Discurso no Senado Federal

COMEMORAÇÃO DO DIA INTERNACIONAL DE COMBATE A DISCRIMINAÇÃO RACIAL.

Autor
Benedita da Silva (PT - Partido dos Trabalhadores/RJ)
Nome completo: Benedita Souza da Silva Sampaio
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • COMEMORAÇÃO DO DIA INTERNACIONAL DE COMBATE A DISCRIMINAÇÃO RACIAL.
Aparteantes
Bernardo Cabral, Emília Fernandes, Marina Silva.
Publicação
Publicação no DSF de 22/03/1996 - Página 4669
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM, DIA INTERNACIONAL, COMBATE, ELIMINAÇÃO, DISCRIMINAÇÃO RACIAL, MUNDO.

A SRª BENEDITA DA SILVA (PT-SP. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão da oradora.) - Sr. Presidente, Srªs. e Srs. Senadores, hoje é dia 21 de março, data consagrada internacionalmente como a do combate e eliminação do racismo; foi instituída por conta de um desastre humano ocorrido no Município de Sharpeville, na África do Sul, em 21 de março de 1960. Houve lá um massacre, quando foram mortas 69 pessoas negras que apenas queriam defender o direito de livre passe na África do Sul. Foi esse o fato que fez com que a ONU estabelecesse esta data como o dia de protesto e de luta para a eliminação do racismo no mundo.

No Brasil tivemos a oportunidade de, em outros momentos, colocar em discussão a questão racial. Vale ressaltar o fato de que esta data é internacional. Ela se refere à discriminação racial, não apenas com relação ao negro, mas a todas as etnias discriminadas no mundo.

Sabemos que, apesar dos avanços que detectamos - esta data já não está mais tão voltada para a África do Sul -, ainda temos o apartheid, a discriminação racial e o preconceito. E por que tratamos desses pontos? Porque há confusão entre a definição de preconceito e racismo.

Sr. Presidente, Srªs. e Srs. Senadores, sabe-se que judeus, palestinos, indígenas, negros, imigrantes, cada um sofre as conseqüências da discriminação e do racismo. Portanto, racismo, preconceito e discriminação andam juntos. São eles que determinam os povos inferiores, as raças indesejáveis, perniciosas e bárbaras. Foi a partir desse conceito que se determinou que a cor da pele de alguns, a classe social de outros e o seu local de moradia definiriam este trio formado pelo racismo, preconceito e discriminação.

Estamos ainda convivendo com a xenofobia em alta escala na Europa, que era considerada por nós como o Continente onde se tinha maior abrigo, maior asilo no que se refere às raças diferentes. Temos constatado, no entanto, que fizeram delas os seus inimigos. E lá estão os latinos, os turcos, os asiáticos, como intrusos, sendo deportados, aprisionados e até assassinados. A Europa, então, deixou de ser o que pensávamos que fosse. Caiu o mito de que lá era a terra do asilo.

Tive a oportunidade de analisar outros exemplos, na semana passada, quando participei, na Itália, do Encontro Internacional da Federação SOS Racismo. Com o apoio da Benetton, esse encontro pôde realizar-se.

Constatamos, mediante a realização dos debates, dos relatórios do SOS Racismo em vários países, que a Alemanha e a Suécia têm um jogo eletrônico que consiste em assassinar friamente pessoas de outras etnias. O jogador consegue marcar pontos "matando" judeus, turcos e homossexuais.

Tenho em mãos uma revista que menciona e mostra os chamados grupos "cabeça raspada". Há vários fatos que comprovam que eles têm cobertura, notas nos jornais, em toda a imprensa, desfilando tranqüilamente pelas ruas, matando imigrantes e até mesmo incendiando as habitações de etnias diferentes.

Entendemos que essa ação nazista está ocorrendo em uma dimensão maior do que poderíamos imaginar. E deve ser detida por uma ação internacional de combate, de eliminação do racismo.

