Discurso durante a 96ª Sessão Não Deliberativa, no Senado Federal

Considerações sobre a integração sul-americana, e registro da análise sobre o assunto feita pelo embaixador Rubens Ricupero no Seminário "Amazônia e o Desenvolvimento Sustentável", promovido em Belém, pelo Centro de Cultura e Formação Cristã, da Universidade Católica Amazônica.

Autor
Arthur Virgílio (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/AM)
Nome completo: Arthur Virgílio do Carmo Ribeiro Neto
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA EXTERNA.:
  • Considerações sobre a integração sul-americana, e registro da análise sobre o assunto feita pelo embaixador Rubens Ricupero no Seminário "Amazônia e o Desenvolvimento Sustentável", promovido em Belém, pelo Centro de Cultura e Formação Cristã, da Universidade Católica Amazônica.
Publicação
Publicação no DSF de 23/06/2007 - Página 20672
Assunto
Outros > POLITICA EXTERNA.
Indexação
  • CRITICA, CONDUTA, GOVERNO ESTRANGEIRO, PAIS ESTRANGEIRO, VENEZUELA, BOLIVIA, DESRESPEITO, ACORDO, PREJUIZO, INTEGRAÇÃO, AMERICA DO SUL.
  • COMENTARIO, CONFERENCIA, RUBENS RICUPERO, EMBAIXADOR, SEMINARIO, DESENVOLVIMENTO SUSTENTAVEL, REGIÃO AMAZONICA, QUESTIONAMENTO, POLEMICA, CONDUTA, PRESIDENTE, PAIS ESTRANGEIRO, VENEZUELA, BOLIVIA, OBSTACULO, INTEGRAÇÃO, AGRAVAÇÃO, SITUAÇÃO, INCOMPATIBILIDADE, MODELO, ORDEM ECONOMICA, ORDEM POLITICA E SOCIAL, PAIS, AMERICA DO SUL.
  • ANEXAÇÃO, CONFERENCIA, EMBAIXADOR, DISCURSO, ORADOR.

O SR. ARTHUR VIRGÍLIO (PSDB - AM. Sem apanhamento taquigráfico.) - Sr. Presidente, Sras e Srs. Senadores, a tão acalentada e necessária integração sul-americana vai-se tornando, na atualidade, um mero sonho, ameaçado pelos procedimentos dos Presidentes da Venezuela e da Bolívia, Hugo Chávez e Evo Morales. Os dois minam e destroem a segurança de tratados e contratos bi ou plurinacionais. De tal complexidade é o problema que, hoje, já não há a mais remota possibilidade de acordos similares ao de Itaipu, do Brasil e Paraguai.

Esse enfoque, preocupante, foi exposto nesta quinta-feira pelo Embaixador Rubens Ricupero, no Seminário Amazônia e o Desenvolvimento Sustentável, promovido em Belém pelo Centro de Cultura e Formação Cristã, da Universidade Católica Amazônica.

            Há 30 anos, o diplomata analisou a iniciativa brasileira de negociar um Tratado de Cooperação Amazônica. Ele era então Conselheiro, Chefe da Divisão da América Meridional-II do Itamaraty e, em conferência na Câmara dos Deputados, participou de Audiência Pública na Comissão de Relações Exteriores da Câmara de Deputados sobre o tema “A Cooperação Regional na Amazônia.”

            Agora, em Belém, Ricupero mostrou que a integração pressupõe grau razoável de homogeneidade, isto é, a identidade de valores e critérios, a começar pelos da legitimidade política, associada à compatibilidade de padrões de organização política, econômica e social.

Essas condições praticamente inexistem nos dias de hoje no Continente. Para ele, “(...) aumenta de novo a heterogeneidade do Continente, à medida que setores sociais de massa, perenamente marginalizados, exigem lugar ao sol nas estruturas do poder político, econômico e cultural.”

