Discurso durante a 18ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Comentários sobre o editorial "A ética de dois gumes", de autoria do jornalista Herbert de Moraes Ribeiro, publicado no jornal Opção.

Autor
Demóstenes Torres (PFL - Partido da Frente Liberal/GO)
Nome completo: Demóstenes Lazaro Xavier Torres
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
GOVERNO FEDERAL, ATUAÇÃO.:
  • Comentários sobre o editorial "A ética de dois gumes", de autoria do jornalista Herbert de Moraes Ribeiro, publicado no jornal Opção.
Publicação
Publicação no DSF de 18/03/2004 - Página 7690
Assunto
Outros > GOVERNO FEDERAL, ATUAÇÃO.
Indexação
  • ELOGIO, CONTRIBUIÇÃO, IMPRENSA, JORNAL, OPÇÃO, ESTADO DE GOIAS (GO).
  • SOLICITAÇÃO, TRANSCRIÇÃO, ANAIS DO SENADO, EDITORIAL, JORNAL, OPÇÃO, ESTADO DE GOIAS (GO), QUESTIONAMENTO, ETICA, GOVERNO, PARTIDO POLITICO, PARTIDO DOS TRABALHADORES (PT).

O SR. DEMÓSTENES TORRES (PFL - GO. Sem apanhamento taquigráfico.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, os últimos acontecimentos no Congresso Nacional, no Brasil e em todo o mundo estão muito bem analisados na edição desta semana (14 a 20 de março de 2004) do “Jornal Opção”. O editorial “A ÉTICA DE DOIS GUMES”, de autoria do jornalista Herbert de Moraes Ribeiro, diretor-responsável do Jornal Opção, traz reflexões oportunas. Textos de tão alto nível são a marca do semanário goiano, muito bem editado pelos jornalistas Euler Belém, José Maria e Silva, Patrícia Moraes, Rogério Lucas e Marcos Bandeira, sob o comando de Herbert de Moraes Ribeiro e Nanci Guimarães de Melo Ribeiro.

Há quase três décadas, o Jornal Opção informa, educa e faz pensar, com uma cobertura que engloba os fatos políticos e econômicos, mas vai muito além, dando aula de Jornalismo, História, Sociologia e Filosofia. Seu caderno “Opção Cultural” enriquece a Literatura Brasileira publicando poesias e contos, investindo em resenhas e ensaios. Sua seguidas edições, nos últimos 28 anos, nos ajudam a entender os motivos de cada vez mais pessoas incompreensíveis cometerem atos ininteligíveis. Portanto, senhor Presidente, passo a ler, para que conste dos Anais, o editorial “A ÉTICA DE DOIS GUMES”, do jornalista Herbert de Moraes Ribeiro, que, por sua pertinência, merece registro nesta Casa do Congresso Nacional.

 

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DOCUMENTO A QUE SE REFERE O SR. SENADOR DEMÓSTENES TORRES EM SEU PRONUNCIAMENTO.

(Inserido nos termos do art. 210, inciso I e § 2º, do Regimento Interno.)

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A ética de dois gumes

A atitude do governo espanhol diante dos atentados de Madri lembra a dupla moral do PT -- que serve para perdoar sempre seus próprios pecadores à custa do sacrifício de adversários e até de aliados

Herbert de Moraes Ribeiro

Assim como o estado de direito se faz no contraditório, uma nação democrática se constrói com oposição. Por isso, ainda que ela possa se mostrar compreensível à luz das circunstâncias eleitorais e nos escombros das ideologias falidas, não consigo aceitar, intelectualmente, uma aliança ampla em Goiânia entre PT e PSDB. Ela contraria o papel que o eleitor delegou a ambos os partidos -- o de oposição e situação -- e reforça ainda mais a tendência do governo Lula de apoderar-se das instituições republicanas de um modo indolor, mas não menos perigoso. Se os coturnos e cassetetes eram a força do regime militar, a sociedade civil é a baioneta calada do governo Lula. Ao longo dos últimos anos, o PT aprendeu a manobrá-la contra os inimigos.

