola pública democrática, tal como aquela pensada por Dewey, destinada a abrir uma porta para que o povo brasileiro ingressasse na civilização moderna, fundada numa cultura letrada. Uma escola capaz de interromper o perverso processo de multiplicação que tem renovado, desde sempre, a população brasileira, mantendo-a igual a si mesma, ou seja, ignorante e faminta. Mas devotada ao trabalho, servil ou livre, sempre temente a Deus, conformada com seu triste destino sobre a Terra.

A Srª Júnia Marise (Bloco/PDT-MG) - Permite-me V. Exª um aparte?

O SR. ABDIAS NASCIMENTO (Bloco/PDT-RJ) - Pois não. Ouço o aparte de V. Exª, nobre Senadora Júnia Marise.

A Srª Júnia Marise (Bloco/PDT-MG) - Nobre Senador Abdias Nascimento, V. Exª presta - e eu estou, inclusive, quebrando o protocolo e ficando de pé para agradecer a oportunidade do aparte a V. Exª - uma homenagem ao saudoso, querido e grande brasileiro Darcy Ribeiro. A iniciativa de V. Exª, autor do requerimento subscrito e apoiado por vários outros nobres Senadores, tem, hoje, um momento histórico e especial. Eu não falo apenas como amiga que sempre fui de Darcy Ribeiro, mas também em nome de todos os mineiros, porque foi Minas Gerais o berço de Darcy Ribeiro. Nascido no norte de Minas, na cidade de Montes Claros, ele aprendeu a conviver com as dificuldades da gente de uma das regiões mais pobres e mais sofridas do nosso Estado. Darcy Ribeiro transcendeu as fronteiras de Minas para se transformar no mineiro que se entregou ao Brasil na sua proposta, na sua luta, no seu ideal, no seu sonho de transformações sociais em nosso País. Darcy Ribeiro foi o exemplo e a grande bandeira da resistência democrática nos momentos do autoritarismo no nosso País. Darcy Ribeiro retomou a sua atividade política como Vice-Governador do eminente Governador Leonel Brizola. Chegou ao Senado da República não apenas como porta-voz dos seus eleitores do Rio de Janeiro, mas como porta-voz de todos os brasileiros, principalmente daqueles mais oprimidos. Defendeu as minorias como nunca, defendeu os negros, defendeu os índios como defendeu as mulheres. Darcy foi uma âncora, na vida pública deste País, compreendeu a necessidade de ser o intérprete, o sentimento e a voz das minorias. Como Senador, Darcy Ribeiro deixou uma marca indelével não apenas no presente mas para o futuro do Brasil. Foi o Relator da Lei de Diretrizes e Bases da Educação e abriu o debate dessa matéria para a sociedade, para os todos os segmentos envolvidos, o da cultura, o da arte e o da educação, para que pudessem, sim, concretizar um modelo de educação capaz de combater o analfabetismo e de dar educação a todas as crianças deste País em idade escolar. Foi exatamente pela iniciativa de Darcy Ribeiro, que, de forma democrática, possibilitou a todos nós, Senadores, o encaminhamento e a discussão das emendas para aperfeiçoamento desse projeto, que nós pudemos, enfim, que tivemos oportunidade de aprovar aqui o parecer e o substitutivo Darcy Ribeiro, sancionado pelo Presidente da República, que deu à nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação o nome de Lei Darcy Ribeiro. Portanto, Senador Abdias Nascimento, para não lhe tomar muito tempo - V. Exª está discorrendo com sensibilidade e, acima de tudo, como o Senador que substituiu Darcy Ribeiro nesta Casa e que tão bem está projetando a sua luta, o seu trabalho em defesa das minorias -, quero dizer que V. Exª deixa registrado nos Anais do Senado Federal um vasto currículo de Darcy Ribeiro no transcurso - que o Brasil comemora saudosamente - do primeiro aniversário de sua morte. Nós, seus amigos, enquanto convivemos com ele, tivemos oportunidade de conhecê-lo cada vez mais, no Senado Federal, mas, sobretudo como companheira de Partido. Darcy Ribeiro tinha em seu coração a bandeira do Partido Democrático Trabalhista, PDT, e com ela ele se compunha na formação da sua trincheira de luta em favor de um País socialmente justo, em favor da cultura, da educação, do Brasil. Por isso, agradeço a oportunidade, Senador Abdias Nascimento, de poder, por meio deste aparte, expressar também o sentimento de Minas Gerais, dos conterrâneos de Darcy Ribeiro, de todo o Brasil, pela perda, que aconteceu há um ano, desse homem que dedicou a sua vida ao trabalho, à luta pelo nosso Brasil. Ele vai ficar sempre na memória de todos os brasileiros.

