Pronunciamento de Lídice da Mata em 15/04/2014
Discurso durante a 53ª Sessão Especial, no Senado Federal
Destinada a celebrar o lançamento da Campanha da Fraternidade de 2014, cujo tema é "Fraternidade e Tráfico Humano", nos termos do Requerimento nº 187/2014, de autoria do Senador Paulo Davim e outros Senadores.
- Autor
- Lídice da Mata (PSB - Partido Socialista Brasileiro/BA)
- Nome completo: Lídice da Mata e Souza
- Casa
- Senado Federal
- Tipo
- Discurso
- Resumo por assunto
-
DIREITOS HUMANOS, RELIGIÃO.:
- Destinada a celebrar o lançamento da Campanha da Fraternidade de 2014, cujo tema é "Fraternidade e Tráfico Humano", nos termos do Requerimento nº 187/2014, de autoria do Senador Paulo Davim e outros Senadores.
- Publicação
- Publicação no DSF de 16/04/2014 - Página 27
- Assunto
- Outros > DIREITOS HUMANOS, RELIGIÃO.
- Indexação
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- COMEMORAÇÃO, LANÇAMENTO, CAMPANHA DA FRATERNIDADE, PROGRAMA, IGREJA CATOLICA, ASSUNTO, TRAFICO, PESSOAS.
A SRª LÍDICE DA MATA (Bloco Apoio Governo/PSB - BA. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão da oradora.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores e convidados, quero saudar o Senador Paulo Davim, que, além de presidir esta sessão, por ter sido o seu autor, foi também membro da CPI do Tráfico de Pessoas aqui do Senado; saudar o Secretário-Geral da CNBB, Bispo Auxiliar de Brasília, o Revmo Sr. Dom Frei Leonardo Steiner, o Secretário-Executivo da Campanha da Fraternidade, o Revmo Sr. Padre Luiz Carlos Dias e todos os convidados e representantes da Igreja Católica ou não aqui presentes; saudar os Senadores que me antecederam e que colocaram de forma brilhante a sua reflexão a respeito do tema da Campanha da Fraternidade. Quero dizer que eu comecei a participar da Campanha da Fraternidade quando me elegi pela primeira vez Vereadora de Salvador, em 1982, e todos os anos, em nossa sessão da Câmara, nós fazíamos a Sessão da Campanha da Fraternidade, geralmente por solicitação do Vereador Fernando Schmidt. Ele, além de ser um grande amigo, era um representante, um interlocutor da Igreja Católica, na nossa Câmara e na sociedade baiana, e por quem até hoje tenho grande amizade e com quem tive a oportunidade de conviver muito e com quem ainda convivo muito.
Estive recentemente, inclusive, Sr. Presidente, com Dom Murilo Krieger, Arcebispo Primaz do Brasil na Bahia, a quem entreguei o relatório da nossa CPI e o projeto de lei que essa CPI gerou e que estava aqui no Senado, na época em que estive com Dom Murilo, ainda na CCJ, na Comissão de Constituição e Justiça, há quase um ano, à espera de que o colocassem em pauta. E, quando vi que a Campanha da Fraternidade, que surgiu ainda na década de 60, que já tem mais de 50 temas realizados e que representa um grande esforço da Igreja Católica de sensibilizar em um determinado período, entrando na Páscoa, toda a sociedade cristã, para refletir sobre um determinado tema que, em geral, diz respeito a questões da sociedade brasileira, e a importância que, ao longo desses anos, teve a Campanha da Fraternidade na sensibilização de temas para o Brasil. A Campanha da Fraternidade já discutiu o tema da juventude, das mulheres, das prisões, da fome, da água. Dezenas de temas foram abordados e que têm uma relação profunda com a vida do povo brasileiro.
Portanto, eu fiquei positivamente muito surpreendida e mobilizada quando vi o tema da Campanha da Fraternidade deste ano, até porque fui, como aqui já foi ressaltado, a Relatora da CPI do Tráfico de Pessoas. Nós estivemos no Brasil inteiro debatendo esse tema, de Norte a Sul. O nosso Presidente participou, e tenho certeza de que isso também foi uma das razões que o mobilizou para a realização desta sessão. Estivemos no seu Estado mais de uma vez, no meu Estado da Bahia, por três vezes.
Eu vou aproveitar para citar, para que os senhores tenham conhecimento, os dois casos com que o Estado da Bahia esteve envolvido. Um, o caso de uma moça que trabalhava numa barraca de praia em Salvador, que foi instada, ou levada por uma turista portuguesa a fazer amizade. Ela estava grávida, tinha uma menina pequena, de dois ou três anos. Através dessa amizade, ela recebeu um convite para ir visitá-la em Portugal e lá ela seria ajudada para ter um emprego, poderia melhorar as suas condições de vida e criar as suas filhas. A moça foi embora, e ela permaneceu, já estava no sexto mês de gravidez. Quando ela teve o neném, a moça retornou e voltou a procurá-la, a reafirmar a sua colaboração com aquele momento por que ela passava e a convenceu de morar em sua casa em Lisboa. Ela foi com suas duas filhas, ficou um tempo lá. Depois, essa senhora a convenceu de que ela deveria voltar ao Brasil para pegar um visto para trabalhar, e ela assim o fez. Recebeu a passagem para vir pegar o visto, mas não recebeu a passagem para voltar. Desde então, iniciou a sua luta para voltar a Portugal e reaver as suas filhas.