            Pela importância do tema conduzido pelo Embaixador Ricupero, estou anexando a este pronunciamento o texto integral da conferência do ilustre homem público.

Era o que eu tinha a dizer.

Muito obrigado.

 

*********************************************************************************

DOCUMENTO A QUE SE REFERE O SR. SENADOR ARTHUR VIRGÍLIO EM SEU PRONUNCIAMENTO.

(Inserido nos termos do art. 210, inciso I e § 2º, do Regimento Interno.)

*********************************************************************************

Matéria referida:

Seminário:

Amazônia e o Desenvolvimento Sustentável

Amazônia, Política Nacional e Integração Continental

Centro de Cultura e Formação Cristã - Universidade Católica Amazônica

Belém do Pará, 14 de junho de 2007

Rubens Ricupero

Faltam apenas quatro meses para que se completem, em 19 de outubro, 30 anos da primeira apresentação que fiz em público da iniciativa brasileira de negociar um Tratado de Cooperação Amazônica. Eu era então Conselheiro, Chefe da Divisão da América Meridional-II do Itamaraty e falei na Comissão de Relações Exteriores da Câmara de Deputados sobre A Cooperação Regional na Amazônia. Datava de março a sugestão do governo brasileiro para que se negociasse um tratado regional mas a negociação não havia ainda começado.

Em 9 de maio de 1979, voltava à Comissão para apresentar O Tratado de Cooperação Amazônica, assinado em Brasília em 3 de julho de 1978. O processo de aprovação e ratificação encontrava-se no início e a primeira reunião de Chanceleres viria a realizar-se em Belém, no majestoso Teatro da Paz.

Quase três décadas depois, não vou tentar esboçar a história do que sucedeu desde então porque, a partir de 1985, fui chamado a outras tarefas e não voltei a ocupar-me diretamente do assunto.

A integração continental impossível

Nem desejo gastar muito tempo com a integração continental do título da palestra de hoje por não estar convencido de que seja esta uma possibilidade real no momento. Nesse particular, a história conheceu um retrocesso. Vivemos em toda a América do Sul, com maior intensidade no arco andino e no norte do continente, fase muito mais de divergência e divisão que de convergência e integração.

A integração pressupõe grau razoável de homogeneidade, isto é, a identidade de valores e critérios, a começar pelos da legitimidade política, associada à compatibilidade de padrões de organização política, econômica e social.

Tinha-se a esperança de caminhar para a convergência na América do Sul em fins dos anos setenta, tempos da evolução lenta, gradual e segura dos regimes militares rumo à democracia representativa clássica que já imperava em alguns dos países da região.

Hoje, aumenta de novo a heterogeneidade do Continente, à medida que setores sociais de massa, perenamente marginalizados, exigem lugar ao sol nas estruturas do poder político, econômico e cultural.

Os três países mais radicalizados por esse processo - Venezuela, Equador, Bolívia, todos signatários do Tratado Amazônico - encontram-se mergulhados de corpo e alma em absorventes processos internos de mudança constitucional, em meio à polarização da sociedade e confrontos entre setores antagônicos.

A exacerbação de expectativas, típica de tais situações, tem conduzido, nesses países, a acessos de nacionalismo, nacionalizações de investimentos estrangeiros e modificações unilaterais de tratados e contratos sobre exploração de petróleo e gás até com parceiros de integração.

Multiplicam-se os conflitos em torno de investimentos de lenta maturação como gasodutos e similares, gerando recriminações, desconfianças e insegurança jurídica. Os projetos de integração energética assim afetados são justamente aqueles que aumentam a dependência do Brasil em relação a fornecimento de energia de países vizinhos. Só podem prosperar, portanto, em atmosfera de absoluta confiança mútua e irrestrita segurança legal.

Ao minarem a confiança e destruírem a segurança de tratados e contratos, procedimentos como os que vêm sendo seguidos por Chávez e Morales e ameaçados pelos paraguaios inviabilizam na prática os projetos de integração que alguns deles propugnam, como, por exemplo, o ambicioso Gasoducto del Sur ligando a Venezuela à Argentina.

