Discurso durante a 166ª Sessão Não Deliberativa, no Senado Federal

Considerações acerca de projeto de lei que propõe a privatização das penitenciárias brasileiras.

Autor
Roberto Requião (PMDB - Movimento Democrático Brasileiro/PR)
Nome completo: Roberto Requião de Mello e Silva
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
SEGURANÇA PUBLICA.:
  • Considerações acerca de projeto de lei que propõe a privatização das penitenciárias brasileiras.
Publicação
Publicação no DSF de 11/09/2012 - Página 47200
Assunto
Outros > SEGURANÇA PUBLICA.
Indexação
  • CRITICA, PROJETO DE LEI, PROPOSIÇÃO, PRIVATIZAÇÃO, SISTEMA PENITENCIARIO, PAIS, DEFESA, REFORMULAÇÃO, ALTERAÇÃO, ESTRUTURAÇÃO, ORGANIZAÇÃO, ESTABELECIMENTO PENAL, DISCORDANCIA, PROJETO, TRAMITAÇÃO, CONGRESSO NACIONAL, FRANQUEADO, AGENTE PENITENCIARIO, PORTE DE ARMA.

            O SR. ROBERTO REQUIÃO (Bloco/PMDB - PR. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Impressionou-me um pronunciamento do Senador Cristovam sobre as terríveis condições de uma entidade de Brasília que abriga menores infratores, uma instituição de abrigo de menores infratores. Isso me inspirou a trazer a este Plenário algumas considerações sobre um projeto que tramita no Senado e que propõe a privatização de nossas penitenciárias. Tramita, Senador Mozarildo, nas comissões desta Casa, um projeto de lei do Senador Vicentinho Alves, que já conta com o parecer favorável do Senador Lobão Filho, abrindo também as prisões para a privatização através da tal Parceria Público-Privada.

            O nosso estimado colega do Tocantins diz que não se trata de privatização e, sim, de terceirização. Com todo o respeito ao Senador Vicentinho, que não se encontra no plenário nesta tarde, eu diria que privatização, segundo o dicionário de eufemismos petista-tucano, também recebe carinhosos apelidos, como concessão, terceirização, cogestão e coisas que tais.

            Com respeito renovado ao autor e ao Senador Relator, vou fazer algumas observações com o fito de contribuir para o debate do assunto. Começo pela minha experiência como Governador do Paraná.

            Quando voltei ao Palácio Iguaçu, em 2003, encontrei quase tudo privatizado, até mesmo alguns presídios. Presídios sui generis, que exigiam quase um vestibular para admitir o preso. Era uma espécie de Circuito Elizabeth Arden para presos extremamente prestigiados pela estrutura. Só entravam lá condenados que pudessem frequentar a lista de candidatos ao céu, ao panteão dos santos, e a remuneração que esses presos recebiam era uma lição exemplar da ideia da mais-valia. É claro, o modelo não deu certo, e o Estado, na minha administração, retomou esses prejuízos, esses presídios. Prejuízo era para os presos e para o sistema.

            Em artigo publicado na Folha de S.Paulo, em maio deste ano, um dos paladinos do capitalismo, o heroico prêmio Nobel de Economia Paul Krugman deixa de lado a crise financeira internacional, seu prato predileto de todos os dias, para falar da privatização do sistema penitenciário de Nova Jersey. Krugman disse que foi motivado a comentar o assunto por uma série de reportagens aterrorizantes, publicadas no New York Times, sobre os presídios privatizados naquele Estado norte-americano.

            Por que presídios norte-americanos foram privatizados ou, como queiram, terceirizados? “Pela razão de sempre”, responde Krugman. Porque diziam que a privatização resultaria em grande economia de custos para os cofres públicos; porque a iniciativa privada é mais eficiente que o Estado. Enfim, aquele decálogo todo de demonização do serviço público e de tudo que é administrado pelo Estado.