            O SR. ABDIAS NASCIMENTO (Bloco/PDT-RJ) - Muito obrigado a V. Exª.

Em 1959, Darcy Ribeiro recebe um de seus mais importantes encargos: criar a Universidade de Brasília. Amplamente discutido com a cúpula da SBPC e com os principais intelectuais brasileiros, o projeto de Darcy pretendia criar uma universidade que não repetisse o modelo existente, mas que, ao contrário, inovasse o ensino superior brasileiro. Nas palavras de Darcy, em vez de uma universidade-fruto, inspirada nos velhos modelos, uma universidade-semente.

A implantação da UnB foi caracterizada, como não poderia deixar de ser, pelo conflito entre as forças reacionárias, que nela enxergavam - e com razão - mais uma ameaça à posição de que desfrutavam, e aqueles que viam na universidade democrática uma porta para o futuro. Com a renúncia de Jânio Quadros e a posse de João Goulart, em 1961, Darcy Ribeiro é nomeado, em agosto de 1962, para um de seus mais altos cargos na vida pública, o de Ministro da Educação. Vivia-se um dos períodos mais conturbados de nossa história recente, encerrado pelo golpe militar de 1964, que obrigou Darcy a buscar o exílio no Uruguai. Mal chegado a Montevidéu, foi imediatamente contratado como professor de Antropologia da Universidad de la República, posteriormente encarregado de presidir o seminário de reformas da universidade - segundo ele, a tarefa mais gratificante de sua vida. Foi, de fato, um período fecundo, em convivência com intelectuais uruguaios, com os quais Darcy produziu uma bela e lúcida “Enciclopédia da cultura uruguaia”. Foi também nesse período que ele começou a escrever seus “Estudos de antropologia da civilização”, série composta por seis livros fundamentais para a antropologia brasileira, em que tenta interpretar globalmente o processo de formação dos povos americanos. Entre 1968 e 1977, passa pela Venezuela, o Chile e o Peru. Visita o Brasil algumas vezes, mas seu retorno definitivo seria em 1978, em plena “distensão” comandada por Ernesto Geisel. Dedica-se, então, a uma paixão antiga, promovendo inúmeras campanhas em defesa dos povos indígenas. No ano seguinte, ao lado de inúmeros outros brasileiros, é beneficiado com a assinatura da lei de anistia a todos os punidos pelo movimento de 1964.

Fortalecida durante os anos de exílio, a amizade com outro “retornado”, Leonel Brizola, marcaria a volta de Darcy ao Brasil:

Reintegrados no quadro político graças à anistia, nosso primeiro objetivo” - diria Darcy - “foi reconquistar a velha legenda do Partido Trabalhista Brasileiro, legenda historicamente nossa, e que só nós podíamos conduzir com dignidade. Ainda no exílio, Brizola promoveu duas reuniões em Lisboa, com o objetivo de definir o programa do futuro PTB. Escrevi os estatutos do novo PTB e entramos em luta judicial em Brasília contra uma aventureira, Ivete Vargas, que, associada ao General Golbery, disputava a mesma legenda. Ela ganhou. (...) Pouco depois, Doutel de Andrade me procurava para escrever um novo estatuto. Agora para o Partido Democrático Trabalhista, que seria a nossa trincheira. Com essa legenda, voltamos à vida política.