Mesmo agora, quando o partido e o governo se tornam alvo das mesmas críticas que faziam aos adversários, o PT ainda é capaz de valer-se da sociedade civil para impor seus interesses, como o arquivamento de CPI. Não que ela tenha dado apoio a essa prática. Pelo contrário, tudo indica que tenha ficado indignada com a nova prática petista, que condena tudo o que o partido pregou. Mas a “sociedade civil” é uma abstração e -- sem o próprio PT para torná-la concreta -- ela praticamente não existe. Daí a relativa facilidade com que o governo Lula arquiva investigações, como a da morte do prefeito Celso Daniel, de Santo André, mesmo com seus parlamentares agindo desastradamente no Congresso, a exemplo do senador Aloisio Mercadante.

Agora, no poder, o Partido dos Trabalhadores aprendeu rapidamente a fazer exatamente aquilo que condenava nos outros -- a política dos interesses de grupo contra os anseios coletivos. Só há uma diferença entre o PT e seus antecessores -- a consciência do erro. O político tradicional também não costuma colocar os interesses da coletividade à frente dos interesses de seu grupo político, mas ao menos ele tem consciência de que isso não é certo, conseqüentemente se torna mais fácil desmascará-lo quando pego num flagrante fisiológico.

Já o PT -- como todo partido de esquerda -- se julga detentor do monopólio da verdade e, se é pego num ato ilegal ou imoral, nunca pensa em corrigir-se, antes insiste em negar o fato ou até mesmo em legalizá-lo. Foi o que fizeram os ministros petistas que foram pegos em viagens particulares financiadas por verba pública. Eles não tentaram negar o gasto, como tentaria fazer um político tradicional. Simplesmente assumiram o fato, mas sem considerá-lo um erro, não pelo fato em si, mas pelo agente que o protagonizou -- sendo do PT, já esses agentes já eram puros por antecipação.

Lições da Tragédia -- Todavia, é preciso reconhecer que essa tendência dos indivíduos de sempre encontrarem justificativa para os próprios erros não é uma exclusividade dos petistas brasileiros. Prova disso são as espantosas imagens que chegam da Espanha.

Os 200 mortos e cerca de 1 mil e 500 feridos nas explosões terroristas, em estações de trem de Madri, são uma trágica lição para o mundo. Elas ensinam que não mais a guerra e, sim, o terror é que é a continuidade da política por outros meios. Os jornais europeus, num estilo um tanto mórbido, resumiram o terror madrilenho como uma réplica dos atentados de 11 de setembro de 2001, que derrubaram o World Trade Center, um dos mais caros símbolos norte-americanos, sediado em Nova York, talvez a mais cosmopolita das cidades do mundo. “O nosso 11 de Setembro” -- afirmou a imprensa européia.

Há diferenças quantitativas e estéticas entre os dois atentados. No terror de Nova York morreram mais pessoas, ainda que bem menos do que se imaginava no início das explosões que derrubaram as torres gêmeas. No terror de Madri, as vítimas não devem ultrapassar a casa das 200 pessoas, ainda que novos feridos venham a aumentar, nos próximos dias, o número de mortos. Todavia, a diferença maior entre os dois atentados é o caráter espetacular de um e a brutalidade quase comezinha do outro. O 11 de Setembro, sem dúvida, entrou para a história, como um marco. Pela primeira vez, a humanidade surpreendeu-se com a história em tempo real, transmitida ao vivo para todo o planeta.

É certo que outras guerras, antes dos atentados de 11 de Setembro, já haviam dado à humanidade essa sensação de viver a história. Especialmente a Guerra do Golfo Pérsico, no início da década de 90, quando mísseis teleguiados se enfrentavam no ar perante câmaras de televisão. Entretanto, faltava ao videogame do Golfo um elemento vital da história -- o imponderável. Por mais que alguns historicistas queiram encontrar leis gerais para a história, aptas a prever o seu curso, o certo é que ela escapa à qualquer análise exata. O que o especialista arranca à história são meras tendências, jamais certezas irretorquíveis como a certeza do astrônomo diante da rota de um planeta conhecido.

No 11 de Setembro, as câmaras captaram a história em sua essência, porque a tragédia, embora filmada e transmitida ao vivo para todo o mundo, não fora programada no mesmo sentido em que uma guerra é programada, com hora certa para começar e embates previstos pelo caminhar das tropas. Na tragédia do World Trade Center, era a história que entrava na vida de cada um de nós sem pedir licença. O mundo não parece mais o mesmo depois do 11 de Setembro e, provavelmente, os historiadores do futuro hão de reconhecer esse fato, reservando a essa data o mesmo caráter de marco que tem a tomada de Constantinopla pelos turcos em 1492, pondo fim ao Império Romano no Oriente.