            Decorrido certo tempo das privatizações dos presídios, o Ministério de Justiça dos Estados Unidos foi a campo, para ver como iam as coisas. Primeira constatação: a tal economia de custos não se concretizou. Era pura balela.

              Krugman cita o relatório do Ministério:

Os operadores privados de penitenciárias só conseguem economizar dinheiro por meio de redução nos quadros de funcionários, nos benefícios conferidos aos trabalhadores e em outros custos trabalhistas.

            E na brutal queda de qualidade, por exemplo, da alimentação dos presos. Pior e mais barata.

            Resultado: em breve tempo, as penitenciárias privadas passaram a conviver com uma realidade aviltante, donde se aduz que a recuperação dos presos pelo trabalho, um outro pilar a sustentar a tese da privatização, desmoronou, de tão oco que era, como era falsa a proposição da economia de custos.

            Krugman, prêmio Nobel de Economia, vai além. Ele diz que os horrores descritos nas reportagens do New York Times sobre o sistema penitenciário privado de Nova Jersey na verdade são parte de um padrão mais amplo de degradação de funções de governo que foram privatizadas. Duras palavras, incômodas verdades, ditas por um paladino do capitalismo.

            Afinal, qual é lógica interna do sistema capitalista, o que o move, fundamentalmente? O lucro. Esse, o sal da terra para qualquer empresa privada.

            A benemerência, o altruísmo, os sentimentos caridosos, os impulsos de bondade e de solidariedade não combinam propriamente, Senador Mozarildo, com a busca do lucro. Os chás de caridade, os tais programas de assistência social que viraram moda entre atores globais e jogadores de futebol talvez, sim, tenham esse fundo de solidariedade. Então, como entregar à iniciativa privada funções que, pela sua natureza, são do Estado, são funções estatais? O Estado não pode renunciar às suas obrigações de proteger os cidadãos, notadamente o cidadão em situação de fragilidade, de desamparo, de risco. E que desarrimo maior pode existir do que uma prisão?

            É meritória, é elogiável a preocupação do Senador Vicentinho Alves com a recuperação, com a ressocialização dos presos, para o que o trabalho, sem sombra de dúvida, pode contribuir. Mas por que passar essa tarefa à exploração de empresas privadas? E, perdoem-me, mas o substantivo adequado aqui é esse mesmo, é no sentido de tirar proveito, de utilizar-se da mão de obra dos presos.

            Para isso, mais uma vez, tomo como referência o Paraná. O que as empresas privadas pagavam aos seus presos trabalhadores era rigorosa e absolutamente irrisório, um verdadeiro vexame. Talvez alguém possa alegar que os três quartos do salário mínimo estipulados pelo projeto aos presos trabalhadores, para uma jornada de 44 horas semanais, sejam razoáveis, já que esses operários especiais não gastam em alimentação, moradia, vestuário, transporte e lazer. Não é por aí. Quem está preso já cumpre pena, e nada justifica castigá-lo com uma remuneração inferior ao salário mínimo.

            Mais ainda: segundo a proposta, os presos dessas unidades privadas que se recusassem a trabalhar seriam transferidos para estabelecimentos operados diretamente pela Administração Pública, o que soa como uma ameaça, já que, subentende-se, as prisões públicas são um horror. As prisões públicas seriam, então, uma punição adicional para quem não aceitasse ganhar três quartos de salário mínimo por 44 horas semanais.

            Os concessionários dessas prisões privadas seriam remunerados tanto pelo lucro resultante da exploração do trabalho dos presos como pela concessão em si, a que seria atribuído um pagamento fixo pelo Poder Público.

            O projeto abre ainda a possibilidade de o concessionário construir prisões. É o famoso PPP.

