Discurso no Senado Federal

HOMENAGEM A DOM HELDER CAMARA, ARCEBISPO EMERITO DE RECIFE E OLINDA, PERNAMBUCO, PELO TRANSCURSO DE SEUS NOVENTA ANOS.

Autor
Pedro Simon (PMDB - Movimento Democrático Brasileiro/RS)
Nome completo: Pedro Jorge Simon
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • HOMENAGEM A DOM HELDER CAMARA, ARCEBISPO EMERITO DE RECIFE E OLINDA, PERNAMBUCO, PELO TRANSCURSO DE SEUS NOVENTA ANOS.
Publicação
Publicação no DSF de 24/03/1999 - Página 6088
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM, ANIVERSARIO, HELDER CAMARA, ARCEBISPO, IGREJA CATOLICA, MUNICIPIO, RECIFE (PE), OLINDA (PE), ESTADO DE PERNAMBUCO (PE), ELOGIO, ATUAÇÃO, BENEFICIO, DIREITOS HUMANOS, JUSTIÇA SOCIAL.

O SR. PEDRO SIMON (PMDB-RS. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, prezado Dom Marcelo, pode parecer estranho, mas gostaria de iniciar esse pronunciamento sobre Dom Hélder - que completou 90 anos no dia 7 de fevereiro - com um número, um número muito significativo é verdade.  

Segundo reportagem da publicada pela revista Veja, durante 20 anos, entre 1964 e 1984, Dom Hélder fez 800 viagens ao exterior, duas por mês. Todos aqueles que viveram os horrores do regime passado sabem que foram nessas viagens, durante as quais concedeu centenas de entrevistas e ministrou incontáveis palestras, que Dom Hélder Câmara acabou se constituindo o homem que mais danos causou à imagem externa do regime arbitrário aqui instalado.  

Lá fora, sem medo, ele mostrava ao mundo o que estava acontecendo realmente dentro do nosso Brasil. De outro lado, internamente, aqui no Brasil, Dom Hélder foi o cidadão brasileiro que mais sofreu o rigor da censura.  

Vejamos o que diz sobre a situação de Dom Hélder Câmara, durante o regime militar, um artigo publicado em setembro de 1981, na Revista de Cultura Vozes : "Os meios de comunicação do Brasil, pelos anos de censura e repressão, baniram a imagem e o seu nome foi prescrito. Prescrição por decreto. Único argumento do arbítrio. Foi censurado em sua própria rádio diocesana. O nome Hélder Câmara só aparecia nas colunas esportivas, com o seu homônimo "Campeão de Xadrez" - Dom Hélder Câmara, campeão de xadrez, aparecia nas colunas esportivas. Mas Dom Hélder Câmara sempre esteve presente entre o povo simples e na opinião pública mundial, onde foi-se tornando um verdadeiro mito.  

A muralha de silêncio que o arbítrio tentou erguer em torno de Dom Hélder Câmara só o fortaleceu. Por tudo que fez nos anos mais negros, quando o medo imposto pelo terror paralisava a maioria, Dom Hélder Câmara foi um dos principais inimigos do regime que infelicitou este País por cerca 20 anos.  

Além de dezenas de importantes prêmios que recebeu em todo o mundo, por seu trabalho em favor da dignidade humana, em defesa dos direitos humanos e religiosos, o religioso nordestino chegou a ser indicado, em 1970, para receber o Prêmio Nobel da Paz. E o Governo brasileiro fez chegar aos distribuidores do prêmio que seria considerado uma afronta ao Brasil se ele recebesse o prêmio. Tenho a honra de dizer que, quando Deputado Estadual, a Assembléia do Rio Grande do Sul aprovou uma Moção de Solidariedade pedindo que o prêmio fosse entregue a Dom Hélder Câmara.  

