Discurso durante a 120ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Comemoração ao centenário de nascimento do ex-Senador Alberto Pasqualini.

Autor
Carlos Bezerra (PMDB - Movimento Democrático Brasileiro/MT)
Nome completo: Carlos Gomes Bezerra
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM. :
  • Comemoração ao centenário de nascimento do ex-Senador Alberto Pasqualini.
Publicação
Publicação no DSF de 26/09/2001 - Página 22680
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM, CENTENARIO, NASCIMENTO, ALBERTO PASQUALINI, EX SENADOR, ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL (RS), ELOGIO, VIDA PUBLICA, IMPORTANCIA, ATUAÇÃO, AMBITO, PARTIDO POLITICO, PARTIDO DEMOCRATICO TRABALHISTA (PDT).

  SENADO FEDERAL SF -

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            O SR. CARLOS BEZERRA (PMDB - MT) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, nesta oportunidade em que o Senado Federal presta homenagem a uma das mais ilustres figuras de homem público que já honraram esta Casa no transcurso do centenário de seu nascimento, minha memória se transporta àqueles vibrantes anos do início da década de 50 quando minha incipiente consciência cívica, de menino ainda, foi arrebatada pela pregação e pela mobilização social promovidas pelo Partido Trabalhista Brasileiro de então.

            Eram anos marcados por animado debate político. A derrota do totalitarismo nazi-fascista na Segunda Grande Guerra e a redemocratização do País haviam reaberto comportas fazendo jorrar o ímpeto longamente contido de participação política do povo brasileiro. A nacionalidade se refletia com entusiasmo nos debates que, conforme todos podiam perceber, diziam respeito, de forma muito determinante, ao futuro do País, às suas possibilidades de desenvolvimento autônomo, de superação definitiva das amarras de uma economia ainda dependente da exportação de produtos primários. E a juventude, em especial, tinha o espírito inflamado pelo calor desses debates, entre os quais o de maior repercussão era, sem dúvida alguma, aquele atinente ao monopólio estatal sobre o petróleo.

            Mas eu não era sequer um adolescente, era um garoto apenas, de oito ou nove anos, quando, numa praça de Cuiabá, assisti a um comício que tinha como orador principal ninguém menos do que o Presidente Getúlio Vargas. O brilho de sua oratória, seu extraordinário carisma, o poder que sua figura e suas palavras exerciam sobre as massas trabalhadoras causaram-me a mais funda impressão. Pelos extraordinários avanços sociais que patrocinara, corporificados numa legislação trabalhista muito avançada para a época, Getúlio mexia com o imaginário popular a ponto de trabalhadores desmaiarem pelo simples fato de estarem em sua presença.

            E foi sob essa forte impressão que, embora filho de importante liderança udenista mato-grossense, aderi ao getulismo, passando, pouco mais tarde, a militar nas hostes da Mocidade Trabalhista.

            Embora tenha sido um período curto, bruscamente interrompido pelo golpe de 64 - cuja truculência experimentei na carne, pagando com a prisão o preço de meu compromisso democrático -, foram anos preciosos para minha formação política. Na Mocidade Trabalhista, educávamo-nos civicamente com o exemplo de estadista oferecido por Getúlio Vargas e com o brilho invulgar da doutrina do homenageado desta tarde.

            Sim, Sras. e Srs. Senadores. Tenho a convicção de que a real dimensão de Alberto Pasqualini como pensador político-social ainda não teve o devido reconhecimento. Que inteligência notável! Quanta erudição! Quanta familiaridade com a obra dos mais importantes cientistas sociais! Que extraordinária capacidade de ver além de seu tempo! Que habilidade para formular, a partir da doutrina social dos pensadores europeus, um projeto político genuinamente nacional, perfeitamente adequado às particularidades brasileiras!

            Creio que compreender a percuciência e a originalidade da doutrina de Pasqualini seja possível a partir da conjugação de dois elementos de sua biografia: sua origem nas camadas mais humildes de nossa população e sua riquíssima formação cultural. Daí, acredito, provieram a refinada sensibilidade social, a independência intelectual, a capacidade de formulação autônoma de um ideário prenhe de respostas simples e eficazes para os mais graves problemas do Brasil.

            Filho de uma humilde família de ascendência italiana da região colonial do Rio Grande do Sul, Alberto Pasqualini foi seminarista, tendo estudado grego e latim, idioma em que viria a se tornar um respeitado especialista. Forçado a repetir seus estudos básicos, em virtude do não reconhecimento oficial do ensino ministrado no seminário que freqüentou, Pasqualini custeou seu novo curso ensinando matemática a colegas de turmas mais adiantadas. Bacharel em Direito pela Faculdade de Porto Alegre, na turma de 1929, foi orador de sua turma. Em seu discurso, proferido sob o impacto da crise que naquele ano deslancharia a “Grande Depressão” nos Estados Unidos, afirmou, de forma quase profética; “Estamos vivendo o período da doutrinação que precede as grandes transformações sociais”; e, já deixando antever o perfil que teria toda a sua atuação como homem público, recorreu a Aristóteles para explicar “que o bem que se colima em política é a justiça, e que a justiça é a utilidade geral”.