Inflação do Terror -- Já os atentados de Madri, perpetrados na manhã de quinta-feira, 11, não são um marco na história, mas uma continuidade. De certo modo, eles continuam o 11 de Setembro, quaisquer que tenham sido seus autores. Para o governo espanhol, liderado pelo primeiro-ministro José María Aznar, o ETA, grupo separatista basco, é o principal suspeito de ter realizado as dez explosões quase simultâneas em trens de Madri. No entanto, os analistas não descartam a hipótese de que o atentado seja obra do mítico Osama bin Laden e sua Al-Qaeda. A ousadia dos atentados lembra o impacto do exuberante 11 de Setembro, e não o terror mais pacato do ETA.

Ainda que os separatistas bascos tenham sido os autores dos atentados em Madri, é inegável que eles agiram inspirados no terror do World Trade Center. É possível que a destruição das torres gêmeas, numa tragédia pirotécnica sem precedentes na história, tenha inflacionado o terror no mundo. Parece que a vida se tornou uma moeda ainda mais desvalorizada no câmbio do terror. Já não basta tirar uma meia dúzia de vidas, muito menos fazê-lo na calada da noite, como foi morto Aldo Moro, pelas Brigadas Vermelhas, na década de 70, na Itália. Hoje é preciso enrubescer o vídeo das televisões de todo o mundo com o máximo possível de sangue. Para isso, o atentado deve ser em horário comercial, potencializando o número de vítimas e facilitando a sua transmissão ao vivo.

Entretanto, a humanidade não muda conforme os caprichos da história. Ela conserva, em si, alguma coisa de essencial, que desafia os grandes cataclismos históricos, seja a diáspora dos judeus, no início da era cristã, sejam as bombas atômicas em Hiroxima e Nagasaki, no fim da Segunda Guerra Mundial. E uma das características essenciais do homem é o egocentrismo de seu caráter, capaz de transformar o mundo que o cerca num verdadeiro universo. São muitos os cadáveres de Madri, mas específicas são as lágrimas que os choram -- mãe por filho, irmão por irmão, esposa por marido, amigo por amigo. Só quando a dor pessoal invade a arena pública é que surgem as lágrimas devolutas, capazes de chorar a humanidade em si e não cada homem em particular.

Essa incapacidade, de condoer-se verdadeiramente, do ser humano abstrato não é um defeito do homem, mas uma qualidade. Quando ela fenece é que surgem os totalitarismos de toda espécie, capazes de sacrificar o indivíduo concreto à abstração de uma ideologia. Todavia, é preciso reconhecer que um pouco de abstração no trato com o ser humano é a base do processo civilizatório. Sem a capacidade de racionalizar minimamente as relações humanas, retirando-as do campo da afetividade pura, o indivíduo se torna injusto, como ocorre, por exemplo, nos linchamentos.

É o que se percebe nas declarações do governo espanhol a respeito dos atentados de 11 de março. Como eles ocorreram na véspera das eleições, o governo do primeiro-ministro José María Aznar deixou-se levar pelo temor de uma repercussão negativa dos atentados na campanha de Mariano Rajoy, seu candidato e favorito nas pesquisas de intenção de voto. Daí a tentativa do governo espanhol de descartar a Al-Qaeda e concentrar as suspeitas sobre o grupo separatista basco ETA. A rigor, uma investigação isenta dos atentados não pode descartar qualquer hipótese, muito menos a suspeita mais do que plausível que recai sobre a Al-Qaeda.

Invasões Mouras -- Mas o que leva o governo espanhol a temer que o atentado tenha sido praticado pela Al-Qaeda, a ponto de insistir em condenar o ETA? Sem dúvida, ao apoio que a Espanha deu à invasão do Iraque, juntamente com a Inglaterra, perfilando-se, de armas e bagagem, ao lado do presidente norte-americano George Bush. Caso tenha sido a Al-Qaeda a autora dos atentados, os espanhóis hão de culpar seu governo pelo fato de terem colocado a Espanha entre os alvos do terrorismo islâmico -- justamente a Espanha, que, desde a Idade Média, foi palco de invasões mouras, tornando-se, com isso, o país europeu mais influenciado pela cultura árabe.