Dono de um currículo respeitável, participante destacado do processo que levou à reabertura democrática em nosso País, Dom Hélder Câmara foi um dos criadores da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil e, depois, da Campanha da Fraternidade. Preocupado com a miséria, com a fome e com o descalabro dos regimes em que vivíamos e que infelicitavam o nosso povo e o nosso continente, Dom Hélder Câmara participou do movimento que levaria à criação do Conselho Episcopal para a América Latina - Celam.  

Profundo conhecedor da realidade nordestina, homem angustiado com o sofrimento do seu povo, Dom Hélder Câmara esteve alinhado entre os bispos - e disse muito bem V. Exª - que influenciaram Juscelino Kubitschek a criar a Sudene, voltada para o Nordeste e, como disse muito bem V. Exª Revmª, o próprio Juscelino fez questão de salientar que a inspiração da Sudene estava na pessoa e nas propostas de Dom Hélder.  

Recentemente, referindo-se a Dom Hélder Câmara, importante teólogo disse à revista Época: "Ele é o verdadeiro pai da Teoria da Libertação. Foi o primeiro a praticá-la".  

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, se tivesse tempo e se V. Exª, com justa razão, não tivesse determinado que ele seja limitado - e é correto que assim o faça - gostaria de falar imensamente sobre muitos aspectos de Dom Hélder. Ele é indiscutivelmente, que me perdoem, o mais importante líder religioso do Brasil neste século. Já citei algumas das suas realizações, mas teria muitas outras a acrescentar. Se tivesse tempo, poderia lembrar o trabalho fantástico de Dom Hélder como bispo auxiliar do Rio de Janeiro na Cruzada de São Sebastião, tentando combater a miséria e as desgraças da favela do Rio de Janeiro. Se tivesse tempo, poderia relacionar, aqui, inúmeros episódios da história recente do Brasil que tiveram a participação de Dom Hélder. Mas quero, neste trecho, destacar as qualidades espirituais desse santo homem.  

É preciso ter em mente que a meta maior daquele que chegou a ser chamado de "bispo vermelho" - embora sempre se soubesse que nunca foi comunista -, tendo em vista o atendimento aos pobres e aos milhares de injustiçados. Como o Papa João Paulo II, Dom Hélder é fiel fervoroso de Nossa Senhora. Agora, que está aposentado, dedica a maior parte dos seus dias à oração e à meditação. E escreve poemas.  

Ao longo de sua vida, Dom Hélder foi sempre, acima de tudo, movido por um profundo sentimento religioso, cuja face mais visível era a solidariedade para com os mais fracos. Praticou humildade. Embora sendo um homem de projeção internacional, jamais aceitou os sinais visíveis do seu poder como bispo de uma grande diocese. Nunca envergou as ricas vestes, os paramentos bordados e os cajados a que têm direito os arcebispos.  

Aliás, vejamos o que relata a anteriormente citada reportagem da revista Cultura Vozes sobre sua moradia:  

"Deixou o Palácio Episcopal de São José de Manguinhos e foi morar nos fundos de uma velha igreja, em dois cômodos, sozinho e sem proteção."  

E acrescenta o articulista:  

"Lá o iria ver, numa noite escura, um rude sertanejo, que lhe entregou chorando a faca com que tinham encomendado a sua morte."  

Sr. Presidente, Srs. Parlamentares, busco concluir, lendo o trecho de dois capítulos do mais conhecido livro de Dom Hélder, que tem um título sugestivo: O Deserto é Fértil . Começo por parágrafos do capítulo cinco, intitulado "A Voz de Deus, agora". Escreveu Dom Hélder e, de certa forma, V. Exª Revmª, foi a voz de Deus que falou pela voz de V. Exª Revmª, na sua mensagem e, despreocupado com as nossas homenagens e com os louvores desta sessão, dá a esta Casa uma ordem, através da leitura que fez, da nossa responsabilidade, da nossa obrigação, daquilo que o Brasil espera de nós e do que somos obrigados a fazer. Despreocupado está Dom Hélder desta homenagem, que merece mas que, com ela, não se preocupa; entretanto, aproveitou a chance, mais uma, não poderia deixar de passar, para chamar a nossa atenção sobre a responsabilidade que temos.  