            Isso me faz lembrar um famoso concessionário de prisões na Colômbia, onde o modelo também foi adotado. Ele construiu uma das prisões de Bogotá, a capital, dotando-a de uma ala especialíssima, muito luxuosa. Anos depois, quando ele foi preso, foi nessa ala que se instalou. Afinal, ele era o dono da penitenciária. O nome desse concessionário é muito conhecido de todos que leem jornais e veem televisão. Chamava-se essa figura Pablo Escobar, o rei do contrabando, da maconha, da cocaína e dos assassinatos em massa no comércio de drogas no mundo.

            Se a moda pega, alguns ilustríssimos personagens da vida nacional hoje presos e outros que possam ser condenados, além de hóspedes notórios de prisões federais, como o mui afamado Beira-Mar, poderiam candidatar-se a concessionários de penitenciárias e construir as próprias instalações onde devem cumprir pena. Na verdade, um luxo.

            Caros Senadores Vicentinho Alves e Lobão Filho, eu também me preocupo com a realidade do sistema penitenciário nacional, precário, desumano, medieval. O nosso sistema não educa, não recupera, não socializa, não ressocializa. Portanto, partilho da preocupação do Senador autor e do Senador relator quanto à necessidade de recuperação dos apenados, mas discordo radicalmente da privatização. Não é solução. Primeiro, discordo da privatização porque, mais uma vez, em vez de pressionar o Estado para que assuma plenamente suas funções, vamos, isto sim, desonerá-lo de mais essa responsabilidade.

            É sempre a mesma coisa: o Estado falha e a gente corre a dispensá-lo, dando argumentos àqueles que querem privatizar o Estado e pô-lo a serviço de seus lucros e de suas ambições.

            Quando o Estado falha, não se busca a origem do erro, do desvio; não se discutem soluções; não se discutem as razões do desequilíbrio. Não, isso não. Condena-se in limine, como se fosse a fonte de todos os males.

            De mil discursos que ouço desancando o Estado e os seus serviços, não ouço uma frase sequer em defesa de sua reforma, de sua transformação, da alteração de suas estruturas, da mudança completa de sua organização, do redirecionamento de suas prioridades. E a sua subordinação aos interesses populares e nacionais.

            Pelo que vejo, é mais fácil desclassificar, depreciar e desacreditar o Estado que enfrentar o debate de sua reforma e transformação. Esses responsos tediosos, monocórdios sobre a diminuição do Estado, são lenga-lengas para desavisados dormirem.

            Solidarizo-me com as preocupações dos Senadores Vicentinho e Lobão em relação à recuperação dos condenados. Mas por que privatizar uma penitenciária? Para vê-los trabalhando?

            A impossibilidade, hoje, de se reeducar os presos começa com a superlotação de cadeias e penitenciárias. Com esse amontoado de presos, com as unidades transformadas em depósito de presos, não há como recuperá-los. Dessa forma, não há como recuperá-los.

            Dou um exemplo. Um exemplo definitivo dos exageros, da irracionalidade a que chegou essa compulsão, esse aferro de alguns juízes a condenar e a condenar impiedosamente - a condenar sempre.

            Quando assumi o Governo do Paraná, em 2003, as penitenciárias estaduais estavam superlotadas. Suas exatas 5.529 vagas tomadas. Para aliviar o sistema, dar-lhe dignidade, favorecer a recuperação dos presos, construí 12 novas penitenciárias, elevando as vagas a exatos 14.568 lugares. Quer dizer, praticamente tripliquei as vagas.

            Mais ainda, Senador Mozarildo: dotei as novas unidades de bibliotecas, salas de aula, com professores da rede estadual de ensino ministrando aulas da alfabetização ao ensino médio; oficinas e áreas de trabalho; atendimento à saúde, atendimento odontológico; atendimento jurídico, social e psicológico. Ao mesmo tempo, abri concurso para agente penitenciário, oferecendo o melhor salário do País para a função, a fim de atrair candidatos qualificados. No sistema privado, o salário de um agente penitenciário era muito perto da miséria que ganhava um trabalhador preso.

            Enfim, busquei o que poderia ser classificado de uma penitenciária ideal.

            Breve ilusão.

