Discurso durante a Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

CONSIDERAÇÕES SOBRE AS DIFICULDADES ENFRENTADAS PELAS PESSOAS PORTADORAS DE DEFICIENCIA FISICA.

Autor
Luzia Toledo (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/ES)
Nome completo: Luzia Alves Toledo
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA SOCIAL.:
  • CONSIDERAÇÕES SOBRE AS DIFICULDADES ENFRENTADAS PELAS PESSOAS PORTADORAS DE DEFICIENCIA FISICA.
Publicação
Publicação no DSF de 25/02/2000 - Página 3580
Assunto
Outros > POLITICA SOCIAL.
Indexação
  • ANALISE, SITUAÇÃO, EXCLUSÃO, CLASSE SOCIAL, BAIXA RENDA, REGISTRO, DIFICULDADE, INSERÇÃO, PESSOA DEFICIENTE, ESPECIFICAÇÃO, AMBITO, EDUCAÇÃO.
  • ELOGIO, ATUAÇÃO, ASSOCIAÇÃO DOS PAIS E AMIGOS DOS EXCEPCIONAIS (APAE), TERRITORIO NACIONAL, LOBBY, REVISÃO, POLITICA, MINISTERIO DA EDUCAÇÃO (MEC), ENSINO ESPECIAL, INCLUSÃO, ALUNO, ENSINO FUNDAMENTAL, ENSINO MEDIO.
  • IMPORTANCIA, RESPEITO, GARANTIA, DIREITO CONSTITUCIONAL, PESSOA DEFICIENTE.
  • COMENTARIO, ENTREVISTA, BELISARIO DOS SANTOS JUNIOR, SECRETARIO DE ESTADO, JUSTIÇA, ESTADO DE SÃO PAULO (SP), ASSUNTO, FACILITAÇÃO, VIDA, PORTADOR, DEFICIENCIA FISICA, ZONA URBANA.

A SRª LUZIA TOLEDO (PSDB - ES) - Sr. Presidente, Srªs. e Srs. Senadores, pode-se dizer – sem que se faça com isso qualquer tipo de concessão ao exagero – que a maior parte desses quinhentos anos de História brasileira foi marcada pela abjeta vitória dos princípios e das práticas que levam à exclusão social. Por mais de três séculos, convivemos com o trabalho escravo, último degrau do processo de desumanização da pessoa; tal como foi realizada, a abolição da escravatura não foi outra coisa senão o ponto de partida para o surgimento de uma multidão de párias sociais, gente apartada das mais elementares condições para a edificação de uma vida digna. Favelas, discriminação, analfabetismo, subemprego e desemprego revelam, ainda hoje, o grau de marginalização a que foram submetidas a população brasileira de origem africana.  

Até muito recentemente, coisa de cinco ou seis décadas, era impossível falar de um verdadeiro sistema de educação pública no Brasil. Com efeito, se aos filhos das elites nunca faltavam boas escolas – aqui ou no exterior – nas quais pudessem se educar, à imensa maioria da população sobrava, no máximo, a escola primária, assim mesmo jamais universalizada. Essa despreocupação com a educação pública é uma das mais perversas faces de nossa História, sendo um dos mais eficazes instrumentos de exclusão social que se conhece. Foi preciso que a sociedade se levantasse para que esse quadro começasse a ser alterado: hoje, em que pese toda sorte de problemas ainda existentes no setor, sabemos que a educação nacional avança, abrindo perspectivas razoavelmente lisonjeiras para um futuro não muito distante.  

Faço essas observações, Senhor Presidente, porque gostaria de abordar um tema crucial para a conquista da plena cidadania com que sonhamos, exatamente aquela que a ninguém exclua. Reporto-me à situação vivida por milhões de brasileiros que, na condição de portadores de algum tipo de deficiência física, ainda encontram absurdas dificuldades em seu esforço de inserção na vida social. Se é verdade que já podemos apontar diversas conquistas, não menos verdadeiro é o fato de que muito ainda está por ser feito.  