Começo por parágrafos do capítulo cinco, intitulado "A Voz de Deus, agora". Escreveu Dom Hélder:  

"Quem vive em áreas onde milhões de criaturas humanas vivem de modo subumano, praticamente em condições de escravidão, se não tiver surdez de alma, ouvirá o clamor dos oprimidos. E o clamor dos oprimidos é a voz de Deus.  

Quem vive em países desenvolvidos e ricos, onde existem zonas cinzentas de subdesenvolvimento e de miséria, se tiverem antenas espirituais, ouvirá o clamor silencioso dos sem-voz e dos sem-terra, e o clamor dos sem-vez, sem-voz e sem-terra, será a voz de Deus.  

Quem é despertado para as injustiças geradas pela má distribuição da riqueza, se tive grandeza d’alma, captará os protestos silenciosos ou violentos dos pobres. E o protesto dos pobres é a voz de Deus.  

Quem acorda para as injustiças nas relações entre países pobres e impérios capitalistas ou socialistas nota que, em nossos tempos, as injustiças já não ocorrem apenas entre indivíduos e indivíduos ou entre grupos e grupos, mas entre países e países. E a voz dos injustiçados é a voz de Deus."  

No capítulo sete, intitulado "O deserto Inevitável", diz Dom Hélder:  

"É bom que ninguém se iluda, ninguém aja de maneira ingênua: quem escuta a voz de Deus e faz sua opção interior e arranca-se de si próprio e parte para lutar pacificamente por um mundo mais justo e mais humano, não pense que vai encontrar caminho fácil, pétalas de rosa de baixo dos pés, multidões à escuta, aplausos por toda parte e, permanentemente, como proteção decisiva, a voz e a mão de Deus. Quem se arranca de si e parte como peregrino da justiça e da paz prepara-se para enfrentar os desertos", porque desertos terá pela frente.  

E concluiu o capítulo:  

"Quem não confia na própria força, quem se protege contra toda e qualquer amargura, quem se mantém humilde, quem se sabe nas mãos de Deus, quem não deseja senão participar de um mundo mais justo e mais fraterno, não desanima, não perde a esperança. E sente, invisível ,a sombra protetora do Pai."  

Sr. Presidente, já disse desta tribuna que a minha formação sociológica e política devo a Alberto Pasqualini, mas confesso a V. Exª que a maneira de eu conhecer a sociedade, a figura que na vida mais me impressionou, ao longo de toda a minha existência, foi Dom Hélder Câmara. Quando estava na presidência da junta governativa da UNE, em um determinado momento em que estávamos num tremendo entrevero, num grande debate, buscando o entendimento, fomos a Dom Hélder, bispo auxiliar do Rio de Janeiro. Impressionou-me a sua figura, acho que não pesava 45 quilos, baixinho, magrinho. Era difícil imaginar que algo realmente tão profundo viesse daquela figura. Um riso fantástico no rosto, um carinho espetacular. Fomos pedir a sua ajuda: que participasse da luta da UNE, a luta universitária do grande debate em torno das reformas universitárias no Brasil. Dom Hélder olhou para nós, sorriu: Meus filhos, é importante o trabalho de vocês, mas é muito importante que entendam que ao lado da luta ao qual está nos conclamando há um outro Brasil. Vocês têm que vir aqui olhá-lo; olhar os que têm a sua idade e não têm trabalho, não sabem escrever, não sabem nada, que não têm condições de ter existência; que vocês e o Brasil não sabem que existem. Foi quando conheci o trabalho que estava fazendo na favela de São Sebastião.  

Nunca esqueci daquele conselho. Nunca saiu dos meus ouvidos aquela orientação: vão adiante meus filhos, cada um tem que seguir a sua profissão, ser doutor, ser médico, ser advogado. Isso é muito importante, o Brasil precisa disso. Mas entendam sempre que vocês são uma elite, que não têm o direito de não olhar para trás e ajudar os que não conseguem isso, porque vocês também têm que lutar por eles, para que existam e tenham a vez que vocês estão tendo agora.