O SOS Racismo, nesse encontro internacional, determinou que a ação, em 1996, estará voltada para os imigrantes. E o nosso País, apesar de toda discriminação, preconceito e racismo existentes - e não podemos negar - ainda é, em relação ao estrangeiro, o mais hospitaleiro. Mas, mesmo assim, também temos os nossos pecados e precisamos eliminá-los, porque o Brasil, verdadeiramente, tem dado um testemunho de que ele não tem reciprocidade, mas, com relação ao estrangeiro, tem sido hospitaleiro. Digo isso porque participei de um encontro internacional, onde vários países da América Latina foram questionados, e não era por falta de conhecimento das ações no Brasil - lá tínhamos como representantes Benedita da Silva, o GLEDES e outras instituições brasileiras -, mas porque, dentre as pesquisas feitas até então, constatou-se que, verdadeiramente, esta Nação é um País hospitaleiro.

Contudo, é necessário reconhecer que precisamos ter medidas... Mas aí não fomos suficientemente ousados para eliminarmos do nosso País o que resta de preconceito e de racismo para fazer com que as nossas relações raciais internas possam, constatadas internacionalmente, servir de exemplo para a eliminação do racismo.

O Sr. Bernardo Cabral - Permita-me V. Exª um aparte?

A SRª BENEDITA DA SILVA - Concedo o aparte a V. Exª.

O Sr. Bernardo Cabral - Senadora Benedita da Silva, V. Exª retrata com fidelidade, nessa última frase, que nós ainda não fomos suficientemente competentes para eliminarmos, pôr um fim, colocar cobro nessa problemática da discriminação racial. É preciso que fique registrado em seu discurso - porque V. Exª, pela modéstia que lhe caracteriza, não o fará -, que foi V. Exª, em plena Assembléia Nacional Constituinte, que deu o primeiro passo para que o problema do racismo fosse tratado a nível constitucional. V. Exª foi, senão a principal responsável - e posso dar esse testemunho na qualidade de ter sido Relator da Assembléia Nacional Constituinte - pelo art. 5º, inciso XLII, que diz:

      "Art. 5º ........................................ Inciso XLII - A prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei."

Lembro-me de que quando V. Exª empunhou essa bandeira já demonstrava que em nosso País, ainda que se mascare que não há o problema do racismo - e aqui não estou citando cor da epiderme -, há pelo menos o chamado preconceito social. Ora, se não existe o preconceito racial, existe o social, que V. Exª desencadeava muito bem em sua tese, que acabou sendo vitoriosa com o nosso apoio. Hoje V. Exª demonstra neste trio: preconceito, racismo e discriminação racial, conforme já assinalou, o que se passa pelo mundo afora. Vejo que o povo do Rio de Janeiro foi de rara felicidade quando elegeu V. Exª para o Senado. A perspectiva que V. Exª sentia como Deputada Federal não seria hoje a que V. Exª tem, porque, como Senadora, V. Exª deixou de ser uma simples cidadã do Rio de Janeiro para tornar-se uma cidadã do mundo, em razão das viagens de trabalho a convite tanto da Comissão de Relações Exteriores como de outros órgãos, no sentido de ter uma visão panorâmica de toda uma sociedade, sem ficar vinculada ao problema eventualmente partidário e ideológico. Quando V. Exª aborda esse tema na data comemorativa do Dia Internacional de Combate à Discriminação Racial, não vejo como as palavras de V. Exª não encontrarão eco. Elas haverão de repercutir, porque quando se toma um assunto com a seriedade com que V. Exª aborda da tribuna, Senadora Benedita da Silva, eu só lamento que este Plenário não esteja abarrotado para que cada um sentisse que vale a pena ouvir um assunto dessa magnificência, abordado por alguém que não só já sofreu na pele as agruras de uma discriminação tanto racial quanto social, mas que hoje o faz distanciada de qualquer coisa que pudesse lhe trazer um complexo de culpa; a sua figura avulta mais ainda na tribuna quando seus colegas - e quero me incluir entre os primeiros - reconhecem o seu talento e a sua capacidade para tanto.

A SRª BENEDITA DA SILVA - Agradeço o aparte de V. Exª, Senador Bernardo Cabral, que também, não menos do que eu, foi protagonista e se empenhou para que fosse inserido não apenas aquele artigo mas, também, outros que vieram dar aos negros e índios brasileiros um reconhecimento por toda a contribuição que têm dado até hoje.

