Discurso durante a 34ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Comentários às ações afirmativas destinadas à eliminação da discriminação racial.

Autor
Sérgio Machado (PMDB - Movimento Democrático Brasileiro/CE)
Nome completo: José Sérgio de Oliveira Machado
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
DISCRIMINAÇÃO RACIAL.:
  • Comentários às ações afirmativas destinadas à eliminação da discriminação racial.
Publicação
Publicação no DSF de 05/04/2002 - Página 3837
Assunto
Outros > DISCRIMINAÇÃO RACIAL.
Indexação
  • COMENTARIO, DADOS, INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATISTICA (IBGE), FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS (FGV), INSTITUTO DE PESQUISA ECONOMICA APLICADA (IPEA), POPULAÇÃO, NEGRO, BRASIL, ORIGEM, HISTORIA, DISCRIMINAÇÃO RACIAL, ESCRAVATURA, PAIS.
  • DENUNCIA, DISCRIMINAÇÃO, NEGRO, VINCULAÇÃO, REPUTAÇÃO, VIOLENCIA, CRIME, REGISTRO, DADOS, INJUSTIÇA, VITIMA, AGRESSÃO, POLICIA, DIFERENÇA, ACESSO, JUSTIÇA.
  • APOIO, PROVIDENCIA, GOVERNO BRASILEIRO, COMPENSAÇÃO, DISCRIMINAÇÃO RACIAL, AUMENTO, OPORTUNIDADE, NEGRO, EDUCAÇÃO, TRABALHO.

  SENADO FEDERAL SF -

SECRETARIA-GERAL DA MESA

SUBSECRETARIA DE TAQUIGRAFIA 


O SR. SÉRGIO MACHADO (PMDB - CE) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, o Brasil abriga hoje a maior população negra fora do continente africano. É inegável a fundamental importância desta contribuição étnica na formação de nossa identidade nacional e na manifestação de nossos valores culturais.

Podemos facilmente constatar que esta marcante presença se expressa sob as mais variadas formas, nos mais diversos aspectos da vida do brasileiro. Desde a música à culinária, passando pelo folclore, a religiosidade e as artes em geral, o rico legado de nossa afrodecendência mostra-se notável na criatividade do povo e concorre enormemente para a produção de conhecimento e a geração de riqueza em nosso País.

Porém é triste constatar, por outro lado, a gigantesca dívida histórica por nós contraída para com essa parcela de nossa população. Durante mais de trezentos anos, o Brasil trouxe da África perto de quatro milhões de cativos, tornando-se o maior escravista das Américas. Pior: foi o último país ocidental a abolir a escravidão!

As conseqüências socioeconômicas da pseudoemancipação ocorrida a partir de 13 de maio de 1888 estampam até hoje o indisfarçável retrato da vergonhosa e irreparável omissão.

Segundo o IBGE, os negros constituem atualmente cerca de 45% de nossa população. Algo na ordem de 70 milhões. Quando se trata de formação acadêmica, qualificação profissional, cargos de direção, ou de destaque na política ou nos meios de comunicação, sua participação é estatisticamente irrisória. Entretanto, sua representatividade atinge níveis elevadíssimos quando falamos de população carcerária, analfabetismo, mortalidade infantil, criminalidade, ou expectativa de vida. Cidadãos muitas vezes considerados de segunda categoria, esses nossos compatriotas respondem por 64% da pobreza e 69% da indigência no Brasil.

No contexto dos alarmantes índices da desigualdade, vale ressaltar que no meu Estado do Ceará, conforme estudo da Fundação Getúlio Vargas, a proporção de indigentes é de 55,73%, a terceira do Brasil. Há que se lembrar, também, que 47% da população parda vive no Nordeste.

Dos 54 milhões de pobres recenseados no Brasil, o que significa 34% da população total, 33,7 milhões são afrodescendentes.

Quanto à renda, os negros correspondem à esmagadora maioria dos mais pobres e à ínfima minoria dos mais ricos. Dos 10% mais ricos, os brancos detêm 41% da renda total e os negros apenas 6%.