Comecemos pela educação, pelas óbvias repercussões que gera. Ao longo do tempo, o Estado brasileiro simplesmente omitiu-se em relação à educação especial. Utilizando-se de um argumento falacioso, fundamentado na existência de enorme contingente de crianças e jovens ditos "normais" a ser atendido prioritariamente, o Poder Público preferiu "fazer de conta" que os portadores de deficiência não existiam. Sempre alegando os elevados custos da educação especial, deixou-a à sua própria sorte.  

Foi preciso que a própria sociedade se movimentasse para reparar tamanho despropósito. Costumo dizer que, nesse caso, e sem maiores apelos à força da retórica, a cidadania se fez pela vontade dos cidadãos! De início, timidamente, o movimento espalhou-se pelo Brasil afora: dos grandes centros urbanos às menores cidades brasileiras, multiplicaram-se as Associações de Pais e Amigos dos Excepcionais, essas valorosas APAEs que, a cada dia, nos ensinam preciosas lições de humildade, a partir do respeito à diferença.  

De estupenda capilaridade, as APAEs estendem-se por todo o território nacional. Abominando a carolice piegas e a esmola que não leva a lugar algum, essas Associações são intrinsecamente democráticas, pois que nelas as diferenças sociais inexistem; são pedagógicas, ao preconizarem que o aprender a fazer é o caminho natural para o aprender a ser; são instituições humanizadoras, pelo que fazem no sentido da compreensão do outro, a partir da aceitação das diferenças.  

Foi preciso muita luta para que o Estado apoiasse técnica e financeiramente instituições dessa natureza. Ocupando um espaço abandonado pelo Poder Público, as APAEs e congêneres – como os Institutos Pestalozzi, por exemplo – tiveram que se organizar, inclusive politicamente, para serem ouvidas. Valeu o empenho: graças sobretudo aos seus esforços, recursos do Ministério da Educação vão sendo repassados e o próprio MEC, alterando uma posição que chegou a anunciar há seis anos, mantém em sua estrutura organizacional a Secretaria de Educação Especial.  

Hoje, seguindo uma tendência mundial, a preocupação primordial é com a inclusão, ou seja, levar o aluno portador de deficiência a integrar-se nas salas de aula regulares. Para tanto, há que haver o discernimento correto quanto à possibilidade dessa integração, sabendo-se que nem todos os que portam deficiências poderão fazê-lo. Entretanto, também é fundamental que a escola regular esteja preparada para receber essa clientela diferenciada, possibilitando uma convivência sadia e enriquecedora entre todos os alunos. Nessa perspectiva, o Poder Público – do MEC às Secretarias Estaduais e Municipais de Educação – não pode mais se omitir: há que fazer sua parte, adaptando salas, preparando professores e funcionários, enfim, criando as condições necessárias à inclusão.  

São atitudes assim que reforçam nosso espírito de cidadania, dando-nos a sensação de que poderemos construir um País melhor, uma Nação mais solidária e uma sociedade mais justa. A propósito, lembro-me da figura de Ulysses Guimarães, especialmente no instante em que era promulgada a Carta de 1988. Ali, ao mesmo tempo em que externava seu "nojo às ditaduras", o grande líder exaltava as conquistas do processo constituinte por ele presidido. Não por acaso, sacramentou a expressão "Constituição Cidadã" para definir o novo texto constitucional brasileiro.  

Sabemos todos como a Constituição de 1988 inovou em termos de direitos individuais e sociais. No entanto, e essa é a razão maior em função da qual ocupo a Tribuna neste momento, muito há que ser feito. Ter consciência de que os direitos da pessoa portadora de deficiência não podem se transformar em letra morta é o desafio que está diante de todos nós. Repeti-los, propagá-los e defendê-los é o mínimo que o verdadeiro espírito de cidadania espera de cada um de nós. Regulamentá-los adequadamente, tornando-os presentes e vivos na legislação ordinária é o que a sociedade exige dos legisladores brasileiros.  

