Discurso durante a 104ª Sessão Especial, no Senado Federal

Homenagem à memória do ex-Senador Jefferson Péres.

Autor
Cristovam Buarque (PDT - Partido Democrático Trabalhista/DF)
Nome completo: Cristovam Ricardo Cavalcanti Buarque
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • Homenagem à memória do ex-Senador Jefferson Péres.
Publicação
Publicação no DSF de 18/06/2008 - Página 20925
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM POSTUMA, JEFFERSON PERES, SENADOR, ESTADO DO AMAZONAS (AM), ELOGIO, ETICA, VIDA PUBLICA, DEFESA, SOBERANIA NACIONAL, NACIONALISMO, VALORIZAÇÃO, HOMEM, RESPONSABILIDADE, COMPROMISSO, POLITICA, INTERESSE PUBLICO, DESENVOLVIMENTO SOCIAL.

O SR. CRISTOVAM BUARQUE (PDT - DF. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Bom dia a cada um e a cada uma.

Cumprimento o Presidente da Mesa, Senador Alvaro Dias. Cumprimento os filhos do nosso querido Jefferson - Rômulo, Roger e Ronald -, sobre os quais falarei em algum momento,

Cumprimento o Senador Arthur Virgílio, que é autor deste projeto, junto comigo; o Ministro do Superior Eleitoral, Carlos Ayres Britto; o amigo, Prefeito Serafim; e muito, muito especialmente, a Srª Marlídice Péres, esposa do Senador e que teve um papel tão importante na sua carreira.

Eu creio que, quando a gente fala de pessoas, até continuando a poesia do Octávio Paes, lida pelo Presidente da Mesa, a gente deve falar de palavras que se liguem, que se identifiquem com a pessoa sobre a qual falamos.

O poema lido pelo Presidente Alvaro Dias conclui dizendo que “eu estou sendo soletrado pelas estrelas”. É assim que a gente deve analisar cada pessoa. Como é que Jefferson Péres foi soletrado, que palavras simbolizam essa pessoa diferente de outras?

Eu diria o que todos sabem: que a primeira palavra chama-se ética. Jefferson Péres é soletrado é-t-i-c-a . É assim que se soletrou Jefferson Péres ao longo da sua vida, especialmente a sua vida pública, de que todos tinham conhecimento dela, mas diferente de algumas pessoas que soletram a palavra ética na sua vida, apenas no momento em que acontece um ou outro fato escandaloso que merece denúncia.

Jefferson não era o homem da denúncia. Ele era um homem da política que buscasse fazer com que neste País não houvesse falta de ética. Ele não se limitava a falar, criticando os que não tinham ética, Ministro. Ele procurava construir um país onde todos se comportassem dentro da ética. Essa foi a sua diferença.

Mas há outras palavras de que, talvez, pouco se lembrem, mas que faço questão de lembrar aqui. A segunda palavra que, a meu ver, se identifica com Jéferson Peres e tão carente, ou mais, hoje em dia do que a ética é a palavra soberania nacional. Porque nos acostumamos, de tal maneira, com esse processo de globalização, que, na verdade, é um processo de englobação das nações todas do mundo, em um projeto civilizatório que vem de um outro país, que a gente perdeu o gosto pela soberania. Muitos de nós passamos a ter até vergonha de dizer-se nacionalista. O Jefferson não. O Jefferson assumiu aqui, nesta tribuna, por diversas vezes, a defesa da soberania brasileira. Essa é uma palavra que casava com ele. Mas não só a soberania e o nacionalismo. Casava com ele, também, a palavra humanismo. E, nesse sentido, a visão que ele tinha de nacionalismo não era uma visão xenófoba do Brasil contra o resto. Ele era um homem que era capaz de defender a sua nação sem perder a perspectiva humanista. Eu o vi falar, como se nós, brasileiros, fizéssemos parte de um grande condomínio chamado planeta Terra.

Donos nós somos daquilo que está dentro do nosso território, mas com responsabilidade com o resto do mundo é que nós devemos usar nossos recursos. Nós não podemos tocar fogo nos móveis da nossa casa só porque a casa é nossa. Temos que respeitar os vizinhos e as conseqüências que acontecem ao lado. Eu diria que Jefferson Péres poderia ser definido como um “pátrio-humanista”, uma palavra que a gente não tem ainda, porque ainda temos a dicotomia entre patriota e humanista. Está na hora de casar essas duas palavras em que você pode ser patriota sem deixar de ser humanista. Você pode ser humanista, sendo também um patriota.

