Discurso no Senado Federal

PRIVATIZAÇÃO DA REDE FERROVIARIA FEDERAL.

Autor
Lúcio Alcântara (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/CE)
Nome completo: Lúcio Gonçalo de Alcântara
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
PRIVATIZAÇÃO.:
  • PRIVATIZAÇÃO DA REDE FERROVIARIA FEDERAL.
Aparteantes
Edison Lobão, Josaphat Marinho.
Publicação
Publicação no DCN2 de 22/08/1995 - Página 14166
Assunto
Outros > PRIVATIZAÇÃO.
Indexação
  • LEITURA, PARTE, RESPOSTA, BANCO NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO ECONOMICO E SOCIAL (BNDES), REQUERIMENTO DE INFORMAÇÕES, AUTORIA, ORADOR, ENDEREÇAMENTO, JOSE SERRA, MINISTRO DE ESTADO, MINISTERIO DO PLANEJAMENTO E ORÇAMENTO (MPO), ANALISE, PROPOSTA, PRIVATIZAÇÃO, REDE FERROVIARIA FEDERAL S/A (RFFSA), PREVISÃO, DIVISÃO, REDE FERROVIARIA, REGIÃO, RESULTADO, APREENSÃO, DEFICIT, TRECHO, FERROVIA, REGIÃO NORDESTE.
  • CRITICA, PREVISÃO, DOCUMENTO, PLANEJAMENTO, PRIVATIZAÇÃO, REDE FERROVIARIA FEDERAL S/A (RFFSA), CORREÇÃO MONETARIA, ATUALIZAÇÃO, PREÇO PUBLICO, TARIFAS, OPORTUNIDADE, TRANSFERENCIA, CONTROLE, EMPRESA ESTATAL, INICIATIVA PRIVADA.

O SR. LÚCIO ALCÂNTARA (PSDB-CE. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, estamos assistindo à marcha do programa de privatização do Governo que está em curso e que já resultou na privatização de várias empresas controladas pela União.

Nesta tarde, abordarei a questão da Rede Ferroviária Federal, que, de certo modo, insere-se no contexto mais amplo dessas discussões que presenciamos na sessão de hoje, desde a intervenção do primeiro orador, Senador Roberto Requião. Tem-se procurado difundir a idéia, a impressão de que vamos passar a viver sob a égide de uma economia de mercado absoluto, como se este, por si só, tudo pudesse, inclusive regular as relações da sociedade, como por exemplo, a relação entre trabalhadores e empresários. Enfim, como se pudéssemos viver aquilo que o economista, ex-ministro e ex-superintendente da SUDENE, Celso Furtado chamou, numa entrevista recente aos jornais que circulam diariamente, de fundamentalismo de mercado, como se estivéssemos convencidos de que devíamos adotar o liberalismo extremo como a grande ideologia que deve reger as nossas relações econômicas.

Há pouco, assistimos ao Senador Vilson Kleinübing, em aparte ao Senador Roberto Requião, propor fosse colocado na Constituição um artigo que impedisse terminantemente o Estado brasileiro de investir recursos em empresas em dificuldades econômicas.

Não aparteei o Senador Kleinübing até porque S. Exª estava fazendo um aparte ao Senador Roberto Requião, mas me ocorreu que os Estados Unidos, que sempre são citados como o grande exemplo de desregulamentação da economia de mercado, como a Meca do capitalismo, há alguns anos, investiram alguns milhões de dólares na Chrysler, montadora de automóveis que atravessava grande dificuldade e estava quase inviabilizada no mercado. O governo americano aportou recursos para salvá-la, para defender os empregos e as montadoras de automóveis, setor importante da economia americana. A empresa recuperou-se, devolveu os recursos com juros, e esta operação foi considerada absolutamente normal.

Sou um grande crítico dessas relações promíscuas entre a iniciativa privada e o Estado. O nosso grande objetivo deve ser exatamente o de desprivatizar o Estado muito mais do que desestatizar ou privatizar empresas públicas. Mas reconheço que o Estado tem este papel. Não podemos pensar em ser uma grande nação, ser um país próspero, desenvolvido, grande Estado nacional se pregarmos um Estado anêmico, ausente, indiferente ao que se processa na economia.