Resultados de uma pesquisa realizada no ano passado pelo Ipea demonstram que, em nível nacional, dos 22 milhões de brasileiros que vivem abaixo da linha da pobreza, mais de 15% são negros. A mesma pesquisa revela que um trabalhador branco ganha, em média, 573 reais por mês, ao passo que um trabalhador negro ganha 54,28% a menos, isto é, 262 reais. A taxa média de desemprego nos últimos anos entre os negros é de 11% , sobressaindo àquela dos brancos que se situa em torno de 7%.

Enquanto um branco passa em média 6,3 anos na escola, o negro passa só 4,4 anos, ou seja, quase um terço a menos. Das pessoas analfabetas de 15 e 25 anos, 8% são negras e 3% brancas. Na faixa etária acima de 15 anos, os negros correspondem a 19,8% dos não alfabetizados e os brancos chegam a apenas 8,3%.

De acordo com a Fundação Seade, de São Paulo, 16% dos brancos possuem diploma universitário, contra apenas 2% dos negros. Dados de 1999 indicam que na idade de 7 a 13 anos, fora da escola, havia 2% dos brancos e 5% dos negros; dentre os jovens entre18 e 23 anos, com secundário não completo, os brancos correspondiam a 63% e os negros a 84%.

Segundo a revista Veja, “A taxa de analfabetismo entre os brancos caiu, na década passada, de 10,6% para 8,3%; e, entre os negros, de 29% para 21%. O analfabetismo funcional entre os brancos é de 22%, alto, e de 41% entre os negros, altíssimo. Nos anos 90, aumentou em 13% o número médio de anos de estudo entre os brancos e em 41% entre os negros. Mas a renda média dos brancos cresceu 1,5 salário mínimo e a dos negros apenas 0,55 salário mínimo”. Ao divulgar tais cifras, o referido veículo afirma que “a educação dos negros no Brasil é pior que na África do Sul”.

Ora, Sr. Presidente, Sras e Srs. Senadores, todos esses dados refletem os graves sintomas de uma doença social conhecida como discriminação racial. Porém tais sintomas não param por aí. Sedimentou-se, como efeito do fenômeno discriminatório, uma habitual associação entre a cor e a marginalidade. A idéia que se generalizou, identificando os negros como agentes de violência, chegou a contaminar a instituição policial e, por indução, ameaçou mesmo comprometer a imparcialidade do próprio Judiciário.

Pesquisas realizadas pelo Datafolha e pelo Llanud (Instituto Latino-Americano das Nações Unidas para a Prevenção ao Delito e Tratamento do Delinqüente) investigaram a imagem da polícia entre os moradores do Rio de Janeiro e de São Paulo. As principais críticas dos brancos entrevistados apontaram para a corrupção e a ineficiência. Quanto aos negros, todavia, o maior objeto de críticas concentrou-se na violência da ação policial. Dentre eles, 20% disseram ter medo da polícia, contra 11% dos brancos que emitiram declaração semelhante. Foi também maior o número de negros que afirmaram ter mais medo da polícia que dos bandidos. Enquanto pouco mais de um terço dos brancos entrevistados respondeu já ter sido abordado pela polícia, o nível de resposta idêntica dada pelos negros à mesma pergunta chegou quase à metade. Em percentuais mais específicos, 34% e 47%, respectivamente.

Essa realidade discriminatória se confirma ainda mais pelos estudos realizados pelo pesquisador Sergio Adorno, da USP, cujos resultados foram publicados na edição do Jornal do Brasil de 21 de outubro passado. O objetivo do pesquisador foi “caracterizar e explicar as causas do acesso diferencial de brancos e negros à Justiça criminal, através da análise das sentenças judiciais para crimes da mesma natureza praticados por negros e brancos”.

