Discurso no Senado Federal

SITUAÇÃO DO PESCADOR CEARENSE APOS SUA INTEGRAÇÃO A COMPANHIA AGRARIA E DE PESCA-CEDAP.

Autor
Lúcio Alcântara (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/CE)
Nome completo: Lúcio Gonçalo de Alcântara
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
PESCA.:
  • SITUAÇÃO DO PESCADOR CEARENSE APOS SUA INTEGRAÇÃO A COMPANHIA AGRARIA E DE PESCA-CEDAP.
Publicação
Publicação no DCN2 de 01/07/1995 - Página 11469
Assunto
Outros > PESCA.
Indexação
  • COMENTARIO, IMPORTANCIA, FUNÇÃO, SETOR PESQUEIRO, ECONOMIA, ESTADO DO CEARA (CE), INTEGRAÇÃO, PESCADOR ARTESANAL, ORGÃO PUBLICO, VINCULAÇÃO, SECRETARIA DE ESTADO, TENTATIVA, PROTEÇÃO, ASSISTENCIA, PESCADOR.
  • ANALISE, PRECARIEDADE, SITUAÇÃO, SETOR PESQUEIRO, ESTADO DO CEARA (CE), RESULTADO, FALTA, POLITICA NACIONAL, INCENTIVO, PROTEÇÃO, PESCADOR ARTESANAL, AMEAÇA, ESPECULAÇÃO IMOBILIARIA, PESCA PROFISSIONAL, INDUSTRIA.

           O SR. LÚCIO ALCÂNTARA (PSDB-CE.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, vinte e nove de junho não passa jamais em nossas memórias como um dia qualquer. Do lado religioso, o dia é dedicado a São Pedro, o primeiro papa-pescador da Igreja Católica, o salvador de almas. Do lado secular, o dia é dedicado ao próprio pescador, o grande provedor de peixes, o salvador de homens.

           Mais do que uma figura que preenche o imaginário nacional como alegoria por vezes romântica e por vezes hiper-realista, o pescador é homem de carne e osso e um trabalhador exímio. Conhecedor dos mistérios e dos perigos do mar e dos rios, estabelece o laço de união entre a terra e a água. Embaixador dos homens junto à nação de Netuno, fixa um fascinante canal de comunicação cuja linguagem é o labor silencioso e o respeito à natureza.

           Para o Brasil, sua presença é marcante, mas, para o Ceará, o pescador tem destaque inestimável. Ao longo de toda nossa costa, não há ponto de areia no horizonte de nossas dunas que não exale o aroma inefável de peixe, e de peixe bom, pescado por homens humildes, decentes, corajosos e heróicos.

           Sr. Presidente,

           Orson Welles, na antológica passagem pelo Ceará nos anos quarenta, ficou espantado com a comunidade pesqueira de Fortaleza. De tão impactante, o espanto, que se refletia num espelho mágico de fascinação e hipnose, se converteu logo em roteiro e cenário cinematográfico.

           Num gesto de muita generosidade e simpatia, o maior cineasta de todos os tempos não hesitou em projetar nas telas do mundo inteiro uma verdadeira epopéia da história político-social da gente simples do País. Tratava-se da épica jornada de quatro pescadores cearenses pela costa atlântica abaixo, num trajeto excepcionalmente extenso que se estendia das águas de Fortaleza até a baía da Guanabara, no Rio de Janeiro.

           Talvez fruto de um rompante romântico, mas não menos politicamente sincero, os quatro pescadores enfrentaram ventos e ventanias, tempestades e borrascas, vendavais e redemoinhos e muito mais para unicamente cumprir compromisso político. Sim, cumprir o compromisso de denunciar ao Governo Federal as injustas condições de vida dos pescadores, bem como as precárias condições de sobrevivência de sua economia.

           Pois bem, Sr. Presidente.

           Meio século nos separa do cinema realista de Welles, e a realidade cearense parece ter projetado novo cenário para o pescador de hoje. Ficção de ontem, realidade de hoje, o homem do mar não está mais só. Ao integrar-se mais efetivamente ao meio social do qual o Poder Público, por definição, é agente de proteção, há suspeitas de que o mar deixou de ser a única companhia das comunidades pesqueiras no Ceará.

           Em princípio, isso poderia automaticamente corresponder a um panorama alentador para o pescador. Infelizmente, não o é tanto assim. Se, de um lado, a integração do pescador lhe garantiu novos direitos perante o Estado, de outro, sua condição ontológica supostamente obsoleta dentro dos padrões racionalistas de trabalho moderno lhe impõe um relógio de vida com duração duvidosa.

           Vamos às duas perspectivas.

           Amparada pela Companhia Estadual de Desenvolvimento Agrário e de Pesca (CEDAP), a população pesqueira do Ceará, que não é proporcionalmente modesta, pode contar hoje com o apoio do órgão para o crédito e para a comercialização de seus produtos. Desse modo, os resistentes pescadores de Jeriquaquara, de Canoa Quebrada, de Icaraí, de Paracuru e de todos os outros pontos da bela costa cearense podem sentir-se menos abandonados nos momentos de escassez. 