Exatamente por isso, Senhor Presidente, Senhoras e Senhores Senadores, é que ocupo a Tribuna agora. Como bem assinalou o Secretário da Justiça e da Defesa da Cidadania de São Paulo, Belisário dos Santos Júnior, "em Viena, afirmamos que os direitos humanos são indivisíveis e de todos". Ora, se acreditamos nisso, temos que agir para sua efetiva concretização. No nosso caso, penso que cabe ao Congresso Nacional debruçar-se sobre a Constituição, especialmente em seu artigo 203, para regulamentar tudo o que for possível.  

Mais: não acredito na força da lei, se esta não for internalizada pela sociedade. Assim, que o Poder Público, em suas três esferas, se movimente: com os recursos técnicos e financeiros de que dispõe, com o peso de sua influência sobre os veículos de comunicação social mobilize a sociedade no sentido de conhecer mais e melhor a legislação que respeita o cidadão portador de deficiência, estimulando-a a participar ativa e solidariamente nesse processo, que, por fim e ao cabo, nada mais é que o da construção de um País melhor para todos.  

Que esse processo não peque pelo paternalismo, o qual inibe as ações da sociedade, nem pela arrogância, que pressupõe o saber nas mãos de uns poucos iluminados, normalmente ancorados na burocracia estatal. Uma sociedade que foi capaz de construir as APAEs e os Institutos Pestalozzi, seguramente tem muito a dizer, muita sabedoria a partilhar. Que seja, pois, ouvida e acatada.  

Somente assim será possível avançar nas conquistas, sem que se corra o risco desnecessário de, mesmo embalado pela melhor das intenções, gastar dinheiro público em obras inúteis, ou de secundária valia. A propósito, recorro uma vez mais ao já citado Doutor Belisário. Entrevistando o Secretário da Justiça de São Paulo, o jornal Tribuna do Direito , em sua edição de janeiro último, publica seu comentário acerca do ocorrido no Fórum de Franca, o qual vale a pena ser registrado.  

"Muitas vezes há equívocos sobre a melhor maneira de aplicar as leis. Belisário citou como exemplo o Fórum de Franca, considerado modelo, que criou uma sala especial para os portadores de deficiência, onde o juiz iria atendê-los. Entretanto, durante a inauguração da obra, um cidadão em cadeira de rodas disse ao Secretário que não era esse o objetivo deles. ‘Não querem ser destacados, querem circular, foi uma interpretação equivocada da Secretaria da Justiça’, disse Belisário. E completou: ‘É uma questão de conversa; um elevador especial seria mais barato do que uma sala".

Poder Público e sociedade não podem estar dissociados nesse processo, necessariamente de mão dupla. Estou convencida ser esse o caminho pelo qual conseguiremos enterrar de vez de nossa paisagem urbana ruas esburacadas, calçadas quebradas e com degraus, edifícios projetados sem cuidados especiais, enfim, equipamentos urbanos se constituindo em verdadeiras armadilhas e em obstáculos os mais diversos à livre circulação de homens e mulheres portadores de deficiência.  

Ao trazer o tema ao debate nesta Casa, cumpro um dever. Espero, sinceramente, que assunto de tamanha magnitude – quer por envolver diretamente milhões de famílias brasileiras, quer por exprimir a densidade da cidadania que fomos capazes de construir – não se perca no vazio. Por maiores que sejam nossas preocupações políticas e afazeres parlamentares, nada justificaria o abandono de uma causa que nos enobrece como seres humanos, nos dignifica como detentores de um mandato conferido pelo povo e nos coloca em plena sintonia com os anseios crescentes da população brasileira em termos de cidadania.  

Abraçar essa causa é ter consciência da História.  

Era o que tinha a dizer.  

 

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Este texto não substitui o publicado no DSF de 25/02/2000 - Página 3580