Da mesma forma que ninguém mais crê na factibilidade de tal projeto, não existe hoje a mais remota possibilidade de reproduzir acordos similares ao de Itaipú, com o Paraguai e do gás, com a Bolívia, ambos remontando à era de ouro da integração dos anos setenta.

A integração energética sempre foi a melhor esperança e a promessa mais concreta de dar realidade e substância ao sonho da integração sul-americana, pois só ela tinha o potencial de mobilizar os gigantescos recursos econômicos para construir a infra-estrutura necessária.

Apresentava a vantagem adicional de juntar a natural vocação brasileira de importar energia com a situação de exportadores atuais ou potenciais de energia da maioria de nossos vizinhos. A inviabilização política da integração do setor é golpe seríissimo ao escopo da cooperação econômica regional.

Uma das poucas (e mais pobres) alternativas - a integração comercial - atravessa crise semelhante ou pior. É o que se constata da decomposição do Grupo Andino e da decadência dos demais esquemas integracionistas. Seus desiludidos membros, ou fazem “opção preferencial” pelos norte-americanos, ao assinarem com a potência hegemônica acordos assimétricos de livre comércio (Peru, Colômbia), ou se esforçam em fazer sair uma ainda vaga Alternativa Bolivariana da nebulosa das idéias em fermentação. Enquanto isso, o Mercosul, mesmo na sua versão prematuramente amplificada, sobrevive, cada vez mais, como mero fórum declaratório.

Será mais talvez nessa questão do que em qualquer outra que se adverte como as divergências vão muito além de preferências por opções comerciais diferentes. Elas derivam, em verdade, de profundas incompatibilidades ideológicas, que avivam os contrastes entre os governos radicalizados e os surgidos de sistemas político-eleitorais tradicionais.

A antipatia entre regimes fundados em valores tão discrepantes, agravada por intromissões públicas de alguns, em especial de Chávez, em disputas eleitorais ou controvérsias internas alheias, reforça aos poucos a percepção de que a América do Sul setentrional e amazônica se divide e fragmenta cada vez mais.

Quanto tempo durará a tendência ao aumento da heterogeneidade? É difícil dizer, mas, de qualquer modo, este não é obviamente o ambiente mais propício a ambiciosos desígnios de integração de parceiros que se sentem atraídos por direções mais opostas do que complementares.

A cooperação possível: salvar a Amazônia da destruição das queimadas e da mudança climática.

Se a análise soa pessimista, o que segue busca alento numa esperança: a de que exista ao menos um macro-tema em condições de unir a todos numa luta comum. Esse tema só pode ser o que se confunde em nossos dias com a mãe de todas as ameaças, a mudança climática e o perigo que faz pesar sobre o futuro da vida, não apenas humana e civilizada, em toda a Terra.

Dentro da ameaça abrangente para todo o planeta, a perspectiva da Amazônia é uma das mais sombrias. O recente relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) estima que aumentos da temperatura e reduções na água do solo levarão à gradual substituição da floresta tropical úmida por savana mais pobre que a do cerrado do Centro Oeste, de início e mais acentuadamente na Amazônia Oriental, onde mais intensa foi a deflorestação.

Conclui no mesmo sentido o livro Mudanças Climáticas Globais e seus Efeitos sobre a Biodiversidade - Caracterização do Clima Atual e Definição das Alterações Climáticas para o Território Brasileiro ao longo do Século XXI, de José A. Marengo, do CPTEC/INPE, em colaboração com a USP e a Fundação Brasileira de Desenvolvimento Sustentável, publicado em 2007 pelo Ministério do Meio Ambiente.