 

Lembro-me da outra vez, em 1964, quando Dom Hélder foi transferido logo depois da Revolução. Antes da Revolução - eu Deputado Estadual -, vínhamos com Lideranças do PTB do Rio Grande do Sul falar com o Jango aqui em Brasília, sabendo que a situação estava dramática, difícil. Passei pelo Rio de Janeiro e fui a Dom Hélder, que me disse: a situação está muito angustiosa. Eu e o Cardeal do Rio de Janeiro fomos ao Dr. João Goulart, no Palácio das Laranjeiras. Falamos com ele que a hora era muito difícil, que ele deveria estar preparado para podermos sair democraticamente daquela questão. Cinco dias depois do Golpe, os jornais noticiavam que ele havia ido levar solidariedade ao Sr. João Goulart pelas reformas e, dez dias depois, ele era transferido: primeiro, para São Luís do Maranhão, que era o Bispado vago. Mas, quando se preparava para assumir em São Luís, morreu o arcebispo de Olinda e Recife e, então, ele foi para lá.  

Foi cardeal na Bahia, com muito mérito; cardeal no Rio Grande do Sul, com muito mérito; cardeal em Belo Horizonte, com muito mérito; cardeal em Fortaleza, com muito mérito. Não tem cardeal em Recife, porque Dom Hélder não podia ser cardeal. Não tem importância. Não tem importância que não tivesse sido arcebispo do Rio de Janeiro, que seria seu lugar normal, de bispo-auxiliar passaria a cardeal do Rio de Janeiro. Não tem importância. Foi para Recife e lá iniciou o trabalho mais fantástico do que o do Rio de Janeiro, pois ninguém levou mais alto a voz, o grito, o protesto, o chamado da injustiça social neste País no que tange ao Nordeste.  

Aí também foi a vontade de Deus, foi a voz de Deus: "Tem muita gente cuidando do Rio de Janeiro. Vai lá, Dom Hélder, vai para o teu Nordeste, cuidar do Nordeste." E ele aceitou com humildade. Com humildade ele esteve lá. Com humildade ele ficou em Recife. Com humildade ele viu os cargos e as honrarias passarem diante de si. Por isso, o que mais me emocionou, o que me levou às lágrimas, na vinda do Papa ao Rio de Janeiro, transmitida pela Rede Viva , foi quando o Papa, ao entrar na catedral, viu no meio da multidão, longe, a figura de Dom Hélder e parou. Dom Héder teve que passar por dezenas de bispos para que o Papa, carinhosamente, beijasse a sua face. Foi um gesto realmente comovente para um homem que não teve respostas desse mundo, mas, na verdade, foi um grande pregador.  

E na Igrejinha, aonde vou aos domingos, a primeira construída por D. Sarah Kubitschek, leio alguns versos do Semanário Litúrgico da Missa do 5º Domingo da Quaresma, que posso dizer é como Dom Hélder queria a sua Igreja:  

"Somos povo de Deus que caminha ao convite que o Pai hoje faz:/ "Venham todos, trabalhem na Vinha, do meu Reino de vida e de paz!"  

Na esperança de um tempo melhor,/ "sem trabalho não fique ninguém,/ Com Jesus, nosso Mestre e Senhor, rumo ao novo milênio que vem!"  

Na alegria lançamos sementes,/ mesmo em lutas, trabalho e dor, / Esperando que brote a justiça,/ na partilha fraterna do amor!  

Convertei-nos, ó Pai, do pecado,/ do egoísmo, de toda a ambição!/ O trabalho, direito sagrado,/ dê a todos a casa e o pão!  

Nas famílias e na sociedade,/ com Jesus, com Maria e José/ festejemos a fraternidade,/ no trabalho, na vida, na fé!"  

É a tua Igreja, Dom Hélder, que prega a tua palavra.  

Muito obrigado. (Palmas)  

 

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Este texto não substitui o publicado no DSF de 24/03/1999 - Página 6088