Antes de sair de lá, ela deixou uma autorização para aquela senhora dizendo que, enquanto as suas filhas estivessem lá, ela seria responsável por aquelas meninas. Esse documento, usado por essa senhora, se tornou fundamental para garantir, na Justiça portuguesa, a guarda das crianças. Essas duas crianças permanecem até hoje ilegais naquele país, sem nenhuma documentação, sem nenhuma certidão, tendo apenas esse documento como registro.
Essa senhora já ganhou em quase todas as instâncias da Corte portuguesa o direito de guarda dessas crianças, que já nem reconhecem mais sua mãe como mãe, embora essa senhora brasileira, baiana, tenha denunciado o caso na CPI e em outros fóruns de direitos humanos.
Nós, através da CPI, estivemos no Itamaraty, que designou um acompanhamento jurídico para ela em Portugal, e, a partir daí, ela tem ido. Mais de uma vez, ela já foi, com o auxílio do governo municipal de Camaçari, onde reside, da mobilização política e da sociedade, para acompanhar o caso de suas filhas ainda sem solução e sem obter a guarda de volta.
É claro que a portuguesa a acusa de ter-lhe dado a criança. A lei brasileira, no entanto, resguarda a uma mãe ou a uma família que entregue seu filho para adoção o direito de se arrepender e de buscá-lo de volta. Mesmo que aceitássemos tal argumento, esse não é o histórico nem o argumento usado pela mãe dessas crianças e pelas testemunhas familiares.
Outro caso que ficou conhecido nacionalmente foi o das crianças de Monte Santo denunciado à nossa CPI. Pela grande repercussão na imprensa nacional, conseguiu-se reverter o quadro, embora nós tenhamos identificado ali, claramente, uma rota de tráfico de crianças para fins de adoção ilegal, com saída do interior do Estado da Bahia para o interior de São Paulo, em uma permanente movimentação de crianças para adoção ilegal.
Não foi esse apenas o caso de crianças que nós investigamos. No Rio Grande do Norte, o Senador nos levou para a conhecimento o desaparecimento de cinco crianças que até hoje não foram encontradas.
Em Manaus, no Pará e também na Bahia nós investigamos o caso de meninas jovens, adolescentes, vítimas de tráfico para fins de exploração sexual. Esta é uma rota típica do nosso País: meninas, adolescentes, do Norte e do Nordeste brasileiro para o Sudeste, para fins de exploração sexual.
O Brasil também está na rota do tráfico internacional de mulheres, de homens, de homossexuais, para fins de exploração sexual em países europeus. E também agora nós começamos a fazer parte - nós antes éramos “exportadores”, entre aspas, de pessoas para a exploração de diversos tipos, tanto para a exploração sexual quanto para o trabalho escravo -, mas, agora, com o desenvolvimento econômico e social que o Brasil adquiriu, nós passamos também a receber trabalhadores traficados de outros países.
Este foi o caso dos trabalhadores que nós recebemos na CPI, vindos da Bolívia, traficados para serem explorados no interior de São Paulo por grandes marcas de confecções internacionais que vendem em nosso País e no mundo inteiro, trabalhando 14, 15 horas, morando em um cubículo com uma quantidade de pessoas impensável para aquele espaço tão pequeno e recebendo uma alimentação por dia. Para uma peça de roupa que nós compramos por R$200,00 ou mais nas lojas do nosso País, eles recebem R$1,00; R$1,90 para cada peça de roupa produzida.
Creio - e queria ressaltar para a CNBB - que a primeira vitória e a primeira conquista da Campanha da Fraternidade a CNBB já realizou no Senado Federal. Eu já havia falado - porque me afastei, por dois períodos, por problemas de saúde e, num desses períodos desse intervalo, imediatamente, quando saiu a Campanha da Fraternidade - com o Presidente da Casa, o Senador Renan Calheiros, no sentido de que colocássemos em pauta esse projeto que saiu da nossa CPI e que seria e foi o primeiro projeto a tratar de readequar a lei brasileira, tipificando de outra maneira o tráfico de pessoas. Antes, no Código Penal, apenas era considerado tráfico de pessoas o de mulheres, para fim de exploração sexual, e de crianças, para fim de adoção ilegal. Agora, com o novo projeto de lei, a definição do tráfico de pessoas é:
Prática de agenciar, aliciar, recrutar, transportar, transferir, alojar ou acolher pessoa, mediante grave ameaça, violência, coação, fraude ou abuso, com a finalidade de explorar alguém para: remoção de órgãos tecidos ou partes do corpo; trabalho em condições análogas às de escravo; servidão por dívida; casamento servil; adoção ilegal; exploração sexual; qualquer forma que acarrete ofensa relevante à dignidade da pessoa ou a sua integridade física.