           Vinculada à Secretaria de Agricultura e Reforma Agrária do Estado, a CEDAP executa há anos atividades e projetos pesqueiros. Diretamente voltados para a questão do financiamento ao pescador e a suas associações, os projetos Jangadeiro e Canoeiro, por exemplo, chegam a envolver mais de quinhentos e cinqüenta contratos firmados com pescadores e entidades afins.

           Com o auxílio de recursos oriundos do BNDES e do orçamento do Estado do Ceará, o CEDAP só pôde implementar seus projetos graças ao apoio e o incentivo que recebeu durante a gestão do então e atual Governador, Tasso Jereissati. Aliás, sou testemunha de que, mais que um mero aceno ao consentimento de conveniências, o apoio aos projetos ligados à área pesqueira virou verdadeiro compromisso político de Jereissati. 

           Nesse sentido, ambos os projetos do CEDAP se destinam a proporcionar margem de segurança à economia sazonal da pesca. Enquanto o projeto Jangadeiro, que teve início em 1990, se propõe basicamente a financiar o pescador marítimo na construção e na recuperação das embarcações, o projeto Canoeiro, que data de 1989, visa a atender ao pescador de águas interiores naquilo que lhe faltar de infra-estrutura material.

           Para viabilizar seus projetos, o CEDAP mantém treze postos de revenda de materiais de pesca cujo objetivo se resume a possibilitar aos pescadores a aquisição de insumos básicos da pesca a preços não abusivos. Além disso, a instituição possui quatro frigoríficos para facilitar o escoamento da produção pesqueira artesanal, o que resulta na formação de preços justos à mesma produção.

           Evidentemente, isso não é suficiente para assegurar uma vida tranqüila às intempéries que freqüentemente ameaçam a subsistência dos pescadores. A Lei nº 8.287, de dezembro de 1991, prevê a concessão de benefícios do Seguro-Desemprego aos pescadores profissionais que exerçam sua atividade de forma artesanal.

           Reivindicação histórica dos pescadores, esse instrumento legal e legítimo dos trabalhadores visa ao menos a amenizar as agruras que costumeiramente atravessam as colônias pesqueiras por ocasião dos períodos de defeso de terminadas espécies da pesca. No Ceará, o Seguro-Desemprego torna-se uma fonte de renda indispensável, na medida em que de janeiro a abril, por força de portaria expedida pelo IBAMA, é terminantemente proibida a pesca da lagosta.

           Sr. Presidente,

           Segundo dados colhidos junto à Fundação Instituto de Planejamento do Ceará, cerca de quatro mil pescadores artesanais já foram beneficiados com o programa. Quanto ao valor percebido, os beneficiados recebem, no total, quatro salários mínimos parcelados mensalmente, o que significa apenas atender parcialmente ao pleito de igualdade de tratamento entre trabalhadores urbanos e marítimos.

           Mesmo assim, de 1993 até 1995, o crescimento estimado de pescadores cearenses contemplados com o Seguro-Desemprego é de quatrocentos por cento. Nesse sentido, a institucionalização desse dispositivo da lei trabalhista no ambiente da pescaria artesanal vem despertando uma formidável consciência de cidadania entre os pescadores.

           Apesar do pouco sucesso das políticas governamentais em desenvolver o setor pesqueiro no Brasil, não se pode deixar de reconhecer a importância da pesca artesanal exercida por pequenos produtores. Para se ter uma leve idéia do que isso implica, no Ceará, esse segmento foi responsável por setenta por cento da produção anual de pescado em 1991.

           Segundo relatório extraído do 1º Seminário da Pesca Artesanal, realizado em Fortaleza em 1994, as embarcações artesanais no Ceará somam um número aproximado de quatro mil barcos, que se dedicam à captura tanto de pescados nobres (lagosta, camarão e pargo) quanto de pescados do tipo popular.

           Diante de um número tão significativo de barcos e pescadores no Ceará, não podemos ficar indiferentes ao papel que o setor pesqueiro exerce em nossa economia. Sem exageros, a pesca absorve mais de dezessete mil empregos diretos em sua atividade, bem como patrocina sustentação básica para cerca de cem comunidades pesqueiras ao longo de vinte municípios litorâneos do meu Estado.

           Sr. Presidente,

           Propositadamente, abro um parênteses nesse momento para retomar brevemente a metáfora cinematográfico-realista de Orson Welles, com o intuito de melhor expressar o problema político que acompanha em nossa contemporaneidade a economia pesqueira. Peço alguma paciência para reproduzir a narrativa. Vamos a ela.

           Cabe recordar que o destino dos quatro bravos pescadores cearenses era o gabinete do então Presidente da República, Getúlio Vargas. Indignados com a excessiva indiferença do Governo Federal com as condições desfavoráveis que cercavam a economia pesqueira, sobretudo a artesanal, os quatro cumpriram a promessa de pessoalmente levar suas queixas ao chefe da Nação. 