Eleito, com Brizola, Vice-Governador do Rio de Janeiro, em 1982, Darcy Ribeiro lançou o mais amplo e ambicioso projeto educacional que o Brasil já conheceu: o Programa Especial de Educação, responsável pelos tão famosos quanto injustiçados Cieps. Com eles, cristalizava-se, pela primeira vez no Brasil, aquilo que é comum no ensino público de todo o mundo civilizado: escolas de tempo integral para alunos e professores, dotadas das condições indispensáveis para que as crianças oriundas de famílias pobres, que não tiveram escolaridade prévia, possam progredir nos estudos e completar o curso fundamental. Para Darcy e seus colaboradores, assegurar isso a todas as crianças é o único modo de integrar o Brasil à civilização letrada, dissolvendo as imensas massas marginalizadas de brasileiros analfabetos.

Por acreditar nesses ideais, foi para Darcy o maior golpe de sua vida ver esse programa ser abandonado, em plena realização, por puro sectarismo político, pelo Governo seguinte. Assim, 360 mil crianças, quase todas de áreas pobres, foram tiradas do regime integral e devolvidas à rua, ao lixo, à delinqüência. Sem equipamentos, sem professores, sem manutenção, os 500 Cieps construídos no programa de Darcy Ribeiro constituem tristes monumentos à miopia política e cultural, bem como ao reacionarismo de nossas elites, interessadas em manter o povo ignorante para dominá-lo com maior facilidade.

Outra realização educacional de Darcy Ribeiro em associação com Leonel Brizola é a Universidade Estadual do Norte Fluminense. Edificada e implantada na cidade de Campos, num conjunto universitário projetado por Oscar Niemeyer, Darcy a via como a “Universidade do Terceiro Milênio”. Embora problemas políticos persistam atravancando sua efetiva implantação, Darcy morreu acreditando que os males que a afligem são apenas passageiros, pois “uma universidade feita para viver nas décadas e nos séculos deles se lavará com um banho de lixívia”.

Eleito para o Senado, Darcy Ribeiro não permitiu que a doença, que com ele travava uma luta de morte, o impedisse de lutar pelos valores em que sempre acreditou. Sua maior satisfação nesta Casa foi ver aprovada a sua nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação, fruto de mais de dois anos de trabalho árduo e contínuo. Igualmente emocionante foi ver aprovada a lei sobre doação de órgãos, da qual foi co-autor e responsável pela principal inovação - a chamada doação presumida.

Mesma sorte não tiveram outros projetos de mesma relevância, como o que prevê a introdução de repelentes na cola de sapateiro, para evitar que crianças a cheirem, ou seu projeto de reforma agrária, tema de magna relevância que ele sequer pôde ver discutido em nossa Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania.

Foram essas, contudo, apenas derrotas circunstanciais na trajetória de um homem vitorioso, autor de uma prosa caudalosa como um rio amazônico, com livros traduzidos em uma variedade de idiomas e publicados em mais de 20 países. Entre eles, “O Processo Civilizatório”, “Os Índios e a Civilização”, “Suma Etnológica Brasileira”, “Maíra” e “Utopia Selvagem”. Um homem que viveu, na plena acepção desse verbo. Que amou profusamente, que lutou em defesa de seus ideais, que propôs novos caminhos para a solução de antigos problemas! Um brasileiro imprescindível, que dedicou sua vida à causa dos menos afortunados. Mas que soube fazê-lo com alegria e bom humor, frutos de uma imensa generosidade e de uma infinita compaixão pela sorte de seus semelhantes!

Sr. Presidente, Srªs. e Srs. Senadores, ainda como uma homenagem a Darcy Ribeiro, que certamente estaria solidário se estivesse vivo, solicito a transcrição de um documento daqueles infelizes que foram vítimas de um desabamento na cidade do Rio de Janeiro.

Ainda chocada com a tragédia da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, em que oito pessoas faleceram, vítimas sobretudo da certeza da impunidade com que agem alguns setores de nossa classe dominante, a sociedade brasileira cobra das autoridades uma ação incisiva. Sobretudo de nós, membros do Congresso, para que um estatuto democrático em sua essência, como a imunidade parlamentar, não se transforme em abrigo de criminosos travestidos em representantes do povo.

Com esse objetivo, peço seja transcrito nos Anais desta Casa o texto abaixo, que me foi enviado pela Sociedade Civil Comunitária Barralerta.

Sr. Presidente, eram estas as minhas homenagens ao querido companheiro de PDT Senador Darcy Ribeiro.

Axé, Senador!


Este texto não substitui o publicado no DSF de 05/03/1998 - Página 3319