Aproveitando o que V. Exª disse: de que temos a consciência que não podemos tratar dessa questão com ódio, com rancor, com revanche, mas com uma convicção na busca de parceiros, não podemos aceitar que essas coisas continuem acontecendo, principalmente se houver uma dessas ações que, reconhecemos, não acontece apenas na Europa, mas também no Brasil, com incidentes em São Paulo, Rio de Janeiro e em outros Estados. Não podemos, de forma alguma, permitir essas agressões; precisamos de elementos e de ajuda mútua para impedirmos ou eliminarmos toda e qualquer ação nesse sentido.

Gostaria também de dizer que, no Brasil, os índios sempre sofreram discriminação, juntamente com os negros. O índio também sofreu pelo mundo afora. Na América Latina observamos que a maioria das tribos indígenas está em processo de extinção.

Sr. Presidente, os negros poderão resistir e preservar a sua cultura, já que estão na ordem do dia, mas não foram considerados inteligentes. Os selvagens foram chamados de preguiçosos; os negros, de feios, ignorantes e brigões.

Houve e existe uma separação, ainda que não nos limites do que ocorreu na África do Sul. Mas temos esse apartheid e precisamos trabalhar cada indivíduo, porque essa ação se dá também no interior de cada um de nós.

Hoje, nesta sessão, este dia deve ser comemorado com denúncias e também com iniciativas de ações concretas para eliminar o racismo.

A Srª Emilia Fernandes - Permite-me V. Exª um aparte?

A SRª BENEDITA DA SILVA - Ouço com prazer o aparte de V. Exª.

A Srª Emilia Fernandes - Senadora Benedita da Silva, neste momento, chego ao plenário especialmente para solidarizar-me com V. Exª, requerente que foi para a Hora do Expediente ser dedicada ao Dia Internacional de Combate à Discriminação Racial. A nossa solidariedade se estende também a todas as pessoas que sofrem qualquer tipo de discriminação. Esta nossa declaração se dá com a esperança de ver a igualdade prevalecendo em todas as sociedades, principalmente destacando os avanços obtidos na Quarta Conferência Mundial dos Direitos da Mulher, na qual tivemos o prazer de compartilhar daqueles momentos de debates e reflexão, ano passado, em Beijing. Vimos mulheres convivendo com diferentes realidades sociais, econômicas, políticas, religiosas. Naquele momento, conquistou-se um alto grau de unidade no sentido de superar preconceitos e alcançar direitos comuns a todos. Isso é importante porque é o exemplo de que as diferenças podem ser não só superadas mas ainda transformadas em elemento incentivador da luta pela igualdade. Além do preconceito histórico, acredito que estamos assistindo - e aí quero cumprimentá-la pela sua luta, pela sua garra - um aprofundamento da discriminação, que se acentua pelo aumento da desigualdade provocada pelas políticas econômicas, pela ausência do Estado, muitas vezes, nas funções sociais, e o desemprego também que sabemos atinge os trabalhadores, penaliza profundamente as mulheres, os negros e os pobres, principalmente as mulheres negras. Sabemos que o Brasil é um País com uma população grande de negros ainda submetida, em sua maioria, aos baixos salários, aos piores empregos, às péssimas condições de moradia e outras formas de exclusão social. Atingir um novo patamar de igualdade, portanto, é o objetivo deste momento de reflexão e debate. Para encontrarmos uma saída, impõe-se um novo tipo de desenvolvimento econômico e social que assegure o fortalecimento do mercado interno, a geração de empregos e a distribuição de renda. E, de forma especial, estabelecer a educação como forma de superar as desvantagens seculares em que vivem os pobres, os índios, as mulheres e os negros. Transformando o conhecimento e a consciência que a educação nos dá em instrumentos privilegiados de conquista da cidadania. Agora, estamos resgatando o exemplo que a Quarta Conferência Mundial das Mulheres, da qual participamos, nos deu e, sem dúvida, aplaudindo a iniciativa deste debate para conclamar a todos os brasileiros que se unam para conquistar melhores condições e superar toda e qualquer forma de desigualdade e preconceito racial. Meus cumprimentos, Senadora Benedita da Silva, pela sua luta, pela sua vida e por esse momento que nos proporciona.