O Sr. Josaphat Marinho - Permite-me V. Exª um aparte?

O SR. LÚCIO ALCÂNTARA - Com prazer ouço V. Exª.

O Sr. Josaphat Marinho - Lendo e ouvindo tudo quanto lemos e ouvimos, temos a impressão de quem há quem queira fazer uma reforma na Constituição e inscrever apenas uma regra: o Estado é normativo e só normativo. O problema do desenvolvimento do progresso não entra em linha de conta.

O SR. LÚCIO ALCÂNTARA - V. Exª tem toda a razão.

Tenho certeza de que esse não é o caminho que interessa ao Brasil. Esse não é caminho que interessa ao povo brasileiro.

É lógico que sabemos que o Estado precisa de uma reforma, que o Estado esgotou a sua capacidade de investimento, que o Estado empresário, dono de grandes empresas, pode não ser a melhor solução para nós. Há uma tendência mundial, que não é só de países em desenvolvimento, mas também de países desenvolvidos, no sentido de que o Estado não pode nunca abdicar do seu poder de influir na economia, de induzir o desenvolvimento, de corrigir as desigualdades entre as regiões.

Acabamos de ouvir o discurso do Senador Edison Lobão e os apartes de vários Senadores a esse pronunciamento mostrando que a questão regional é importante, que esse desequilíbrio entre as regiões tem de ser corrigido. E nós, Senadores da Região Nordeste, da Região Norte, até da Centro-Oeste, muitos deles Estados empobrecidos, temos de reagir contra essa tendência, inclusive a de desqualificar o debate regional, como se clamar, como se argumentar em favor das nossas regiões fosse um pecado cometido contra a Federação. Pelo contrário, essa Federação nunca será forte, o País nunca será desenvolvido, o País nunca será verdadeiramente próspero, se nós não recuperarmos o atraso dessas regiões, que não pedem favores, que não pedem soluções de favorecimento, mas condições, sim, de tratamento preferencial que permita o desenvolvimento de suas potencialidades, de suas riquezas.

Temos o receio, nesse novo modelo de Estado, de vermos nossas dificuldades aumentadas, porque a lógica da iniciativa privada, a lógica do investimento privado, a lógica do capitalismo leva esses recursos para onde? Para aquelas regiões mais ricas, mais prósperas, mais desenvolvidas, onde o retorno do capital investido se dá mais rapidamente e com lucro mais garantido. Se o Estado se retrai, se o Estado diminui a sua poupança, se o Estado deixa de ser grande investidor, como essas regiões vão sair dessa situação de subdesenvolvimento em que se encontram, inclusive com o grande fosso que nos separa, o Nordeste e outras regiões, dessas regiões mais desenvolvidas do País?

Nesse novo paradigma de Governo, nesse novo modelo que se delineia, a tendência é que essas diferenças se acentuem, se alarguem. Por isso temos de agir e agir cedo, inclusive instar ao Presidente da República, ao Governo Federal que esse novo modelo do Estado brasileiro venha, mas que contemple de maneira clara, objetiva, bem definida, com políticas regionais, com políticas industriais, com políticas agrícolas, com políticas de desenvolvimento, os justos anseios de regiões como a nossa, a região nordestina.

O Sr. Edison Lobão - V. Exª me permite um aparte, nobre Senador Lúcio Alcântara?

O SR. LÚCIO ALCÂNTARA - Ouço V. Exª, nobre Senador Edison Lobão.

O Sr. Edison Lobão - Há sempre tendência a supor que as regiões mais pobres, o Norte e o Nordeste do País, pedem óbolos, esmolas. Não é isso. Nós reivindicamos aquilo a que temnos direito, como membros da Federação brasileira, em razão da contribuição que temos dado ao crescimento nacional, por tudo quanto representamos. É indispensável, de fato, que tantos estejamos na defesa desses interesses que são legítimos. Se não o fizermos, não serão preservados.

