Discurso durante a 181ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

ANALISE DA RIQUEZA LITERARIA BRASILEIRA, POR OCASIÃO DAS COMEMORAÇÕES DOS 500 ANOS DO DESCOBRIMENTO DO BRASIL. (COMO LIDER)

Autor
Lúcio Alcântara (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/CE)
Nome completo: Lúcio Gonçalo de Alcântara
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA CULTURAL.:
  • ANALISE DA RIQUEZA LITERARIA BRASILEIRA, POR OCASIÃO DAS COMEMORAÇÕES DOS 500 ANOS DO DESCOBRIMENTO DO BRASIL. (COMO LIDER)
Publicação
Publicação no DSF de 16/12/1999 - Página 35133
Assunto
Outros > POLITICA CULTURAL.
Indexação
  • ANALISE, PRODUÇÃO, OBRA LITERARIA, ESCLARECIMENTOS, FORMAÇÃO, PAIS, OPORTUNIDADE, COMEMORAÇÃO, ANIVERSARIO, DESCOBERTA, BRASIL.

O SR. LÚCIO ALCÂNTARA (PSDB - CE. Como Líder. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, dentro de poucos dias estaremos no ano 2000, ocasião em que o Brasil estará completando cinco séculos de sua inserção na História da Civilização Ocidental. Por isso, ao chegarmos ao fim de nossas atividades legislativas no corrente ano, imagino que, ao lado da análise retrospectiva que comumente se faz nesse período, estamos diante de bela oportunidade para refletir sobre nossa experiência histórica.  

Acredito que a melhor maneira de construir a Pátria com que sonhamos - em que os conceitos de justiça, democracia e cidadania transcendam seus aspectos formais, adquirindo densidade e consistência - pressupõe o conhecimento de nossa trajetória, a partir do que será possível buscar a superação das mazelas eventualmente produzidas e dos obstáculos que, pelos séculos afora, impediram a materialização de nossos melhores anseios.  

Creio que a grande questão que se estabeleceu em nosso País, a partir da independência política em 1822, foi a da identidade nacional. Com efeito, ao surgimento do Estado nacional correspondeu a tentativa, tanto simbólica quanto material, de construção de uma identidade brasileira: o que fomos, o que somos, o que queremos ser. Esse debate, estou absolutamente convencido, não perdeu sua atualidade. Às portas de um novo século e de um novo milênio, somos chamados a pensar sobre nós mesmos, aprofundando um debate que, desde o século XIX, envolve homens públicos, intelectuais e o homem comum.  

Portanto, a comemoração dos 500 anos do Brasil é uma excelente ocasião para refletirmos sobre a formação do nosso País, especialmente sobre os quase dois séculos de vida independente. Nesses anos foram produzidas inúmeras explicações sobre o Brasil, dissecando os mundos da cultura, da política, da economia, da sociedade, dos esportes. Sobre estes temas foram escritos milhares de livros.  

O nascimento do Brasil como Estado foi contemporâneo ao surgimento do romantismo. Os escritores e poetas românticos brasileiros, malgrado todos os problemas identificados pela crítica literária, foram aqueles que deram as primeiras formulações para o novo Estado no campo cultural, na construção de uma identidade nacional. A valorização da terra acabou por conduzir a um nacionalismo ingênuo, fruto, provavelmente, de uma independência sui generis na América, diversa do processo independentista dos Estados Unidos ou das colônias espanholas, o qual resultou de longos conflitos com suas respectivas metrópoles.  

Quando Gonçalves Dias escreveu a Canção do Exílio , em 1843, acabou dando uma moldura para o nascente nacionalismo. Era necessário demonstrar que o Brasil não era inferior a qualquer outro país, mas, paradoxalmente, o poeta buscou na natureza e não na sociedade, tal qual os primeiros cronistas, a raiz do seu nativismo. Casimiro de Abreu, contemporâneo de Gonçalves Dias, também não ficou atrás ao cantar a natureza brasileira.  

No decorrer do século XIX, muitos estrangeiros visitaram o nosso País, deixando observações "explicativas", enquanto outros escreveram sobre o Brasil, apesar de nunca o terem visitado. Houve quem identificasse nos ventos alísios a razão principal de nosso atraso; nesse caso, a natureza exuberante impediria a existência de um espírito criador entre nós. O Conde Artur de Gobineau, que ficou por 14 meses no Rio de Janeiro, como Embaixador da França, entre 1869 e 1870, aqui reforçou ainda mais suas teses racistas, afirmando a impossibilidade de uma civilização nos trópicos e, ainda pior, com a predominância de uma população negra.  