Outra palavra que eu creio que todos aqui reconhecem, que é uma palavra com a qual se escreve o nome Jefferson Péres, é a palavra responsabilidade. E hoje, Sr. Presidente, falta tanto ética quanto responsabilidade na política. Nós passamos a achar que ética é não roubar, mas nós não percebemos que há certas formas de irresponsabilidade piores até do que muitas faltas de ética. O Jefferson defendia aqui a responsabilidade. A responsabilidade que faz com que nós não possamos ser corporativos. Jefferson era o anticorporativismo, porque ele era o defensor da Nação com o sentimento de humanista. Quantas pessoas hoje, neste País, não se julgam totalmente éticos mas defendem propostas que interessam só a elas, pessoas, e aos seus grupos de forma corporativa?

São pessoas irresponsáveis na política. O Jefferson era responsável. Ele era corajoso o suficiente para defender, quando fosse preciso, aumento de impostos, mesmo que isso fosse impopular. Ele era capaz de defender redução de gastos públicos, mesmo quando isso fosse impopular. Ele era um homem de uma responsabilidade profunda com os destinos do País. Por isso, ele era também ético. Mas não só ético. Um ético com responsabilidade. Um ético, portanto, sem corporativismo. Um ético que tinha um sentimento de Nação casado com um sentimento de humanismo. Mas não era só isso. Ele era capaz de ter a responsabilidade com compromisso, porque alguns são irresponsáveis. Outros até são responsáveis, mas não têm o compromisso social. O Jefferson tinha. Ele era um radical defensor do equilíbrio das contas públicas, da responsabilidade fiscal, custasse o que custasse, do ponto de vista de popularidade, mas ele exigia que esse dinheiro fosse gasto corretamente, do ponto de vista dos interesses do povo e não do ponto de vista dos interesses de um ou outro grupo.

Ele defendia aqui o compromisso com a educação, com a saúde. Ele defendia aqui o compromisso com a parcela pobre da sociedade. Ele defendia a integração social deste País e não só a integração lingüística, que a gente tem; não só a integração territorial, que a gente construiu a partir dos anos 70. Ele defendia aqui a integração social pois ele tinha esse compromisso, palavra com a qual se soletrava o nome de Jefferson Péres - pegando carona, mais uma vez, no poema citado pelo nosso Presidente no final de seu discurso.

Mas ele era um político que tinha uma palavra que casava com ele mais do que com muitos outros. É a palavra gesto. O Jefferson não era um homem só de palavras. O Jefferson era um homem de palavras e de gestos - gestos claros, nítidos quando era necessário. Alguns gestos até pelas palavras, outros gestos pela ação que ele fazia - por exemplo, o seu belíssimo discurso aqui, neste lugar. Ele sempre falava deste lugar. Nunca o vi na outra tribuna até porque se sentava onde hoje está sentado o seu filho. Esse era o lugar em que ele ficava, e eu tenho a honra de sentar atrás dele. Por isso, conseguia conversar tanto com ele.

O Jefferson fez aquele belo discurso em que dizia - e foi citado pelo Presidente Alvaro Dias - que sairia em breve de mandatos para continuar na política. Esse foi um gesto, um gesto raro, porque, em geral, da política, a gente sai por ter perdido a eleição. Ou sai morto, como ele saiu, porque o destino não quis esperar o final do seu mandato, porque a decisão dele estava tomada. Ele tomou aquele gesto como uma prova de que política é maior do que mandato, política é maior do que profissão, política é maior do que Congresso, política é maior do que cargo público. Ele sabia que política é sinônimo da ação de um cidadão buscando compor os interesses de toda a coletividade em que vive. Por isso, a palavra gesto, a meu ver, casa com Jefferson Péres.