Como se vê, políticos de todos os países, inclusive do primeiro mundo, tentam agir da mesma forma que os petistas brasileiros. Ou, para lembrarmos a máxima de Rubens Ricupero, que foi ministro da Fazenda de Itamar Franco, “o que é bom a gente divulga, o que é ruim a gente esconde”. Na época, o PT indignou-se, profundamente, com essa frase e, se não me engano, chegou a cogitar na impugnação da candidatura de Fernando Henrique Cardoso a presidente. Hoje, Duda Mendonça não me deixa mentir -- o PT age do mesmo modo. O governo Lula faz um alarde medonho quando distribui umas cestas básicas no interior do Piauí, mas procura, de todas as formas, esconder o caso de Santo André do olhar da opinião pública.

Até aí tudo bem. Não há nada de novo nessa tendência universal de todos os políticos. O problema é que a fraqueza moral deve ser privativa dos indivíduos e dos grupos, porque, quando se alastra pelas instituições, ela se torna muito perigosa. É o que acontece com o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, diferentemente do governo do espanhol José María Aznar. Enquanto no caso de Aznar, se houver fraqueza moral, ela é dos indivíduos que compõem seu governo, inclusive dele próprio, no caso de Lula os erros de seu governo ou do partido são sempre socializados, criando uma estranha responsabilidade difusa, que não pode ser discriminada. E, quando não é possível socializar o erro, expurga-se quem errou, mantendo intacta a estrutura partidária.

Sempre foi assim nos partidos de esquerda, desde Lênin, e com o PT não é e não será diferente. Por isso, partidos como o PSDB devem tomar cuidado ao propor aliança ao PT. Aliar-se à esquerda não é como aliar-se a um partido qualquer. Partido de esquerda é uma instituição fechada em si mesma, sempre apta a manipular, mas dificilmente manipulável. É claro que os políticos tradicionais também propõem alianças pensando em manipular os novos aliados em benefício de seu próprio grupo. Todavia, há uma diferença crucial -- o político comum é sempre o indivíduo, que pensa primeiro em si mesmo, depois no seu grupo, e só depois, se sobrar espaço, ocupa-se de seu partido como um todo. Isso faz com que sua base partidária nunca tenha a coesão religiosa de um partido de esquerda e os novos aliados podem aproveitar-se disso para crescer dentro dela.

Numa estrutura fechada como o PT, é muito diferente. Quem não é petista de origem será sempre um estranho no ninho e dificilmente conseguirá ascender politicamente. Não encontrará brechas no partido no qual se apoiar. Ali não há indivíduos, mas apenas correntes, tendências, estruturas. O indivíduo é mera peça da engrenagem. Prova disso é o ministério de Lula. Ele é basicamente composto só de petistas, inclusive de petistas derrotados nas urnas. E os que não são petistas tendem a ser ministros decorativos, sem poder de ação. Nas máquinas administrativas dos partidos tradicionais não costuma ser assim -- qualquer ministro monta seu feudo no governo e cresce politicamente com isso.

Obviamente, há vantagens e desvantagens -- mais estas que aquelas -- nesses modelos de estruturas partidárias. A estrutura fechada é menos fisiológica, reconheçamos, mas pode ser mais desumana. Querem um exemplo? O ministro Ricardo Berzoini. Em que estrutura tradicional de governo um ministro que fez o que ele fez com os velhinhos aposentados seria preservado no poder? Nenhuma. Só a ética religiosa dos partidos de esquerda é capaz de condenar o pecado, perdoando sempre o pecador -- se ele for correligionário. Porque se não for, dá-se exatamente o contrário: para a esquerda, mesmo o pecado já absorvido por sua prática (e já absolvido por sua ética) se flagrado nos outros será pecado mortal. Mesmo que para isso o partido de esquerda tenha que acuar eticamente o adversário, valendo-se de uma de suas especialidades -- o terrorismo ético. É a fraqueza moral do indivíduo transformada em amoralidade do grupo.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 18/03/2004 - Página 7690