A SRª BENEDITA DA SILVA - Agradeço o aparte de V. Exª, nobre Senadora Emilia Fernandes. V. Exª acompanhou de perto as discussões que a representação de vários países da comunidade negra formulou na Quarta Conferência - políticas que pudessem reconhecer também como sendo direitos humanos combater a questão da discriminação racial. É importante porque foi exatamente a relação racial que levou a que os negros e os indígenas brasileiros tivessem condição social desfavorável, pertencendo à base da pirâmide social, sem ter o status, decisão e poder, sem poder sequer desenvolver culturalmente seus conhecimentos.

É por isso que, evidentemente, incluo o aparte de V. Exª no meu discurso, e o faço porque entendo que este momento, o Dia Internacional pela Eliminação da Discriminação Racial, é um chamamento - como disse anteriormente - para uma parceria necessária no sentido de implementarmos, no Senado Federal, projetos que visem a dar sustentação às iniciativas do Movimento Negro, em nível de Brasil, iniciativa ora recente do Presidente da República, que cria um grupo interministerial para tratar dessa questão. Teremos que dar respaldo às iniciativas do próprio Senado em relação ao tema.

Mas eu gostaria também de, neste dia, ocupando a tribuna, fazer meu protesto com relação ao que se passou no pequeno Município de Pancas, interior do Estado do Espírito Santo. Um jovem lavrador de 20 anos, Alair Sérgio Marques, o Serginho, como era carinhosamente conhecido em sua comunidade, suicidou-se no último dia 1º de março.

O absurdo, o inaceitável, o hediondo não foi só o fato em si, mas as circunstâncias que o determinaram.

Das informações que recebi - e trago ao conhecimento deste Plenário o que me foi transmitido também pela imprensa capixaba e pelo grupo interministerial -, gostaria de dizer que o crime cometido por Serginho, para chegar ao desespero, foi o fato de ser um pobre, negro, cheio de amor, que se apaixonou pela filha do fazendeiro José Iansem Filho, sendo por ela correspondido. Estavam convivendo muito bem, mas o pai da moça, que não queria o namoro, determinou aos policiais civis e militares que mantivessem preso, arbitrariamente, ilegalmente, por três dias, esse pobre rapaz. Ele foi barbaramente torturado. Foi flagelo físico! A perversidade cometida foi além disso; ele foi estuprado! E esse rapaz, ao sair, não teve "cara" para olhar para sua namorada, para seus amigos, para seus conhecidos e para os seus familiares.

Saindo da prisão, tomou essa decisão trágica de suicidar-se.

Indaguei-me: quantos episódios como este têm acontecido?!

Hoje é o Dia Internacional pela Eliminação da Discriminação Racial. Peguei apenas esse fato para trazer. Há, porém, um outro nas relações internacionais que eu gostaria de lembrar, tão escandaloso quanto o do Espírito Santo. Trata-se do sofrimento já passado pelos negros em vários países: Angola, Moçambique, África do Sul.

Recentemente, uma rádio estatal portuguesa - faço questão de ler porque foi publicada no Jornal do Brasil do dia 19 de março, último, uma notícia de Lisboa, Portugal, sobre um incidente que causou uma crise diplomática entre Portugal e Angola - foi acusada de fazer propaganda racista no programa Cobras e Lagartos e que, evidentemente, devido à crise provocada, foi extinto tal programa. O diretor do programa disse, durante o programa há uma semana, referindo-se aos angolanos: "Nós ensinamos o preto a ser assim durante 400 anos. Agora não podemos nos queixar de que o preto seja assim, mesmo que ande por aí de carros com CD, não é?"

E, continuando os insultos, o diretor da rádio chamou o Presidente angolano, José Eduardo dos Santos, de rapaz incompetente; o embaixador angolano, em Lisboa, de moço de recados, e a população do país africano de castrados mentais. Insinuou ainda que os angolanos são analfabetos, corruptos e se sentem muito importantes quando viram diplomatas em Portugal.