            Já no ano seguinte à sua formatura, Pasqualini estaria em franca atividade política, apoiando ativamente a Revolução de 30. Durante o período de combates entre tropas rebeldes e legalistas, auxiliou o chefe militar do cais do porto da capital gaúcha, com quem organizou um batalhão de infantaria e um pelotão de metralhadoras, sendo comissionado nessa unidade no posto de major fiscal. Intelectual por gosto e formação, não se furtou Pasqualini, portanto, de assumir o papel de homem de ação, quando as circunstâncias históricas assim o exigiram.

            Após passagem pela Câmara de Vereadores de Porto Alegre, no período entre 1935 e novembro de 1937, Pasqualini foi nomeado Secretário do Interior e Justiça, em 1944, durante a interventoria de Ernesto Dornelles no Rio Grande do Sul. Nesse período, amadurece suas convicções políticas e começa a estruturar suas propostas tendentes a uma organização social mais justa. Denuncia os problemas sociais, especialmente aqueles relativos aos trabalhadores rurais, e propõe medidas de urgência para amenizar a situação. Trabalhando sobre os terríveis indicadores educacionais e sanitários da época, propõe a criação do Serviço de Organização e Assistência Social do Estado.

            Um dos aspectos que mais se destacam na personalidade de Pasqualini é sua visão de futuro. Já na década de 40, percebe e alerta para problemas sociais que só viriam a chamar a atenção, de forma generalizada, muitos anos mais tarde, como a questão dos menores abandonados.

            E, numa antevisão de algo que agora parece muito próximo de se tornar realidade, adverte, em artigo publicado em Porto Alegre, que as carências sociais, a falta de acesso à educação e ao trabalho “poderão criar uma grave situação de insegurança que evoluirá para uma criminalidade irreprimível.” Em seguida, faz um alerta aos setores mais aquinhoados da sociedade, formulado em termos singelos e objetivos: “Todos aqueles que possuem bens e desejam conservá-los deveriam compreender que, quando um esfaimado ronda a porta, é mais seguro dar-lhe meios de vida ou um prato de comida do que chamar a polícia. Infelizmente, nem todos pensam assim, e acham preferível e mais econômico chamar o delegado.”

            Outro exemplo de sua capacidade de antever o futuro foi sua intuição quanto aos processos de integração regional - como a União Européia, o Nafta ou o Mercosul -, que sequer eram cogitados na Europa, muito menos na América. No fim da década de 40, Pasqualini já afirmava: “As fronteiras dos países americanos não deveriam ter maior significação do que as existentes entre os Estados de uma mesma federação, suprimindo-se as barreiras alfandegárias para tudo o que neles se produzisse”.

            Tal como sua estatura intelectual e sua amplitude de visão, também o proceder de Pasqualini no enfrentamento político fugia por completo do ordinário. Nas campanhas eleitorais, não era raro que tecesse elogios aos adversários, apontando-lhes as qualidades, reconhecendo-lhes os méritos. Esse tipo de atitude levou o jornalista João Emílio Falcão a afirmar, em artigo publicado no Correio Braziliense seis anos atrás: “Se de algumas campanhas eleitorais voltou, como ele próprio dizia, com os pés ensangüentados, jamais voltou com eles cobertos de lodo, como estão, infelizmente, os de muitos candidatos atuais”.

            A densidade de sua elaboração teórica, juntamente com a lisura absoluta e irrepreensível de seu comportamento, valeram-lhe sempre o respeito de todos, inclusive de seus adversários políticos, a ponto do caudilho libertador Batista Luzardo ter exclamado com espanto, ao tomar conhecimento de sua filiação ao PTB: “Não é possível! Eis um anjo no inferno!” Ao que Pasqualini redargüiu, dos corredores da Assembléia Legislativa gaúcha, “Considero-me apenas um homem entre os homens!” Já Juarez Távora, líder do Partido Democrata Cristão, a ele se referiu, em suas memórias, como “nobre e idealista doutrinador”.

            Duas vezes candidato ao Governo do Rio Grande do Sul, em ambas Pasqualini foi derrotado por mínima diferença de votos, enfrentando poderosas coligações conservadoras articuladas em torno da aversão ao conteúdo progressista de sua pregação. Em 1950, na mesma campanha que reconduz Getúlio à Presidência, elege-se Senador. Nesta Casa, notabilizou-se pela relatoria do projeto da Petrobras e pelo nível intelectual de seus pareceres em geral. No decorrer das discussões acerca do projeto da Petrobras, engajou-se na campanha pela implantação do monopólio estatal da exploração do petróleo, não previsto na proposta original do Executivo e alvo de intensa crítica dos grupos que, dentro e fora do Congresso, defendiam a participação da iniciativa privada nesse setor.