           Desprovidos de qualquer proteção material legal ou institucional, os pescadores levaram semanas e semanas navegando pelos mares de nossa costa em cima de jangadas aparentemente precárias, mas seguras o suficiente para suportar tão longa viagem. Aportando em todas as capitais dos Estados litorâneos que compreendem a faixa marítima de Fortaleza ao Rio, o grupo angariou a simpatia e a solidariedade de toda a população brasileira.

           Depois dessa árdua odisséia, que pela sua incomum semelhança com a mitológica narrativa de Ulisses deve ser assim denominada, o desfecho não poderia ser menos glorioso do que a concretização do encontro entre os pescadores e o Presidente Vargas. Do mesmo modo carinhoso com que foram recepcionados no Rio de Janeiro, se despediram dos cariocas e rumaram de volta a Fortaleza.

           No entanto, para a tristeza de muitos, a calorosa recepção do Governo Federal da época se traduziu rapidamente numa hipócrita manobra de interesse populista. Tão logo os quatro pescadores viraram as costas e retornaram ao ponto de partida, tudo foi devidamente esquecido e engavetado, com exceção da exploração folclórica que se exerceu posteriormente sobre o gesto quixotesco dos quatro cavalheiros do mar. 

           Pois bem, Orson Welles aproveitou o realismo da história dos pescadores para filmar All is True, que na verdade nunca chegou ao seu desfecho senão recentemente com uma montagem inspirada num espetacular documentário. De maneira inédita e arriscada, o diretor norte-americano preferiu escolher, em vez de um elenco tarimbado, os próprios pescadores para protagonizar a película.

           Tal como no desenrolar previsto nas narrativas míticas, o roteiro do filme funcionou como autêntico oráculo, na medida em que a tragédia que se expressava na película por meio do afogamento de um dos pescadores se comprovou alguns anos mais tarde na morte do próprio pescador-ator.

           Sr. Presidente,

           De volta aos anos noventa, a metáfora da morte do pescador não poderia ser mais adequada para retratar um destino catastrófico ou uma fatalidade infeliz para o universo primitivo dos pescadores artesanais. Pelo menos, é assim que considero o quadro de extrema debilidade em que vivem os pescadores do Ceará diante da violenta especulação imobiliária que ora se alastra por toda a costa cearense.

           Na falta de uma política nacional que disponha seriamente sobre o setor da pesca, a comunidade pesqueira se vê ameaçada hoje pelas pressões execráveis que os grupos imobiliários, conglomerados turísticos e a pesca industrial exercem diuturnamente junto ao pescador humilde.

           Em lugar das rudes paredes de taipa em cima de um chão de areia sustentadas por robustos troncos dos coqueiros, o desvario imobiliário quer a qualquer custo levantar os mais gigantescos condomínios praieiros. Nesse contexto, não há relatividades, o que interessa é o lucro mais fácil. 

           Exausto de tanta pressão a cercar o seu cotidiano, o pescador cearense não parece ter mais forças para resistir por muito tempo. Isso se expressa veladamente nas estatísticas que indicam queda relativa da produção pesqueira no Estado. Desde 1993, a produção de pescado não tem mais acompanhado o ritmo impresso no começo da década. 

           Sem a proteção explícita do Governo Federal em direção da manutenção desse tipo de atividade econômica, os pescadores antecipam seu fim e já mandam encomendar seu espaço nas dunas dos últimos cemitérios praieiros. Enquanto isso não se consuma, a comunidade pesqueira silenciosa repete o gesto de Penélope e tece suas redes de náilon lentamente à sombra de um velho coqueiro cearense.

           Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores,

           Na verdade, no dia de São Pedro, o sentimento deveria ser de festa e assim deve continuar a ser. É preciso que se faça alguma coisa e a iniciativa deve partir de todos aqueles que se sensibilizam com a proteção à natureza, aos costumes nativos e ao pescador solitário. Seja com curral, com a rede caçoeira, com a tarrafa ou com a linha, a pesca deve ser preservada em sua manifestação mais primitiva, mais sagrada.

           Craúnos, mariquitas, pirás, tibiras, bagres, cações, agulhões, jacundás, baiacus e traíras comemoram diariamente em sua intimidade bem peculiar a grande sorte que tiveram ao se instalarem desde os primórdios em mares tão poéticos como os que banham a costa cearense.

           Por sua vez, o pescador, inspirado numa sabedoria milenar, persegue o equilíbrio ecológico naturalmente e se prepara para comemorar ritualmente hoje a abundância de frutos que o mar lhe reserva. A festa da procissão marítima de São Pedro, que acontece anualmente, renova as alianças do mar com a terra e sopra fortes ares de esperança rumo aos homens.

           Por fim, parafraseando o maneirismo brilhante de Padre Vieira, a navegação do mar alto verdadeiramente é admirável. Não se vê ali mais que mar e céu. E contudo, naquela campanha imensa sem rastro, sem estrada, nem baliza, o piloto leva a nau como por um fio; não só aos horizontes mais remotos deste hemisfério, mas ao porto mais incógnito dos antípodas. E como faz, ou pode fazer isto o piloto? Governando ele no mar, e sendo governado do Céu...

           Era o que tinha a dizer.

           Muito Obrigado.


Este texto não substitui o publicado no DCN2 de 01/07/1995 - Página 11469