No mesmo momento, os românticos encontraram no indígena o protótipo do primeiro brasileiro com determinação e coragem. Boa parte da obra de José de Alencar - especialmente O Guarani e Iracema - tem no indígena o grande herói, assim como diversos poemas de Gonçalves Dias, tal qual I-Juca-Pirama, no qual é celebrada a bravura dos últimos tupis.  

Diferentemente de outros países da América, como o México, a idealização do indígena não permaneceu por muito tempo. A elite intelectual tinha os pés no Brasil, mas a cabeça na Europa. A sedução pela última moda européia não atingiu somente os meios literários, mas também as esferas do mundo social: a roupa, a diversão, a conversa.  

Joaquim Manuel de Macedo, escrevendo sobre a famosa Rua do Ouvidor, no Rio de Janeiro, ironizou a influência exercida pelas costureiras francesas instaladas naquela rua, que, "sem peças de artilharia, nem espingardas, nem espadas e apenas com tesoura e agulhas, fundaram, suave e naturalmente, e sem oposição nem protestos, a França Antártica, no Rio de Janeiro".  

Sílvio Romero, crítico literário e ferino polemista, depois de vários escritos em que atacou a herança negra e portuguesa, chegou à conclusão - isso em 1888 - de que "todo brasileiro é um mestiço, quando não no sangue, ao menos nas idéias".  

Daí tornava-se necessário valorizar a originalidade dos nossos intelectuais, aqueles que estavam trabalhando "para a determinação do nosso caráter nacional".  

O ano de 1888, Sr. Presidente, foi, como sabemos, fundamental na nossa História. A abolição da escravidão deu a impressão de que ocorreriam diversas transformações políticas. Os mais notáveis abolicionistas, especialmente Joaquim Nabuco e André Rebouças, desejavam que, juntamente com a abolição, ocorresse uma reforma no regime de propriedade da terra. A transformação do escravo em cidadão somente se daria com a extensão da pequena propriedade às centenas de milhares de negros recém-libertos. Dessa forma, teria início o processo de construção de um Brasil democrático. Portanto, não bastava simplesmente conceder liberdade formal ao negro, quando menos de 1% deles era alfabetizado.  

No clássico O Abolicionismo , Nabuco denunciou a escravidão, destruiu a família dos cativos e "reduziu a procriação humana a um interesse venal dos senhores; manteve toda aquela massa pensante em estado puramente animal; não a alimentou; não a vestiu suficientemente; roubo-lhe as economias, e nunca lhe pagou os seus salários; deixou-a cobrir-se de doenças e morrer ao abandono; tornou impossíveis para ela hábitos de previdência, de trabalho voluntário, de responsabilidade própria, de dignidade pessoal". Portanto, com o 13 de Maio, não veio a efetiva libertação dos negros.  

Em junho de 1889, com a designação de Afonso Celso, o Visconde de Ouro Preto, como chefe do Conselho de Ministros, aumentou a possibilidade da adoção de reformas sociais e econômicas anunciadas na última Fala do Trono, a oração pronunciada pelo Imperador na abertura de cada sessão legislativa: a criação de escolas técnicas, de duas Universidades, a adoção de um código civil e, principalmente, a concessão ao Governo do "direito de desapropriar, por utilidade pública, os terrenos marginais das estradas de ferro, que não são aproveitados pelos proprietários e podem servir para núcleos coloniais". Mas os acontecimentos de 15 de novembro de 1889 acabaram interrompendo algo que nem havia chegado a se constituir plenamente: a extensão da cidadania à maioria da população.  

A permanência da escravidão até a penúltima década do século e a ausência de transformações estruturais com a República acabaram por reforçar os retratos preconceituosos sobre o brasileiro: era considerado apático, sem iniciativa, uma raça de degenerados. Entre os desiludidos, além de Silvio Romero, poderíamos incluir, entre tantos outros, Raul Pompéia, Silva Jardim e, principalmente, Euclides da Cunha, autor de "Os Sertões", publicado em 1902.  

Para Raul Pompéia, autor de "O Ateneu", era urgente defender a independência econômica: "Os grandes centros sensórios do nosso organismo de interesses estão em Londres ou em Lisboa. Ausentes de nós, portanto. Somos assim em economia política, uns miserandos desvertebrados".  