            Mas se a atuação de Pasqualini nos cargos que ocupou merece indiscutível destaque, maior relevância ainda assume sua produção teórica. Conhecedor profundo do pensamento marxista, mas também do fabianismo britânico e do reformismo social-democrata, Pasqualini rejeitou, de um lado, o “capitalismo individualista e selvagem” e, de outro, o “socialismo real”, concretizado na experiência soviética. Sua proposta era o “trabalhismo solidarista”, que significava, de fato, um socialismo com liberdade e democracia. Entre suas obras mais importantes estão Bases e sugestões para uma política social, Trabalhismo e Desenvolvimento Econômico e ainda o livro As idéias políticas e sociais de Alberto Pasqualini, publicado pela Imprensa Oficial do Rio Grande do Sul em 1954.

            Nos primórdios do PTB, Pasqualini deu contribuição decisiva na elaboração do programa partidário e, com a ascensão de João Goulart à presidência nacional do partido, em 1952, foi incumbido de organizar o departamento de estudos da agremiação, destinado a conferir-lhe maior “substância doutrinária”.

            Talvez sua obra mais representativa, aquela que reúne as idéias que nortearam toda a sua atividade política, bem como a de um grande grupo de parlamentares do PTB, adepto da assim denominada “linha Pasqualini”, seja Diretrizes fundamentais do trabalhismo brasileiro, de 1948. As diretrizes de Pasqualini partiam da noção de “usura social”, existente “quando as relações econômicas entre os membros de uma sociedade não estão baseadas nos princípios de justiça social. (...) A usura social é o que comumente se costuma denominar exploração do homem pelo homem” e sua eliminação deveria ser o principal objetivo do trabalhismo.

            Ao lado do trabalhismo inglês, outra influência marcante em seu pensamento foi a doutrina expressa pelas encíclicas papais, o solidarismo cristão aprendido nos tempos de seminarista. Explicitando a relação entre o trabalhismo e o pensamento cristão, explicava que o trabalhismo lutava para que as parcelas espoliadas da população deixassem de sê-lo porque, com esse esforço, situava-se “na esteira do Senhor, que, no mundo, nunca se colocou ao lado dos ricos e dos poderosos, nunca os bajulou, nunca fez causa comum com eles, nunca se interessou pelo seu dinheiro, mas defendeu sempre os humildes e os deserdados”.

            Constantemente devotado à pregação de uma política social alicerçada no princípio da solidariedade, advogou a paz social, que haveria de ter como premissa necessária e permanente a própria justiça social. Em sua opinião: “A sociedade não tem o direito de exigir de ninguém mais do que lhe proporciona e muito menos de permitir que uns se locupletem à custa do trabalho e dos sofrimentos dos outros.”

            Em memorável discurso pronunciado em Caxias do Sul, por ocasião da campanha eleitoral para o Governo do Estado em 1946, definiu muito claramente sua opinião acerca do capitalismo selvagem:

            “O capitalismo individualista propende, em suas últimas conseqüências, para o monopólio, para a hegemonia econômica, para a exploração do povo, para o imperialismo.

            É, senhores, esse tipo de capitalismo, egoísta e agressivo, que nós combatemos, porque ele gera a opressão, a miséria, as guerras, a desgraça das nações.”

            Contudo, sua postura não era, de forma alguma, avessa à iniciativa privada. O fundamento do trabalhismo, tal como Pasqualini o concebia, era a liberdade de produção, exigida, porém, a finalidade social. Em Diretrizes fundamentais do trabalhismo brasileiro, aborda o tema com extraordinária lucidez, desmontando por completo as concepções conservadoras de “liberdade de iniciativa”.

            “O racional em um sistema que admite a iniciativa privada e que nele se funda seria que se proporcionassem a todos que possuem capacidade de empresário os meios de realizarem empreendimentos produtivos. Não se compreende como, no regime capitalista, essencialmente baseado na iniciativa privada e na liberdade de iniciativa, a possibilidade de realizar as combinações produtivas esteja restrita a apenas alguns privilegiados. Porque há duas maneiras de coarctar essa liberdade: uma, deferindo-a exclusivamente ao Estado e a outra, enfeixando-a nas mãos de uma oligarquia econômica.”

            Gostaria de encerrar minha fala com essa esplêndida lição de economia política, pois me parece ela muito ilustrativa do pensamento de Alberto Pasqualini.

            Assim foi o inesquecível doutrinador do trabalhismo, até o fim de sua vida fiel ao conceito proclamado em seu discurso de formatura, segundo o qual toda atividade política, toda ação do Estado há de colimar, sempre e inafastavelmente, o interesse da coletividade.

            Era o que tinha a dizer. Muito obrigado!


            Modelo17/27/245:26



Este texto não substitui o publicado no DSF de 26/09/2001 - Página 22680