Discurso durante a 246ª Sessão Não Deliberativa, no Senado Federal

Registro dos 150 anos do livro As Primaveras, de Casimiro de Abreu.

Autor
José Sarney (PMDB - Movimento Democrático Brasileiro/AP)
Nome completo: José Sarney
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • Registro dos 150 anos do livro As Primaveras, de Casimiro de Abreu.
Publicação
Publicação no DSF de 15/12/2009 - Página 67298
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • QUALIDADE, INTELECTUAL, HOMENAGEM, SESQUICENTENARIO, LIVRO, LITERATURA BRASILEIRA, IMPORTANCIA, VALORIZAÇÃO, LEITURA, REGISTRO, BIOGRAFIA, POETA, TRECHO, OBRA ARTISTICA.

                          SENADO FEDERAL SF -

            SECRETARIA-GERAL DA MESA

            SUBSECRETARIA DE TAQUIGRAFIA 


            O SR. JOSÉ SARNEY (PMDB - AP. Pronuncia o seguinte discurso. Com revisão do orador.) - Sr. Presidente, muito obrigado pelas suas sempre generosas palavras.

            Eu quero agradecer ao Senador Garibaldi Alves a precedência que ele me dá e dizer que é um prazer também falar depois que ele ocupou a tribuna. É um grande amigo meu, de muito tempo. Amigo também do seu pai, amizade essa que transbordou pela família inteira, de tal maneira que eu me sinto ligado à Família Alves, no Rio Grande do Norte, por laços muito profundos e muito antigos.

            Quero agradecer também ao Senador João Pedro, que, nesta Casa, é um homem tão ameno, tão cordato e ao mesmo tempo tão cavalheiro. Também deu-me a honra de poder falar neste momento.

            Sr. Presidente, eu tenho, na realidade, de fazer uma comunicação que, para mim, é inadiável. Não gostaria que terminasse este ano de 2009 sem que eu fizesse um registro nesta Casa fiel aos meus deveres de intelectual. Não posso deixar de registrar que, em 2009, temos um livro de grande importância na Literatura brasileira que completa 150 anos.

            Portanto, é a comemoração de um livro que venho a esta tribuna fazer.

            Eu tive a felicidade, que me foi dada por Deus, de ao nascer, receber um amigo, um amigo que nunca me abandonou a vida inteira: o livro. Nos momentos mais difíceis da minha vida, foi dele que me socorri. Ele nunca me abandonou por maiores que fossem as minhas amarguras. Cada um de nós as tem durante a vida, e minha vida já é bastante longa. O livro sempre esteve ao meu lado para ocupar esses momentos e, muitas vezes, fazer-me esquecer alguns instantes e levar-me por caminhos que vão desde a poesia mais encantadora até às histórias de ficção, às viagens, aos livros de filosofia, às biografias, à história da literatura, livros esses que fazem com que eu possa atravessar esses momentos. Também nos momentos felizes, Sr. Presidente, porque não há maior felicidade do que a gente ter o gosto táctil de pegar um bom livro e com ele rasgar a madrugada, saboreando o gosto da leitura. Eu posso dizer mesmo que, de minha vida, eu não sei o percentual que destinei à leitura, mas, sem dúvida nenhuma, não foi menor do que um quarto da minha vida. Não tenho nenhum hábito de lazer, mas todo o tempo vazio ou aquele tempo que podia ser de ócio tem sido dedicado a este amigo que Deus me deu desde o meu nascimento, que é o livro.

            E o livro que vou homenagear aqui, nesta sessão do Senado de segunda-feira, dia em que normalmente nossos colegas ainda não chegaram para o trabalho da semana, é um livro que marcou a minha vida. Eu revelei isso pela primeira vez quando tomei posse na Academia Brasileira de Letras. Disse que, na casa do meu avô, que era mestre-escola no interior do Maranhão, há quase oitenta anos, dando vazão à curiosidade que já tinha em razão do hábito de ler que contraí desde cedo, eu já folheava pequenas publicações avulsas de uma enciclopédia popular portuguesa e almanaques que meu avô assinava e mantinha em uma pequena estante.