Como vemos, esta é realmente uma data importante. Ela é importante não apenas do ponto de vista do Brasil, mas também das relações internacionais. Quando coloco aqui esse quadro, eu o faço para que possamos tomar rédea dessa situação. Nós temos que diminuir essa distância existente entre um povo e outro, entre a cor de pele. Nós precisamos criar a raça brasileira. Nós não podemos esconder o orgulho que sentimos deste País, que vive essa situação de miscigenação, e a contribuição que temos dado. Os africanos são nossas referências, porque foram trazidos para cá, explorados e produziram para este País. Nós estamos buscando, dentro desse nosso orgulho, essa parceria. Nós queremos que haja uma convivência, que haja um viver com harmonia, que nós possamos sustentar não apenas campanhas, mas também propósitos de eliminar a discriminação racial.

A Srª Marina Silva - Permite-me V. Exª um aparte?

A SRª BENEDITA DA SILVA - Concedo o aparte a V. Exª, Senadora Marina Silva.

A Srª Marina Silva - Senadora Benedita da Silva, quero parabenizá-la por sua luta, pela identidade que V. Exª tem na defesa da raça negra no Brasil e, acima de tudo, pelo papel que desempenha contra qualquer tipo de discriminação, seja com que raça for. Eu estava aqui me lembrando de que essas datas estão sempre associadas a alguma tragédia. Assim acontece com relação ao Dia Internacional da Mulher, ao Dia Internacional contra a Discriminação Racial - o episódio do assassinato das 69 pessoas na África do Sul -, bem como com relação ao Dia do Meio Ambiente, ligado a uma catástrofe sempre praticada pelos ditos civilizados em relação a algo grandioso. Mas no que se refere à questão da discriminação racial, diria que é um fenômeno perverso, porque os negros, tirados de sua pátria-mãe, trazidos para o Brasil e apartados da sua identidade cultural, social, familiar, até mesmo do seu elo de transcendência - a sua religiosidade -, ofereceram para aqueles que lhes deram a senzala, para os que lhe deram um tronco, uma riqueza fantástica, produzindo o açúcar que era exportado para a Europa, gerando riqueza para este País. Ofereceram-nos também a riqueza nos cafezais e algo fantástico: a alegria, a diversidade da cultura desse povo que engrandece a todos nós. Eu queria fazer referência a uma imagem que vi em um programa do Partido dos Trabalhadores - parece meio tendencioso porque V. Exª e eu somos do PT - que me tocou e me emocionou muito. O ator Paulo Betti, juntamente com Antonio Grassi, fizeram um programa muito interessante em que falavam do que seria um canal de público acesso, ocasião em que eles entrevistaram um negro na rua: "Se você tivesse um canal de público acesso, o que você faria?" E ele responde: "Eu cantaria". E começa a cantar uma canção belíssima, desafinada, mas belíssima na poesia e na intenção de oferecer para as pessoas uma canção. E então pensei quão grande e maravilhoso é o sentimento dessa raça massacrada pela escravidão, por anos e anos de preconceito e de apartação social em todos os aspectos da vida! E, quando tem oportunidade, muitas vezes, sem dentes, sem a mínima condição de sobrevivência, diz que gostaria de cantar e nos oferece uma canção, ainda que desafinada, como desafinado é o sentimento daqueles que praticam a discriminação racial. Parabenizo V. Exª pela iniciativa desta sessão, pelo seu discurso e, acima de tudo, por ser nesta Casa a portadora legítima e autêntica desta bandeira.

A SRª BENEDITA DA SILVA - Agradeço o seu aparte, Senadora Marina Silva, e, como historiadora, V. Exª conhece a contribuição histórica do povo negro, do povo indígena ao nosso País.

Como dizia, Senadora, precisamos criar a raça brasileira, porque - estou falando e quero ser redundante - com esse sentimento essas diferenças não vão fazer diferença, mas serão o símbolo da igualdade, seja do ponto de vista social, econômico, ou político. É isso que estamos buscando: essa figura, que é um símbolo, que V. Exª coloca em seu aparte, com relação ao negro que cantava. Apesar da senzala, que ainda hoje existe, até hoje ele continua feliz e cantando. A intervenção de V. Exª faz-me também reportar aos princípios bíblicos, onde os mais belos hinos e poesias foram escritos em tribulação; não porque quisessem tribulação, mas porque assim tinham consolo, recebiam inspiração divina, força dos altos céus, para ali poder construir uma possibilidade, uma esperança. Cantavam os Apóstolos e todo o povo de Deus; choravam e portas e cadeias se abriam, porque não há prisão maior do que o estado de espírito de alguém.