Acrescenta que, no pior cenário, o da continuação dos atuais padrões de emissões, a elevação da temperatura na região pode chegar até à enormidade de 8oC! Além da destruição da floresta, do aumento de freqüência das secas e incêndios, com impactos desastrosos sobre vidas humanas, uma elevação desse nível nos arrastaria a terreno desconhecido e inteiramente fora de qualquer experiência na história da humanidade. Seria, por exemplo, altíssima, talvez maciça, a proporção de espécies vegetais e animais que se extinguiriam.

As estimativas, tanto do IPCC quanto as do INPE, constituem eco dos cenários projetados para a Amazônia, pelo Centro Hadley, do Escritório Meteorológico do Reino Unido, na hipótese de que nada mude no ritmo das emissões de gases-estufa. Nessas condições, o efeito El Niño, isto é, o aquecimento anormal das águas do Pacífico tropical, se tornaria fenômeno permanente, trazendo menos precipitação para a Amazônia.

A conjunção das altas temperaturas com menos chuva acarretaria a morte da floresta antes de 2080, de acordo com o modelo Had3CM, que é, de todos os cenários do Centro Hadley, o mais catastrófico e, infelizmente, também o mais provável, segundo declaração pública de um dos principais meteorologistas brasileiros, o professor José A. Marengo.

Por volta de 2100, a temperatura média amazônica teria se elevado em até 8,3oC, cerca de 44% a mais do que o correspondente aumento da temperatura média global!

É impossível imaginar as conseqüências de tal explosão calorífica. James Hansen, Diretor do Instituto Goddard de Pesquisas Espaciais da NASA, considerado por muitos o maior climatologista vivo, teme que mesmo uma elevação de 2oC, já praticamente assegurada devido às emissões ocorridas no passado, poderia provocar a extinção de entre 20% e 30% das espécies.

Para que se faça idéia do que isso representa, basta lembrar que uma diferença de 5oC , muito menos do estimado para a Amazônia, é a faixa que nos separa da temperatura média da última era glacial.

A realização ou não de tais cenários depende do que se faça não só para interromper o aumento da concentração de gases-estufa mas para revertê-la aos mais baixos níveis possíveis.

A partir de valor pré-industrial de 280 ppm (partes por milhão) de dióxido de carbono, chegamos, este ano, a 383 ppm, número muito superior à série natural nos últimos 650.000 anos.

Longe de esmorecer, o ritmo de acumulação, que era de aumento de 1,1% por ano, na década de 1990, passou para 3,1%, quase três vezes mais, entre 2000 e 2004. Existe praticamente consenso científico que o teto das emissões tem de ser atingido dentro de mais ou menos 10 anos, sob pena de desencadear-se processo de retroalimentação de efeitos (feedbacks), que irão acelerar o aquecimento de modo irreversível.

Muito mas não tudo no destino da Amazônia depende, por conseguinte, da ação global para reverter o aquecimento. Parte desse destino, contudo, encontra-se em nossas mãos, uma vez que as queimadas e o desmatamento contribuem com 75% das emissões brasileiras de dióxido de carbono. O Brasil é já o quarto maior emissor de CO2 e o segundo, perdendo apenas para a Indonésia, das emissões oriundas de queimadas.

Globalização, diz uma de suas definições, é situação na qual tudo o que é global passa a ser relevante para o local e tudo o que é local possui também relevância para o global. Se assim é, a posição da Amazônia em relação à mudança climática é perfeita ilustração do conceito.

É neste ponto que entra o Tratado Amazônico. Ao analisá-lo na Câmara dos Deputados em 1979, comentei que uma das marcas de sua modernidade era a de haver atribuído, desde o preâmbulo, igual hierarquia às exigências do desenvolvimento e às da preservação ecológica. Entre elas, sublinhei, deveria haver equilíbrio e harmonia.

Um melancólico pós-escrito, 28 anos depois, lembraria que mais talvez do total de dois terços dos 600.000 km2 de floresta amazônica destruídos foram queimados ou derrubados nesse período. Para os que acham que esta conferência é pessimista, mostram esses números que o desempenho brasileiro no passado e no presente dificilmente justificaria excesso de confiança quanto ao futuro.