A pesquisa indica que ''brancos e negros cometem crimes violentos em iguais proporções, mas os réus negros tendem a ser mais perseguidos pela vigilância policial, enfrentam maiores obstáculos de acesso à Justiça criminal e revelam maiores dificuldades de usufruir o direito de ampla defesa assegurado pelas normas constitucionais''. E conclui: “os negros tendem a receber um tratamento penal mais rigoroso, com maior probabilidade de serem punidos do que os brancos”.

Um sucinto exame da população carcerária, no que concerne à proporção entre brancos e negros, nos leva a constatar que o primeiro grupo está sub-representado, se levada em conta sua participação relativa na população total do país. Já o oposto ocorre com o segundo grupo, no qual se observa um numero muito maior de presidiários, bem superior a sua participação proporcional no cômputo geral da população.

O exemplo de São Paulo é bastante ilustrativo. Lá a taxa de encarceramento é de 7,68 brancos para cada dez mil habitantes. Para os negros, essa taxa se eleva a 42,1 para cada dez mil habitantes. Mais que o quíntuplo de incidência, portanto.

Então, a probabilidade de um negro estar na prisão é quase cinco vezes e meia maior que a de um branco. Eis o produto do preconceito arraigado em nosso comportamento e em nossas instituições.

Mas o Brasil quer mudar.

E o assumiu, publica e mundialmente, por meio de seus representantes presentes à III Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e a Intolerância Correlata, realizada sob os auspícios das Nações Unidas, em Durbam, na África do Sul, há seis meses.

De lá para cá as coisas se vêm intensificando, movidas, sobretudo, pelo amadurecimento do espírito crítico de nossa sociedade.

Decorrido mais de meio século de vigência da Lei Afonso Arinos que criminaliza os atos de preconceito de raça, medidas concretas começam a ser adotadas. Ações afirmativas parecem vir para ficar.

Neste universo de novas posturas, algumas iniciativas pontuais merecem especialmente ser citadas. É o caso do Projeto de Lei do preclaro Senador José Sarney que propõe cotas de vagas nas universidades federais; é o caso do Decreto 3.952 que criou o Conselho Nacional de Combate à Discriminação, composto por representantes do governo e da sociedade civil, incluindo lideranças da comunidade negra, indígena, homossexual e de grupos que lutam contra a violência. É o caso, com particular ênfase, da instalação do Conselho Científico da Fundação Palmares-CNPq e da assinatura - ambas na quinta-feira passada, por ocasião do Dia Internacional para a Eliminação da discriminação Racial - do Protocolo de Cooperação sobre a Ação Afirmativa no Instituto Rio Branco, por meio da concessão de "Bolsas-Prêmio de vocação para a Diplomacia".

A maturidade e a sensibilidade da nação brasileira, consubstanciadas nas ações de mobilização de sua cidadania mais atenta, aliadas à determinação política resultante de compromissos internos e internacionais assumidos pelo Governo Federal, vêm a partir de agora viabilizar aquilo que meu ilustre amigo Sérgio Abranches caracterizou como ações capazes de “discriminar positivamente, para eliminar barreiras que impedem o acesso dos negros à educação, à renda, aos melhores empregos”, pois, segundo ele, "sem ação específica para eliminar o racismo não se conseguirá mais do que melhorar a distribuição de renda entre os brancos".

Só assim resgataremos nossa colossal dívida histórica. Só assim poderemos superar a mera garantia formal de direitos e oportunidades a indivíduos social e economicamente desiguais, rumo ao cultivo próspero e altruísta dos mais elevados valores de nosso pluralismo cultural.

Fruto de uma colonização equivocada e de uma secular omissão do Estado quanto à assunção, ao trato e ao enfrentamento efetivo das questões de discriminação racial, a sociedade brasileira desperta-se hoje ante um novo alvorecer de consciência e esperança, certa de que a ela compete plantar, com desvelo e pertinácia, um amanhã sem segregações. Plantar num Brasil sem medo, onde hão de florescer, harmoniosa e indistintamente para todos, a educação, o trabalho e a justiça social. 

É o que tinha a dizer, Sr. Presidente.


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Este texto não substitui o publicado no DSF de 05/04/2002 - Página 3837