Euclides da Cunha, que, na juventude, se destacou como um agitador republicano – chegando, por isso, a ser desligado da Escola Militar –, logo se desilidiu com os novos rumos do Brasil. Em 1893, em pleno Governo Floriano Peixoto, não acreditava em nenhuma mudança: "O nosso povo (...) por abdicação completa de todas as energias, não tem forças para agitar-se além das arruaças desprezíveis. Eu às vezes acredito que houve duas abdicações no dia 15 de novembro – a do Imperador e a dele. (...) Nós atravessamos uma revolução – a revolução dos cochichos: os revolucionários vivem a discursar pelas esquinas inclinados para o ouvido dos comparsas – mas toda a sua ação não vai além disto. Falta-nos vigor, falta-nos brio, falta-nos sentimento e falta-nos espírito".  

Quase dez anos depois, em 1902, a crítica de Euclides era ainda mais ácida: "Deu o que podia dar: escravidão, alguns atos de heroísmo amalucado, uma república hilariante e, por fim, o que aí está – a bandalheira sistematizada". Quando assumiu sua cadeira na Academia Brasileira de Letras, em 1906, enfatizou mais uma vez a sua decepção com a conjuntura política. Atacou a mania nacional das reformas pelo alto, presas "nos andaimes altíssimos, luxuosamente armados".  

Silvio Romero sempre atacava o coronelismo, o mandonismo e toda a estrutura corrompida da República do Café. Discordava daqueles que imputavam à população do interior as causas do atraso do Brasil, "sem se lembrarem que, há quatrocentos anos, elas é que trabalham e produzem, elas é que se batem, isto é, sem se lembrarem de que elas é que têm sustentado o Brasil como povo que vive e como Nação que se defende". Faltava para Romero uma "revolução social".  

Por outro lado, o século XX se aproximava com um resgate acrítico da História do Brasil feito no pequeno livro de Afonso Celso, publicado em 1990: "Porque me ufano do meu País", um grande sucesso editorial. Para o autor, o Brasil era superior a qualquer outro País devido à grandeza territorial, à beleza natural, à riqueza mineral, à amenidade do clima, à inexistência de calamidades, à mestiçagem, à ausência de preconceitos, à caridade, à hospitalidade e à tolerância – do pessimismo exagerado passamos a um ufanismo ingênuo.

 

Para alguns, como Nina Rodrigues, o atraso brasileiro comparativamente aos Estados Unidos deveu-se principalmente à mestiçagem. Ao contrário de nós, os norte-americanos teriam estabelecido claramente a fronteira entre negros e brancos, ou seja, a segregação racial.  

A reflexão anti-racista já estava presente desde o início do século XX. Manuel Bonfim, alagoano – quero aproveitar para homenagear a Senadora Heloisa Helena, aqui anunciada como futura Líder do PT e brava representante do Estado de Alagoas no Senado –, foi um dos que tentaram remar contra a corrente, mas seus livros tiveram, à época, pequena repercussão. Bonfim transferiu a razão do atraso do Brasil para as classes dominantes e para o Estado, que só existia para "cobrar impostos, coagir as populações e organizar as forças armadas que o defendem".  

Lembro, Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, a publicação, em 1918, de "Urupês", obra marcante de Monteiro Lobato. Ao contrário da idealização do índio e do caboclo, Lobato criou o personagem Jeca Tatu como uma síntese do brasileiro que vivia no campo, representando, então, a maior parte da população.  

Dizia Lobato que, depois de historiar a casa, os móveis, a horta, o lazer, as eleições ("o fato mais importante da sua vida é sem dúvida votar no Governo. (...) Vota. Não sabe em quem, mas vota"), a noção de pátria ("Não tem sequer a noção do país em que vive"), suas doenças, a religião, concluiu: "Só ele, no meio de tanta vida, não vive."  

No final da década de 20, como uma espécie de prenúncio da perda do poder político por parte da burguesia cafeeira paulista, Paulo Prado publicou "Retrato do Brasil" com o curioso subtítulo "Ensaio sobre a tristeza brasileira". Para ele, nesta "terra radiosa vive um povo triste. Legaram-lhe essa melancolia os descobridores que a revelaram ao mundo e a povoaram". Segundo Prado, "a tristeza sucedeu à intensa vida sexual do colono, desviado para as perversões eróticas" e a cobiça, "a desilusão do ouro, esse sentimento é também melancólico, pela inutilidade do esforço".  

A Revolução de 30 acabou propiciando o surgimento de um grande número de novas interpretações do Brasil. Algumas delas reforçaram a explicação racista, como as de Oliveira Vianna. Dentro desse quadro analítico racista, o paulista Alfredo Ellis, no livro "Raça de Gigantes", sustentou que os paulistas distinguiam-se dos outros brasileiros por "um tipo físico profundamente diferente", no qual predominavam os brancos, e a presença negra tornou-se ínfima devido ao clima que, segundo Ellis, prejudicava-os, pois a maior espessura dérmica sobrecarrega a respiração pelos pulmões.  