            Mas o primeiro livro que a minha memória guarda, que eu tenha visto e que me recorde talvez até as cores esmaecidas daquele marrom de sua capa, é As Primaveras, de Casimiro de Abreu.

            É o livro que me recordo como o primeiro livro que eu tenha conhecido. Evidentemente, eu era tão criança que eu não tinha como ler aquele livro, mas fiquei com uma vontade imensa de poder saber o que ali se continha além daquelas coisas que eu me habituara a ler nos almanaques que chegavam ao interior pobre, ao interior daquele tempo em que eu nasci, da casa do meu velho avô, como eu já disse, mestre-escola do interior.

            Na Academia eu fiz referência a esse primeiro livro que eu tive entre as mãos. Pois esse livro completa este ano 150 anos, Sr. Presidente. É um livro que não morreu, que tem mais de cem edições e ainda vai ter muito mais do que cem edições.

            Seu autor foi um intelectual, um poeta que, na história da literatura brasileira, surgiu como um sol que imediatamente se apagou: morreu aos 21 anos de idade, um ano depois da publicação do seu livro. Ele era uma grande esperança, saudado por todos os críticos daquele tempo como um grande nome que surgia na literatura brasileira: Casimiro de Abreu, que nasceu no dia 20 de agosto de 1839, Sr. Presidente, e morreu no dia 18 de outubro de 1860, um ano depois da publicação do seu livro.

            A sua vida, desde moço, como a vida daqueles homens da geração daquele século, era muito ligada à natureza. O Brasil era um Brasil rural e cada homem, sem dúvida alguma, tinha vinculações no setor rural e tinha como sentimento máximo o encantamento pela natureza. Essas eram as mais definitivas recordações da infância de cada um. E Casimiro de Abreu foi, sem dúvida alguma, o homem que fixou eternamente na literatura brasileira essa expressão da infância, até mesmo porque ele viveu o exílio, viveu algo que lhe fazia, permanentemente, ser um exilado de sua própria infância.

            Era filho de José Joaquim Marques de Abreu, um português da Vila de Famalicão, em Portugal, que tinha vindo para o País. De certo modo, os biógrafos procuram esconder que o pai de Casimiro de Abreu era um homem ligado ao tráfico de escravos. Vivia no município de Macaé e tinha um porto, onde era tido como homem que fazia o tráfico de escravos. Português que tinha o sentimento do negócio e da inteligência, ao sentir que chegava o fim do seu negócio, que iria surgir logo no ano de 1850 com a Lei Euzébio de Queiroz, que extinguia o tráfico, ele se deslocou do Brasil com toda a família e levou seu filho, que havia estudado em Friburgo depois de sair do município de Macaé.

            Casimiro de Abreu, vai, portanto, para Portugal. Em Portugal, ele faz sua estreia literária; moço, menino quase, um jovem, ele começa a publicar as suas primeiras obras literárias aí em Portugal. Essas obras foram publicadas nos jornais daquele tempo, como O Panorama e a Ilustração Luso-Brasileira. Ele publicou os seus primeiros poemas, e todos eles eram poemas voltados para uma saudade que ele sentia permanentemente de sua terra natal, que era o Brasil, saudade do Brasil, saudade de sua infância. 

            É isso que marca profundamente, desde o início, as suas poesias.

            Mas a primeira obra que publica, já em Portugal, é uma peça teatral, peça que se chamava Camões e Jaú. O nome Jaú é o nome do personagem, um escravo que ele criava na peça Camões e Jaú. Pois bem, essa peça foi encenada em Lisboa, no Teatro de D. Fernando, e, mais tarde no Real Teatro de São João, no Porto.

            Ainda em Portugal, já pensando em escrever esse livro, o seu primeiro livro de poemas, ele acerta com a tipografia a segunda edição de um livro que ainda não tinha sido publicado, mas que ele preparava - e começava a dar, já aí, o nome do livro de “Primaveras”. Depois, por uma dessas coisas que ninguém sabe, a edição que saiu, de Paula Brito, primeira edição do livro, que data de 20 de agosto de 59, ele botou “As Primaveras”, quando, na realidade, não se usava colocar artigos antes do título principal, principalmente em livros de poesia. Mas ficou “As Primaveras”, ainda que sempre a gente encontre, em todas as cartas que ele deixou, nos depoimentos de amigos seus e nas críticas feitas, o nome do livro como “Primaveras”. Ficou sendo “As Primaveras”, porque foi assim que ele foi editado pela primeira vez.