O SR. LÚCIO ALCÂNTARA - V. Exª tem toda razão. Como dizia o grande sacerdote e orador, Padre Vieira, nós não pedimos pedindo, porque pedimos argumentando. Quer dizer, nós temos razões que justificam os nossos pleitos, que respaldam as nossas reivindicações e não podemos, de maneira alguma, ceder a essa tentação fácil de nos retrairmos diante dos pleitos, diante das reivindicações de natureza regional, porque elas, no fundo, visam a reparar injustiças e, muito mais do que isso, superar desigualdades, sem o que, dificilmente, teremos um país onde o desenvolvimento seja, de fato, uma conquista de todos e não apenas de ilhas de prosperidade que se distribuem nesse ou naquele Estado, nessa ou naquela Região.

Aliás, sob esse aspecto, até recomendaria a quem tiver interesse que procure ler o artigo de hoje do ex-Ministro João Sayad, na Folha de S. Paulo, em que ele mostra com muita clareza, e com argumentação insuspeita - porque ex-Ministro do Planejamento e homem vinculado a São Paulo, aos interesses paulistas -, que a aceitação pura e simples desse chamado "manual do liberalismo" é alguma coisa contra a qual devemos acautelar-nos. Se não atentarmos para o fato de que o Estado tem o seu papel, de que o Estado é o grande instrumento de correção dessas desigualdades, esses desacertos causados por uma economia que funciona com liberdade total terminarão por impor à sociedade grandes injustiças, grandes diferenças sociais e grandes diferenças regionais. É, por exemplo, o meu temor em relação à anunciada privatização da Rede Ferroviária Federal. Fiz um requerimento, aprovado pelo Plenário do Senado, que foi encaminhado ao Ministro José Serra. Há poucos dias recebi a resposta, na qual o Ministro nos encaminha informações do BNDES - órgão gestor do programa de privatização. Ali está dito que ainda não há um modelo definido aprovado pelo Conselho Nacional de Desestatização. Mas nos encaminha um esboço de modelo de privatização, elaborado por uma associação chamada Nova Ferrovia, onde há uma rápida análise da situação mundial em relação às ferrovias e de uma proposta, que, evidentemente, ainda será discutida para ser aprovada, de privatização da Rede Ferroviária Federal.

Nessa introdução, chama-me a atenção o item 3 - Estudo das Informações Internacionais -, que passo a ler:

      "Foram examinados os modelos institucionais e os de privatização existentes no exterior. O modelo institucional vigente na quase totalidade das ferrovias examinadas é o tradicional, com todas as funções sob controle de uma mesma entidade. A grande exceção é o modelo sueco, onde se dividiu a ferrovia em duas empresas, ambas estatais, uma responsável pela manutenção e melhoria da via férrea, a BV, e a outra pela operação dos trens, SJ. Segundo o diretor-presidente da SJ, tal divisão trouxe dificuldades para a operação eficiente da Empresa. No Reino Unido, discute-se um modelo conhecido como open access, que vem sofrendo críticas generalizadas e fundamentadas dos meios técnicos.

      Na Europa, as ferrovias são estatais, predominantemente voltadas para o transporte de passageiros, e recebem vultosas contribuições do Estado."

Estamos falando de países da Comunidade Européia, em que as ferrovias permanecem sob o controle do Estado e recebem pesados subsídios do Governo.

      "Nos EUA e Canadá, as ferrovias são voltadas para o transporte de carga, cujo perfil é muito semelhante ao brasileiro. Nos EUA, as 536 ferrovias de carga são privadas, e no Canadá, há privadas e estatais. O exame do perfil do transporte ferroviário e do ambiente em que se insere, nos diversos países, mostrou que as referências para o caso brasileiro são as ferrovias americanas e canadenses.

      No que tange aos modelos de privatização, verificou-se que cada um foi desenhado para atender a condições específicas. Entretanto, em todos eles, o passivo financeiro e os encargos decorrentes da redução do quadro de pessoal foram absorvidos pelo Estado. Dentre os modelos examinados, verificou-se semelhanças entre as condições da Ferrocarriles Argentinos e da RFFSA, bem como entre as conjunturas nacionais em que se inserem."

O único modelo que, parece, será seguido é o da vizinha Argentina.