No meio de um universo racista, marcado pelas teorias de eugenia, Gilberto Freyre publicou, em 1933, "Casa Grande e Senzala". Entre outras qualidades, o livro teve o mérito de resistir às explicações racistas tão em voga na época.  

Em 1936, pouco antes do golpe do Estado Novo, foi publicado "Raízes do Brasil", do historiador Sérgio Buarque de Holanda, também se opondo às explicações racistas tão em voga. Destacou a importância dos vínculos pessoais que acabaram se sobrepondo aos vínculos institucionais, as normas impostas pelo brasileiro, buscando encontrar aí os fundamentos para o jeito de ser do brasileiro.  

Em plena euforia desenvolvimentista da década de 50, o Nordeste, paradoxalmente, acabou transformando-se no centro das atenções do País. A organização das Ligas Camponesas, o nascimento das primeiras Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), em Natal, Rio Grande do Norte, graças à iniciativa de D. Eugênio Salles, e, principalmente, a criação da Superintendência para o Denvolvimento do Nordeste - Sudene, em dezembro de 1959, transformaram a região em um microcosmo da luta política que estava ocorrendo no País.  

Celso Furtado é a grande personagem do período, como o mais decidido organizador de uma alternativa viável de desenvolvimento plural para o Nordeste. Chamado por Assis Chateaubriant, de "Antonio Conselheiro de fraque", foi o principal organizador da Sudene, pouco depois de ter retornado ao Brasil, onde encontrou "um país em extraordinária efervecência", com "uma enorme vaga de confiança". Segundo Furtado, naquele momento, "a idéia antiga de que algo está errado no Brasil e de que isso se deve à omissão do Governo arrefeceu com a construção de Brasília. Abriam-se horizontes, falava-se de um continente novo a ser conquistado, já não seríamos um ‘povo de caranguejos’ presos à beira da praia. As instituições públicas se renovariam ao serem transladadas para uma cidade que nascia pronta para enfrentar os desafios do futuro".  

Os esforços de uma brilhante geração de pouco adiantou. Às vésperas do 1º de abril de 1964, Josué de Castro acabara de escrever "Sete Palmos de Terra e um Caixão", preocupado com os rumos da política norte-americana para o Brasil, especialmente em relação ao Nordeste: "O Nordeste do Brasil foi descoberto pelos portugueses no ano de 1500 e pelos norte-americanos no ano de 1960. As duas descobertas foram feitas por engano. Em 1500, graças a um erro de navegação; em 1960, graças a um erro de interpretação. Os portugueses erraram na geografia; os norte-americanos, na história".  

Mas os esforços de Castro e de Furtado acabaram sendo em vão. Os tempos de otimismo foram substituídos pelo medo. Nas suas memórias, Furtado recordou que a "ditadura militar, ao destruir pela raiz toda a atividade política autêntica, foi particularmente daninha ao Nordeste, interrompendo um processo de mudança social que circunstâncias muito particulares haviam permitido florescer".  

Mas o Brasil, neste século, teve mais que política.  

Ao encerrar meu pronunciamento, agradecendo a tolerância e a generosidade das Srªs e dos Srs. Senadores e, principalmente, do Sr. Presidente, Senador Ademir Andrade, espero ter feito uma síntese das inúmeras e diversificadas interpretações de que o Brasil foi e é objeto. Eis um processo sempre em construção. Uma vez mais estamos sendo chamados a pensar nosso País, entender sua trajetória e buscar alternativas viáveis para o futuro.  

A respeito da tarefa que está à espera de todos nós – o esforço no sentido de ampliar nossos conhecimentos a respeito de nós mesmos, nossa alma e nossa personalidade – talvez valesse a pena recordar um texto de 1946, escrito pelo grande historiador Caio Prado Júnior: "O Brasil não se libertará efetivamente enquanto não topar com o caminho de uma cultura própria e autônoma. (...) Não se trata evidentemente de começar de novo toda a evolução do conhecimento e do pensamento humanos e reiniciar a longa e difícil jornada do progresso cultural da humanidade. Devemos partir do já adquirido e nos inspirar nele e utilizar os dados e métodos conquistados. Mas devemos também acrescentar uma inspiração própria e olhar para esse mundo que nos cerca, tão diferente do mundo europeu ou norte-americano que até hoje nos têm servido de modelo, sem o prisma deformador de uma cultura estranha. É esta uma das premissas fundamentais da nossa libertação e do nosso progresso."  

Esse é o grande desafio. Haveremos de vencê-lo.  

Muito obrigado.  

 

B ¿


Este texto não substitui o publicado no DSF de 16/12/1999 - Página 35133