            A ardência condenatória, a paixão incontrolada de nossos juízes pela condenação de qualquer pobre homem, aliada a um Código Penal que prevê a punição de todo apanhador de galinhas, em curto espaço de tempo, superlotou também as 12 novas penitenciárias que construí e acabou com toda veleidade de recuperar, reeducar, ressocializar os presos. E temos hoje, de novo, nossas penitenciárias no Paraná superlotadas.

            No caso do Paraná, o Estado não falhou. Fez o que era seu dever.

            Quer dizer, é preciso, antes da saída pela privatização, dessa tolice, pensar, debater e executar uma profunda reforma em nosso sistema penal e judiciário.

            Não há como manter essa inclinação à condenação que pune com a prisão quem pratica qualquer pequeno delito.

            De que estão superlotadas as nossas cadeias? De criminosos de colarinho branco? De corruptos e corruptores? De especuladores e banqueiros fraudadores? De assassinos famosos, no entanto, ditos "primários", beneficiados pela tal "Lei Fleury"?

            Não, para essa gente a cadeia não foi feita, que eles são de outra espécie, esses finos senhores. São, sem dúvida, de outra espécie.

            A cadeia ainda é para pobres, pretos e prostitutas. E quem se interessa na recuperação dessa gente?

            Por fim, Srªs e Srs. Senadores, manifesto também minha discordância em relação a projetos que tramitam no Congresso franqueando aos agentes penitenciários o porte de armas.

            E radicalizo minha oposição quando vejo a mesma permissão extensível aos auditores da Receita Federal, auditores fiscais, técnicos da Receita Federal, auditores do Trabalho, aos funcionários da perícia médica da Previdência Social, aos auditores tributários dos Estados e do Distrito Federal, aos oficiais de Justiça, aos avaliadores do Poder Judiciário da União e dos Estados, aos defensores públicos e não sei mais a quem, a mesma insensata, tola e descabida permissão de portar armas.

            É uma festa! A lista é tão grande que penso sugerir outras categorias, como motoristas de táxi e ônibus, porteiros de prédios públicos ou particulares, padres, bispos e pastores, juízes e bandeirinhas de futebol.

            É um festival de clara e insofismável irresponsabilidade. É o espírito do "capitão do mato", do inspetor de quarteirão, das milícias, revivido em uma coleção de projetos que circula nesta Casa e na Câmara dos Deputados.

            Durante os meus dois últimos mandatos como governador, enfrentei a pressão constante dos agentes penitenciários que queriam circular armados fora da ambiente de trabalho.

            Pois bem, naqueles oito anos, houve um único assassinato de agente penitenciário no Paraná. E ele foi morto em uma briga de bar, e estava armado. Se desarmado, certamente não seria assassinado, já que quem nele atirou o fez para reagir aos tiros dados pelo agente.

            Como aconselhava meu velho e bom professor de Direito Constitucional: modus in rebus, moderação nas coisas. O exemplo dos Estados Unidos e a vulgarização das armas de fogo é uma boa advertência.

            E veja bem, Senador Mozarildo: eu me manifesto aqui de forma radical contra o porte de arma, mas sempre me coloquei a favor da posse de arma na residência de um brasileiro que quer proteger a sua família, que habita as periferias, que habita o interior, que habita as regiões extremamente perigosas. A ele, sim, o direito da posse da arma. Agora, o porte, a arma na cinta, como se a nossa sociedade fosse um far west, com pessoas absoluta e rigorosamente despreparadas, que não passam nem por um psicoteste, porque, afinal, têm o porte em virtude da prerrogativa dada a sua profissão, é uma tolice tão grande quanto a privatização das penitenciárias e outras tantas privatizações que aparecem no horizonte da política brasileira.

            Muito obrigado, Senador Mozarildo, pela tolerância do tempo. Afinal, nós somos poucos os donos das segundas e sextas-feiras.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 11/09/2012 - Página 47200