Uma agenda regional com implicações para a política nacional

Não existe, no entanto, determinismo algum que nos obrigue a reprisar sempre a mesma tragédia. O Pacto Amazônico pertence ao gênero dos tratados-quadros, como a Convenção Quadro sobre Mudança Climática. Assim como esta última serviu para abrigar em seu seio o Protocolo de Kyoto, temos espaço para acolher um protocolo ou acordo regional sobre mudança climática na Amazônia.

Esse acordo visaria a criar uma espécie de IPCC amazônico. O que é, afinal, o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas? Como o nome indica, é órgão formado por governos, gerido por duas entidades da ONU - a Organização Meteorológica Mundial (OMM) e o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) - que não realiza pesquisa primária mas recolhe, analisa, avalia o conhecimento científico produzido no mundo inteiro e tenta chegar a um consenso científico sobre a mudança do clima.

O IPCC divide-se em três Grupos de Trabalho, concentrados nos aspectos estritamente físicos da mudança, o primeiro; na vulnerabilidade dos sistemas naturais e socio-econômicos às mudanças e na adaptação a elas, o segundo; nas políticas para mitigar o aquecimento global, o terceiro. A adaptação, como se sabe, dirige-se aos efeitos (por exemplo, diques contra a subida do nível dos oceanos). Já a mitigação busca agir sobre as causas, procurando reduzir a emissão dos gases causadores do efeito estufa.

Falta-nos algo similar em matéria de mudança climática na Amazônia, não só em termos brasileiros mas regionais amazônicos. Não seria difícil desenhar um órgão que sistematizasse e coordenasse a análise dos dados que estão sendo produzidos sobre o fenômeno na Amazônia, tanto na influência do que ocorre na área para o processo global quanto no impacto na região das causas externas globais.

O modelo do IPCC serviria como orientação geral: o órgão prepararia relatórios periódicos sobre a mudança na Amazônia e estudos específicos, na base de grupos de cientistas indicados pelos diversos países e selecionados pelo critério da competência. Tal qual o IPCC, seria entidade híbrida político-diplomática-científica e os relatórios e recomendações se baseariam em projetos discutidos com absoluta transparência a fim de evitar interferências inadmissíveis.

O Fórum Brasileiro de Mudanças Climáticas acaba de submeter ao Ministério do Meio Ambiente proposta de um Plano Nacional de Ação de Enfrentamento das Mudanças Climáticas, da criação de Rede Nacional de Pesquisa sobre Mudança do Clima e de Organismo Nacional de Política Climática.

No fundo, o que aqui se sugere é inspirado por essa iniciativa, com as devidas adaptações. Em âmbito plurilateral como o do Pacto Amazônico, seria prematuro querer estabelecer órgão para traçar política climática, embora nada impeça algo similar ao Grupo de Trabalho III do IPCC, a fim de propor idéias e medidas aos governos.

A feliz e oportuna iniciativa do Fórum no plano nacional teria apenas a ganhar se adquirisse dimensão regional, posto que, na Amazônia, os fenômenos climáticos e de outra natureza não se detêm obviamente nos limites fronteiriços do Brasil, razão, aliás, que foi determinante na negociação do Tratado. A extensão à região seria desdobramento lógico e natural do projeto do Fórum.

À diferença do IPCC, não bastaria, no nosso caso, limitar o esforço à sistematização e análise do melhor conhecimento científico e técnico disponível. Na Amazônia, o problema central sempre foi o do conhecimento, escasso e sujeito a mil incertezas e controvérsias. Philip M. Fearnside, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), em Manaus, cientista notável que dedicou a vida ao estudo da Amazônia, relaciona em seu site nada menos que 16 das principais controvérsias sobre a região, que vão da capacidade de sustentação humana ao efeito das represas.