A outra palavra é retitude. Jefferson foi um homem reto. Ele foi capaz de fazer política de uma maneira muito rara hoje em dia, com uma linha traçada da qual ele não abria mão. Não fez política como em geral se faz, dando voltas e contornando - até muitas vezes justificando em frases como “os meios justificam os fins”. Para Jefferson, os meios não justificavam os fins; os fins é que tinham que estar sendo construídos de acordo com os meios que a gente usava: os meios tinham que se subordinar aos fins. E ele foi um homem de retitude na vida. É raro, Ministro, a gente ter hoje político que consegue sobreviver mantendo-se numa linha reta, traçada conforme os seus princípios.

Mas ele era um homem também de cultura - isso é que poucos percebiam. E isso, sobretudo, conversando com os filhos, conversando com a esposa, conversando com os amigos, é que a gente descobre. Um homem que gostava profundamente da música, que gostava muito de cinema, que gostava muito de literatura, cuja casa mostra, inclusive, uma identidade de estilo na decoração art nouveau, como vi que ele tinha ali. O Jefferson foi um homem de cultura.

Não foi, como muitos de nós, um homem mecanicista na atividade política. E foi também duas palavras que ainda quero colocar. Uma delas, a palavra amor, mas no sentido público: amor à sua cidade, amor ao seu Estado, amor à sua região, amor à sua Nação e amor à humanidade. Não foi uma prática política com base apenas na racionalidade de transformar o País e o mundo. Foi também baseado no sentimento de que isso é preciso.

Esse sentimento de amor que, às vezes, a cara que ele gostava de manter, firme pela retitude, dava a impressão de que ele não tinha, mas ele tinha profundamente.

Jefferson, quando convidado a ser candidato a Vice-Presidente, disse para mim que viria com a condição de não rir quando não tivesse vontade, de não dar tapinha nas costas em busca de voto, de não carregar criança para enganar os pais. Ele quis com aquilo dizer que aquela maneira firme era uma maneira de amor pelo País ao qual ele ia se sacrificar, defendendo uma campanha sem a menor chance de dar certo, sem a menor chance de chegar a dois dígitos nas votações. Mas ele disse que ia fazer isso.

E finalmente concluo dizendo que ele foi uma pessoa - descobri depois de sua morte - que casaria sua vida, que permitiria que sua vida fosse soletrada com as letras da palavra família.

Devo dizer da impressão profunda que me causou os dois discursos que escutei, durante a missa de sétimo dia dele em Manaus, pela sua esposa e pelo seu filho. Vi naqueles dois depoimentos a manifestação sobre um outro homem que aqui não costumávamos identificar: um homem que brincava com os filhos, que dançava, como foi dito, às vezes até sozinho, como o filho disse, um homem que teve um sentimento de família que às vezes achamos incompatível com a política, pelo tempo que a política exige de nós.

Sr. Presidente, V. Exª me trouxe a inspiração para este discurso com os versos de Octavio Paz, poeta que tive o privilégio de conhecer e, sem dúvida alguma, um dos maiores deste século. Mas eu não conhecia esse verso que diz que ele está sendo soletrado como cada um de nós está sendo soletrado, porque a vida da gente está sendo escrita pelo destino, pelas estrelas que o poeta cita.

O Jefferson teve uma vida soletrada com as palavras que cada um da gente gostaria de ter escritas na nossa lápide, na nossa biografia. Além disso, tem algo maior do que tudo o que falei das palavras que se identificam com ele: são as palavras que não se identificam com ele, que não vou citar aqui para não diminuir a mensagem. As palavras da maldade, do mau comportamento, não faziam parte do dicionário da vida de Jefferson Péres.

Por isso, como me foi dito, durante a visita que fiz ao seu túmulo, por um dos seus amigos, ele tinha todo o direito de dizer que, quando morresse, queria que se escrevesse apenas “Aqui jaz um homem de bem”. Ele foi um homem de bem, por isso, foi um exemplo para todos nós.

Sr. Presidente, era isso que eu queria dizer nesta sessão de homenagem que a gente faz para sentir a ausência de Jefferson. Porque há grandes homens públicos que são fortes pela presença, mas os maiores de todos os homens públicos são aqueles que ficam fortes pela ausência, e Jefferson é um homem que cresceu com a sua ausência. (Palmas.)


Este texto não substitui o publicado no DSF de 18/06/2008 - Página 20925