Esse este projeto foi votado pelo Senado agora, no final do mês passado, se não me engano, no dia 26, e foi para a Câmara. Isso pode fazer com que, agora, possamos nos mobilizar todos, para que a Câmara aprove o mais rápido possível este projeto, que não apenas tipifica o tráfico de pessoas, mas também possui medidas no sentido da prevenção ao crime e, principalmente, da proteção às vítimas.
Buscamos o apoio para elaborarmos o projeto na legislação internacional, na experiência internacional. A CPI esteve por dez dias nos Estados Unidos, entrando em contato com Organizações não Governamentais, com departamentos de Estado, conhecendo além da legislação, a prática. E pudemos presenciar uma atuação forte da sociedade daquele país e do Estado americano, no sentido de coibir o tráfico de pessoas, de proteger as vítimas e de efetuar uma política de prevenção. E não é possível que, no nosso País, nós não possamos fazer a mesma coisa. O Ministério da Justiça tem ressaltado, sempre que anuncia os casos de tráfico de pessoas identificados, a subnotificação total desse crime no Brasil.
Portanto, eu quero saudar e parabenizar a CNBB e a Igreja Católica por esta importante decisão de adotar, neste ano, o crime de tráfico de pessoas. Entidades de organizações não governamentais vinculadas aos movimentos de mulheres têm feito isso, com destaque, no Brasil. Quero saudar a ONG Chame, que atua na Bahia, há 20 anos, em bairros populares, prevenindo em relação ao tráfico de pessoas, especialmente de mulheres.
Chamo a atenção para a ação do Papa Francisco, que, além de condenar o tráfico de seres humanos, classificando a prática como crime contra a humanidade, durante a Conferência Internacional sobre o Tráfico de Pessoas Humanas, evento promovido pelo Episcopado da Inglaterra e de Gales, pronunciou-se de forma muito enfática sobre isso, convocando os cristãos, os católicos do mundo inteiro nessa direção. Isso, mais uma vez, faz com que o Papa Francisco se coloque à frente, tratando de um crime sobre o qual a própria sociedade ainda não se dá conta completamente.
No Brasil, esse crime se tornou mais conhecido através de uma novela da Rede Globo, que tratou de forma específica essa questão, e também do apoio das organizações não governamentais da luta das mulheres que atuam em nosso País.
Portanto, para o Papa, a luta contra o tráfico humano depende do empenho das forças policiais e dos operadores humanitários, em particular, da Igreja Católica, que podem e devem marchar juntos.
O Papa destacou que, na Conferência, reuniram-se autoridades policiais, que combatem o tráfico humano usando os instrumentos e os rigores da lei, e agentes humanitários, que oferecem acolhimento, calor humano e o resgate das vítimas. Da conferência participaram 120 pessoas de 20 países, entre agentes comunitários e eclesiásticos, agentes policiais e vítimas do tráfico de pessoas.
Portanto, esse foi um passo fundamental dado pela Igreja Católica no mundo para assumir, numa posição de vanguarda, a discussão desse crime e o seu combate no mundo inteiro.
E eu quero, finalmente, além de parabenizar a ONG Chame, que se especializou em estudar e atuar nessa questão, que é dirigida por uma mulher, a Jaqueline, que foi também uma das consultoras da novela da Rede Globo, para chamar a atenção do tráfico de seres humanos, especialmente de mulheres - 89% do tráfico de pessoas são de mulheres, para fins de exploração sexual. É gritante também a situação das mulheres em nosso País, até porque a caracterização do crime é exatamente a vulnerabilidade do ser humano, a vulnerabilidade financeira, econômica e social. São segmentos que estão vulneráveis socialmente, quase isolados socialmente, que são levados a essa posição.
E quero destacar também, parabenizando-a, a ONG Repórter Brasil, na pessoa do seu coordenador, o jornalista Leonardo Sakamoto, pelo lançamento da pesquisa "Tráfico de Pessoas na Imprensa Brasileira", sobre a cobertura jornalística em casos de tráfico de pessoas, e também do guia "Tráfico de Pessoas em Pauta", um guia que oferece aos profissionais de comunicação referências e informações sobre o enfrentamento ao tráfico de pessoas, com dicas para abordar o assunto, evitando sensacionalismos, estereótipos, preconceitos e mitos.
Finalizo, Sr. Presidente, dizendo que esse crime não pode ser combatido, por sua característica, por sua invisibilidade, por todo o sistema em que ele é desenvolvido, apenas pelas autoridades policiais. Ele só será vencido se a sociedade compreendê-lo, enxergá-lo e se mobilizar contra ele. E o passo que é dado pela Igreja Católica no Brasil e no mundo é fundamental para que nós possamos superar essa mancha contra a dignidade humana.
Muito obrigada. (Palmas.)