            Voltara ao Brasil em 1857, ficando numa das roças do pai. Mas os pais, separados, afastam seu sonho de viver em família, e torna-se caixeiro no Rio de Janeiro. Uma vida cheia de restrições e sacrifícios.

            Tem aí o apoio de Francisco Otaviano, editor do Correio Mercantil, um dos grandes e influentes jornais da corte, que publica um de seus poemas, O Juramento, com uma elogiosa nota de redação.

            Francisco Otaviano era um jornalista e um grande nome literário daquele tempo, em torno de quem se reuniam nomes como Machado de Assis e Manoel Antônio de Almeida. Concentra no Correio Mercantil um grande número de publicações de poemas, mas também publicava no A Marmota, no Diário do Rio de Janeiro, e até em jornais do interior do Estado. 

            É no Correio Mercantil que sai o primeiro anúncio convocando as pessoas a subscreverem um livro que ia ser publicado, do Sr. Casimiro de Abreu, chamado Primaveras - não tinha As Primaveras -- na casa do editor Paula Brito, outro benfeitor dos jovens literatos. Para sair o livro, ele teve de fazer uma subscrição pública, que abriu nos jornais...

            Nessa época tenta deixar o emprego de caixeiro, mas volta, obrigado pelo pai. Caindo de cama com varíola, acaba decidinto pedir ao pai que o ajude na publicação do livro. E o pai... E ele não era filho, vamos dizer... Eu aqui, nesta Casa, apresentei um projeto que hoje está vigorando, que extinguiu o problema dos chamados ‘filhos bastardos”, “filhos adulterinos”. Isso acabou. Filho é filho. Esse projeto foi de minha autoria aqui dentro do Congresso. Por isso, eu me recuso até a dizer que ele era um filho que não era registrado entre o pai e a mãe, até por que o seu pai não era casado com a sua mãe e dela se separou quando foi para Portugal.

            Mas fez uma coisa que o próprio Casimiro de Abreu não sabia. Fez uma escritura pública reconhecendo-o como seu filho - ele e mais irmãos que ele tinha, duas irmãs e mais um irmão. Ele o reconheceu.

            E não recebendo resposta do pai sobre se o ajudava ou não na publicação do livro, o que ele faz? Ele faz um poema revoltado com o seu pai e leva para ser publicado. Francisco Otaviano lê esse poema e recusa a publicação dele. E, depois, quando ele sabe que tinha sido reconhecido pelo pai, como filho -- e naquele tempo esse era um anátema que caía nas pessoas --, ele, então, teve oportunidade de querer desfazer o poema que tinha escrito e que podia parecer... Não cita o nome do pai, mas era um poema de mágoa. Ele, então, começa a escrever o poema no qual pede perdão ao pai. Infelizmente, morre em seguida e não tem tempo de terminá-lo. Apenas foram encontrados os rascunhos do poema que tinha deixado.

            Mas o livro sai e imediatamente ele é citado, a crítica inteira, o Brasil inteiro, os jornais, como um grande poeta que se revelava, de tal maneira que até hoje, acredito, que aqui, no Senado, se perguntarmos a qualquer Senador de certa idade, não há um que não se lembre do poema Meus oito anos, de Casimiro de Abreu:

            Oh! Que saudades que tenho

            Da aurora da minha vida,

            Da minha infância querida

            Que os anos não trazem mais!

            Que amor, que sonhos, que flores,

            Naquelas tardes fagueiras

            À sombra das bananeiras,

            Debaixo dos laranjais!

            Quem não se lembra daqueles versos que ele dizia:

            -- Pés descalços, braços nus --

            Correndo pelas campinas

            À roda das cachoeiras,

            Atrás das asas ligeiras

            Das borboletas azuis!”