Uma lista como essa, de modo algum exaustiva, seria inimaginável na porção brasileira da Bacia do Prata, onde o povoamento do território se completou e tende a declinar, as barragens praticamente esgotaram o potencial de aproveitamento hidrelétrico e, de maneira geral, é já considerável o acervo de conhecimento ambiental.

Sempre pensei que a principal vocação do Tratado Amazônico era a de fazer avançar o conhecimento científico. Muitas vezes lembrava em apresentações o que dizia, 60 anos atrás, Preston James, autor de um clássico da Geografia Humana, A Geography of Man. Ao examinar, um por um, todos os habitats do ser humano, desde os boreais aos equatoriais, observava que o problema da floresta equatorial era que não existia ciência e tecnologia capazes de resolver os desafios básicos de produção, saúde e outros nessa zona. Comentava que os países em condições de produzir o conhecimento científico não possuíam florestas equatoriais e os que as possuiam, não tinham as condições científicas e técnicas indispensáveis.

Não creio que, no fundamental, essa descrição haja envelhecido: contamos agora com plantel razoável de cientistas capazes, mas não há financiamento, organização nem muito apoio oficial. Um dos maiores climatologistas nacionais, o professor Carlos Nobre, em entrevista a “O Estado de São Paulo” (7/4/07), queixava-se da falta de apoio no Brasil para estudos sobre impacto e vulnerabilidade, admitindo: “O Brasil é mais atrasado do que muitos países em desenvolvimento (...) Esses estudos são raríssimos e o Brasil não os fez até hoje”. E, respondendo a uma pergunta sobre adaptação à mudança climática, desabafava: “Vai adaptar o quê, se não sabe qual é o impacto?”

Num ponto estão de acordo todos os cientistas e especialistas, de Nobre a Fearnside, de Salati a Viola, passando por Pingueli Rosa, presidente do Fórum: é preciso pôr fim ao vergonhoso processo de queimadas e desmatamento que nos rebaixa ao nível bárbaro e estúpido dos dilapidadores do patrimônio próprio. Nesse sentido, o Fórum teve a excelente idéia de propor ao governo que se estabeleçam metas-teto para o desmatamento. 

Fearnside demonstrou a falsidade da desculpa de que o vício deve-se à pobreza: mais de 70% das queimadas e desmatamento destinam-se a pastagens de gado em grandes ou médias propriedades. Do restante, boa parte visa à extração de madeiras nobres, sem replantio, à afirmação de falsos direitos sobre terras griladas, à especulação com terras.

Guardadas as devidas proporções, as queimadas equivalem ao que foram, no século XIX, o tráfico de escravos e a escravidão: uma prática odiosa, execrada pela opinião pública mundial, que ninguém ousa defender, nem no Brasil, mas que somos incapazes de controlar. O fracasso cria vulnerabilidade e induz os governos a invocarem a soberania nacional para resistir às propostas civilizadas de regulamentar as florestas, como se fazia em relação ao tráfico. Como se não fosse do mais puro interesse nacional defender, para nós e futuras gerações, o melhor do nosso patrimônio climático e de biodiversidade!

Salta aos olhos, de igual modo, a falácia de que o desmatamento é condição do desenvolvimento, quando se constata que a prática é ligada ao que de mais retrógrado existe no país: o latifúndio pecuarista, cuja rentabilidade se deve aos subsídios e às externalidades, isto é, aos custos da destruição, não assumidos pelos destruidores mas pela nação.

O mais absurdo é que o desmatamento anula todas as vantagens de que o Brasil poderia beneficiar-se por conta de matriz energética relativamente limpa, graças à origem hídrica da maioria da eletricidade. Em contraste com os Estados Unidos, a China, a Índia, o Japão, a maioria dos asiáticos, cerca de três quartos das emissões de gás-estufa provêm, no caso brasileiro, das queimadas e da deflorestação. Todo o resto - indústria, geração de energia, carros, caminhões, aviões - mal chega a um quarto.