É por isso que, na intervenção de V. Exª, quando a pergunta é feita àquele negro sobre o que faria se tivesse um canal livre ele respondeu que cantaria. É necessário que tenhamos esse canal livre para tratarmos dessa questão. Quando falamos que essa imagem não é reproduzida na televisão, é verdadeiro; quando falamos que ela não aparece na propaganda, é verdadeiro, tirando a visibilidade do negro e a sua identidade, porque ele não existe, ele aparece, e nós estamos entramos em processo de branqueamento. Essas figuras não existem, e quando aparecem estão ligadas ou à marginalidade ou à miséria. É assim que essas imagens são projetadas.

V. Exª antecipou o momento em que, no meu pronunciamento, iria falar exatamente desse canal livre. E por que eu iria falar do canal livre, Senadora Marina Silva? Porque, recentemente, participei - como já disse anteriormente - do SOS Racismo, com o apoio da Benetton, no Encontro Internacional das Federações do SOS Racismo. Pude trazer para este pronunciamento a necessidade de respaldar as argumentações que sempre faço nesta Casa da necessidade da imagem do negro ser projetada.

Onde está a diferença? Observem, Senadores, essas imagens de propaganda da Benetton que agora mostro ao Plenário. Que imagens ricas! Aqui há negro, japonês, há todas as raças. Aproveito a oportunidade para convidar a todos para a pequena exposição que fiz em frente ao meu Gabinete. Está lá para que todos possam ver que coisa linda! Isso se chama mistura das raças, mas cada um preservou a sua imagem. Eles estão no mesmo espaço. E são o quê? São humanos. Eles são simplesmente humanos.

Nesta outra fotografia que passo a mostrar, também muito me chamou a atenção as crianças que fazem parte desta imagem. Elas não estão aqui diferenciadas, elas também fazem propagandas, também estão sorrindo, também estão brincando.

E olhando essa imagem, fiquei imaginando como seria interessante se isto estivesse acontecendo: todas as raças juntas - negro, branco, índio - aparecendo na televisão. Iríamos olhá-las e ficar contentes por sabermos que nossos filhos estariam ali e que o nosso povo brasileiro estaria ali, aparecendo.

E percebi que precisamos criar mecanismos no nosso País, para que essas imagens sejam constantes, para que a discriminação, o preconceito e a exclusão não aconteçam, para que haja essa interferência do amor.

Como as coisas foram coincidentes! Trouxe para esta tribuna uma outra questão. O suicídio de um negro que ousou demonstrar a sua paixão por uma mulher branca, filha de um fazendeiro brasileiro, e que, por isso, sofreu uma série de violências e vexames na prisão. Estamos vendo a imagem projetada de uma paixão entre branco e negro.

Meu Deus, por que não podemos fazer desta imagem algo verdadeiro nas nossas ações? Por que não podemos contribuir com o nosso País, com o nosso povo?

Deixei uma última imagem para mostrar ao término do meu pronunciamento, que pediria fosse publicado na íntegra, porque é longo e não quis fazer a leitura.

Para finalizar quero apresentar uma última imagem: duas mãos, uma negra e outra branca, as duas acorrentadas. E é assim que estamos vendo a questão racial: o negro acorrentado, sofrendo toda sorte de violência; mas também o branco está acorrentado, porque não conseguiu se livrar do seu racismo, do seu preconceito, da sua discriminação.

Então façamos com que essa imagem se torne mentirosa; esta, sim, deve ser mentirosa. Vamos tirar as algemas, aquilo que acorrenta, aquilo que nos impede de sermos livres, livre para defender a nossa Pátria, livres para defender os nossos interesses e que essa questão de raça seja coisa secundária, se verdadeiramente existir igualdade.

Era o que eu tinha a dizer, Sr. Presidente. Muito obrigada.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 22/03/1996 - Página 4669