            Recordo-me que eu já começava a ter pendores pela literatura... E no interior daquele tempo de crianças -- faziam-se saraus literários, era a única coisa que tinha dentro de casa. Minha mãe me pedia sempre: -- “Recite o poema de Casimiro de Abreu sobre Deus”. Eu, então, recitava:

             

            “Eu me lembro! eu me lembro! - Era pequeno

            E brincava pela praia; o mar bramia

            E, erguendo o dorso altivo, sacudia

            A branca espuma para o céu sereno.

            E eu disse a minha mãe nesse momento:

            -- “Que dura orquestra! Que furor insano!

            Que pode haver de maior do que o oceano

            Ou que seja mais forte do que o vento?!” --

            Então, a platéia olhava e eu terminava:

            “Minha mãe a sorrir olhou pr’os céus

            E respondeu: - “Um Ser que nós não vemos,

            É maior do que o mar que nós tememos,

            Mais forte que o tufão! meu filho, é - Deus!” - 

            E aí fazia um sucesso muito grande, mas era um dos poemas de Casimiro.

            Pois bem, é esse homem que escreveu “A Valsa” e, ao lermos esse poema, parece que estamos ouvindo a música da própria valsa. Eram pequenos versos que tinham sons e que, naturalmente, o consagraram. São grandes poemas que fizeram desse livro um livro solar e fundamental da literatura brasileira.

            É por isso que hoje, completando 150 anos, eu uso a tribuna da Casa. Naturalmente muitas pessoas poderão dizer: “O Sarney realmente já está ficando muito velho, arcaico, falando em poesia do Casimiro de Abreu, numa segunda-feira, no fim da tarde, no Senado Federal”. Mas estou falando de um grande poeta. De tal modo que, no Rio de Janeiro, se se perguntar quem é o maior escritor do Rio de janeiro, certamente o povo da cidade do Rio de Janeiro vai dizer: “Machado de Assis”. Mas se perguntarem no Estado do Rio de Janeiro quem foi o maior escritor do Estado do Rio de Janeiro como um todo, e que ficou na memória de todos e na memória do Brasil e passa de geração em geração, todos repetirão que foi Casimiro de Abreu.

            Pois é a sua memória, é a memória do seu livro que estou justamente recordando neste momento.

            Os livros, como eu disse, também morrem. Muitos livros morreram. Quantos livros morreram como os autores? Mas poucos sobrevivem. Por exemplo, podemos citar os livros que sobrevivem e os que estão mortos. Dom Quixote, por exemplo. Cervantes escreveu muitas obras. Mas qual livro de Cervantes ficou vivo? O Dom Quixote. Qual é o livro de Machado que se repete de saída? Dom Casmurro. Quem vai citar Gonçalves Dias, falará em quê?

            “Enfim te vejo! - enfim posso!

            Curvado a teus pés, dizer-te,

            Que não cessei de querer-te,

            Pesar de quanto sofri.”

            E aquele outro verso: se se morre de amor...

            “Se se morre de amor! -- Não, não se morre,

            Quando é fascinação que nos surpreende

            De ruidoso sarau entre os festejos;

            Quando luzes, calor, orquestra e flores (...)”

            Obrigado, pois minha memória ainda me socorre, quando eu ia vacilar.

            Pois bem, era esse o comunicado que eu queria fazer. Era inadiável? Era acho que era inadiável. Eu fiquei com medo de o ano acabar.

            Eu também tive problemas de saúde que me afastaram da tribuna. A partir de amanhã teremos muitas matérias para serem votadas, e eu fiquei com medo de que a Casa não reservasse um espaço para a poesia. Quanto à poesia, quando fui nas Nações Unidas fazer o meu primeiro discurso como Presidente da República, eu disse: -- “Acho que a poesia não pode ser afastada dos grandes cenários e dos grandes discursos de qualquer homem público.”

            Da mesma maneira, acho que o Senado não pode esquecer nunca, em qualquer momento que seja, a poesia. Um pingo de poesia é sempre bom para todos nós.

            Muito obrigado.


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Este texto não substitui o publicado no DSF de 15/12/2009 - Página 67298