Tal equação favorável nos permitiria, em tese, reduzir substancialmente as emissões sem tocar no setor moderno e impulsionador do crescimento econômico. A incapacidade de pôr fim ao desmatamento nos faz reféns do setor retrógrado e explica, entre outras coisas, que o país se tenha oposto à inclusão, no Protocolo de Kyoto, da possibilidade de adquirir créditos de carbono mediante a conservação da floresta nativa que evita as emissões derivadas das queimadas e desmatamento.

Preferimos a aliança com países de matriz suja - China, Índia, Indonésia - anti-natural e contrária a nossos melhores interesses. Como bem sublinhou o professor Eduardo Viola, da Universidade de Brasília, talvez o melhor conhecedor no Brasil da política e diplomacia da mudança climática: “A vantagem da matriz energética ficou sempre subordinada à desvantagem do desmatamento da Amazônia na formação da posição brasileira (...) Uma visão alternativa e positiva sobre a Amazônia teria levado o Brasil a uma aliança inversa, o que talvez influenciasse sobremaneira o perfil final do Protocolo”.

Voltamos, assim, as costas a quase todos os latino-americanos, inclusive a Argentina, Chile e todos os participantes do Tratado Amazônico, exceto o Peru, no curto e infeliz período em que esteve sob o sinistro poder de Fujimori.

O Protocolo de Kyoto acabou por aceitar a inclusão do plantio de florestas e do reflorestamento, mas não da conservação das florestas nativas. Felizmente, haverá nova chance na negociação do segundo período de aplicação do Protocolo, a partir de 2012.

A evolução tem sido positiva. Além do Ministério de Meio Ambiente e dos nove Estados amazônicos, desde o início favoráveis à inclusão, outros setores oficiais parecem mais abertos. É o que indicaria a proposta brasileira, ainda insuficiente, da criação de fundo financeiro para compensar a renúncia a usos alternativos da floresta e custear a melhoria do combate ao desmatamento. Pena que a natureza voluntária do fundo torne sua concretização altamente improvável.

O que nos conduz à conclusão. A melhor maneira de contribuir para evitar o aquecimento global e a destruição da Amazônia é liquidar uma vez por todas com o desmatamento. Cerca de 18% dos gases- estufa se originam das florestas, mais que todo o setor de transporte, o que indica a insuficiência do etanol de cana para compensar o mal feito pelas queimadas.

O relatório do Grupo III do IPCC assinala que 65% da economia potencial de carbono em florestas se localiza nos Trópicos e 50% do potencial de mitigação seria atingido apenas evitando o desmatamento, o que evidencia a responsabilidade brasileira.

Fearnside é pioneiro em demonstrar que nenhum uso destrutivo compara-se, mesmo de longe, ao valor dos serviços ambientais que a floresta amazônica vem, até hoje, prestando de graça. Esses serviços se desdobram em três extraordinárias contribuições: a retenção do carbono, evitando que ele aumente os gases na atmosfera; a conservação da biodiversidade; a reciclagem das águas, influindo nas chuvas no Centro-Sul e até o Prata.

Ao passo que o último desses benefícios é regional, os dois outros favorecem ao globo como um todo e merecem ser remunerados, apesar de que atualmente só existam mecanismos concretos - os créditos de carbono - no caso do primeiro. Eis aí agenda que por si só justificaria um protocolo do Tratado Amazônico para juntar todos esses países na futura negociação pós-Kyoto em favor do reconhecimento dos serviços ambientais da Amazônia.

A causa é nobre: faria do conjunto dos países amazônicos uma potência ambiental em razão da floresta, da água e da biodiversidade e lhe daria personalidade internacional incontornável na solução do maior problema humano dos próximos cem anos: a mudança climática e seu impacto sobre a vida.

 


Este texto não substitui o publicado no DSF de 23/06/2007 - Página 20672