Fundamentalmente, a proposta prevê a divisão da malha ferroviária hoje existente em malhas regionais; e nessas malhas regionais, o que nos preocupa sobretudo é a chamada Malha Nordeste, que reúne a SR-1 (Recife), a SR-11 (Fortaleza) e a SR-12 (São Luís), que são superintendências regionais. Por quê? Porque entre tantas malhas deficitárias do ponto de vista econômico, essas certamente estão entre as mais deficitárias. São trechos que não se prestam à concessão para exploração pela iniciativa privada, não obstante o seu grande interesse social, na medida em que transportam mercadorias, cargas e, em alguns casos, passageiros.

Qual será o tratamento dado a essas malhas deficitárias do ponto de vista financeiro e econômico? Pelo que se vê da proposta que está em exame e que é objeto da resposta ao meu requerimento, o que se pretende é que o Estado contrate empresas que vão operar esses sistemas e que paguem pela operação desses sistemas, seja para transportar passageiros seja para transportar carga. Há, portanto, uma dúvida muito grande sobre como se proceder. Será que, na prática, esse tipo de operação não vai significar a desativação de todas as estradas de ferro que ainda cortam os Estados mais pobres do Nordeste? Evidentemente, a malha ferroviária que tem um grande atrativo econômico poderá ser, mediante licitação, explorada por meio de concessão. Assim, não haverá prejuízo para essas regiões.

Preocupo-me bastante com a situação da rede ferroviária do Nordeste brasileiro, que é de grande importância para os Estados dessa região, mas é deficitária.

Gostaria de chamar a atenção, ainda com relação a esse expediente que me foi encaminhado, para o item que trata da questão das tarifas. O modelo, fundamentalmente, seria manter a REFESA - Rede Ferroviária Federal -, que será a concessionária desses serviços. Divide-se toda a malha ferroviária nacional em oito malhas, que seriam colocadas em processo de licitação, para que fossem exploradas por concessionárias. Cria-se no Ministério dos Transportes duas novas instituições, duas novas entidades, que iriam disciplinar o controle e a normatização do funcionamento do sistema ferroviário. Sugere-se a criação de um ente privado novo que seria uma associação ferroviária brasileira - não entendi bem a resposta às minhas perguntas que, neste particular, deixa a desejar -, seria uma espécie de instituição que iria supervisionar o funcionamento das ferrovias. Seria uma instituição privada.

Um detalhe que me chamou atenção é o que trata das tarifas: "as primeiras deverão ser objeto do decreto de concessão complementadas com as normas relativas ao equilíbrio econômico financeiro do contrato de concessão, incluindo-se entre elas a definição da política tarifária. Neste particular, a experiência nacional e a estrangeira recomendam fortemente uma política segundo a qual sejam definidas somente tarifas máximas, aliadas a mecanismos de correção automática dos efeitos inflacionários, permitindo-se à concessionária que pratique os preços que o mercado ditar, limitados tão somente pelo referido teto."

Vejam que há previsão, portanto, de se estabelecer um mecanismo de correção automática das tarifas. Quando se critica, quando se condena, muitas vezes com justa razão, a ineficiência do Estado como gestor e como administrador, deixa-se de levar em consideração que essas tarifas, esses preços públicos, muitas vezes, são controlados ou mantidos artificialmente, inclusive em valores que não remuneram esses serviços, para atender a políticas globais do governo. Assim, essas políticas têm levado à ruína muitas dessas empresas, porque há um congelamento artificial de preços e estabelece-se um déficit que tende a aumentar cada vez mais. O governo, portanto, que deveria complementar essas diferenças tarifárias não o faz, mas quando se trata de conceder esses serviços à iniciativa privada, a primeira cautela dos proponentes dessa política é assegurar, preservando da corrosão inflacionária, as tarifas, os preços públicos.

Sr. Presidente, Srªs. e Srs. Senadores, o meu pronunciamento, nesta tarde, é no sentido de alertar para que não nos deixemos seduzir apenas por esses argumentos que são dados como modernos. Modernidade, sim; ingenuidade, nunca.

Temos o dever e a obrigação de contribuir para a modernização do País, mas não podemos deixar de levar em conta as experiências, a nossa alta responsabilidade decorrente do mandato do qual estamos investidos para preservarmos nossos interesses, os interesses do País, da sociedade e, especificamente, os interesses das regiões que representamos.


Este texto não substitui o publicado no DCN2 de 22/08/1995 - Página 14166