Discurso no Senado Federal

HOMENAGEM AO DIA DO INDIO.

Autor
Benedita da Silva (PT - Partido dos Trabalhadores/RJ)
Nome completo: Benedita Souza da Silva Sampaio
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM. POLITICA INDIGENISTA.:
  • HOMENAGEM AO DIA DO INDIO.
Publicação
Publicação no DSF de 24/04/1996 - Página 6776
Assunto
Outros > HOMENAGEM. POLITICA INDIGENISTA.
Indexação
  • CRITICA, DESRESPEITO, ANTERIORIDADE, DIREITO DE PROPRIEDADE, TERRAS, INDIO, BRASIL.
  • CRITICA, INCONSTITUCIONALIDADE, DECRETO FEDERAL, REVISÃO, DEMARCAÇÃO, TERRAS INDIGENAS, DENUNCIA, PODER, GRUPO, INTERESSE, CONTESTAÇÃO, FRONTEIRA, RESERVA INDIGENA, INFORMAÇÃO, PROTESTO, PAIS ESTRANGEIRO, ORGANIZAÇÃO NÃO-GOVERNAMENTAL (ONG).
  • RESPONSABILIDADE, CONGRESSISTA, DEFESA, COMUNIDADE INDIGENA, GENOCIDIO, PROTEÇÃO, DEMARCAÇÃO, OPORTUNIDADE, HOMENAGEM, DIA NACIONAL, INDIO.

A SRª BENEDITA DA SILVA (PT-RJ. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão da oradora.) - Sr. Presidente, Srs. Senadores, em nome do Partido dos Trabalhadores, venho a esta sessão para dizer que tive oportunidade, na quinta-feira passada, de, ocupando a tribuna, enfatizar a questão indígena no Brasil.

Na oportunidade, pude ressaltar que estamos atrasados em nossa concepção de direito com relação às comunidades indígenas. Intitulamo-nos até donos da terra chamada Brasil, festejamos um descobrimento como se aqui não existisse, absolutamente, nenhuma espécie humana.

Quando assistimos às discussões no âmbito da reforma agrária, verificamos que há uma preocupação com relação às terras indígenas, como se os índios fossem invasores ou que tivessem tomado essas terras de alguém. É preciso que tenhamos muita calma, muita cautela e, sobretudo, reconheçamos que a comunidade indígena, por mais extensão que a ela seja delegada, está longe, mas muito longe de ser o espaço territorial que, há alguns séculos, essa comunidade ocupou. Portanto, houve um crescimento da população, houve evidentemente uma ocupação do território por outras etnias, o que diminuiu a extensão de terras demandadas à comunidade indígena.

Digo isso com uma preocupação muito grande, porque, como não se quer fazer uma reforma agrária tomando a chamada terra de ninguém, quero dizer que existem pessoas que têm terras e que delas não devem ser tomadas, porque estaríamos ferindo direitos não só humanos, mas o direito e a cidadania do povo indígena deste País.

Sr. Presidente, Srs. Senadores, identifico-me com a questão do meio ambiente e das minorias e quero, nesta sessão, enfatizar que os Governantes continuam errando no trato com a questão indígena. Não quero apenas falar de erros do passado, mas do presente. E como eu já havia feito um pronunciamento a respeito, quero apenas exemplificar com dois aspectos. Primeiro, as nações indígenas brasileiras sentem-se ameaçadas com a alteração já prevista no Decreto nº 22, de 1991, que estabelece as regras para o procedimento de demarcação de suas terras e orienta todo o processo de consolidação dos direitos das comunidades indígenas assegurados pela Constituição Federal.

Eles se sentem ameaçados e com toda razão. Desde 8 de janeiro passado, quando o Presidente da República assinou o Decreto nº 1.775, muitas vozes já se ergueram neste plenário, inclusive a minha, para protestar contra esse decreto que representa um verdadeiro retrocesso em comparação aos avanços introduzidos pela Constituição atual. Com esse decreto, o Governo brasileiro comete um desrespeito contra os direitos daqueles que um dia foram os primeiros e legítimos donos das nossas terras.

Sabemos que os interesses que se mobilizam contra as demarcações das terras indígenas são poderosos. Temos que ter coragem de denunciar. Não se trata apenas de denúncia, mas de um compromisso - faço essa defesa desde a Constituinte, desde quando era da Frente Parlamentar em Defesa da Comunidade Indígena - assumido em relação às demarcações das terras indígenas. Esses poderosos interesses existem por parte dos invasores ilegais, de mineradoras clandestinas e de outros segmentos contrariados.

Não conseguem entender que a demarcação das terras indígenas é a garantia de preservação cultural das diferentes nações indígenas que ainda sobrevivem no País. Já tive oportunidade de dizer que nem sequer temos conhecimento da existência de muitas delas. No ano de 1500, havia cerca de 3 milhões de índios. Hoje essa população está reduzida, não ultrapassa 300 mil em todo o território nacional.

Segundo o Decreto nº 1.775, de 1996, está garantido a Estados, Municípios e demais interessados o princípio do contraditório, por meio do qual poderão reivindicar a posse de terras indígenas cujas demarcações foram homologadas, mas ainda não cumpriram a formalidade burocrática de um registro no Serviço de Patrimônio da União ou em cartório de imóveis.

O recente decreto fez retroagir o contraditório a todas as terras identificadas, demarcadas e até homologadas, atingindo 344 das 544 áreas indígenas conhecidas no Brasil.

Sr. Presidente, Srs. Senadores, as tribos indígenas estão aterrorizadas com esse decreto, e têm razão, uma vez que ele abre espaço para que as pessoas contrariadas possam contestar o limite das áreas a serem demarcadas, áreas essas que, bem sabemos, foram estabelecidas após demorados levantamentos, que levaram em conta a salvaguarda de locais fundamentais à sobrevivência e à reprodução física e cultural das diferentes tribos existentes no País.

Não foi fácil; foi uma luta constante. Quem acompanhou, quem participou sabe perfeitamente que não ocorreu, ao contrário do que dizem, o fato de os índios chegarem e demarcarem as terras, dizendo que lhes pertenciam. Não é verdade.

Sr. Presidente, Srs. Senadores, o eminente jurista Dalmo Dallari, professor titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e membro da Comissão Pró-Índio, considera que o Decreto nº 1.775 é "inconstitucional", pois nenhuma norma legal pode ter efeito retroativo. No entanto, o "decreto diz que só serão válidas as demarcações já realizadas se tiverem atendido aos princípios nele fixados".

Isso é um verdadeiro absurdo. É claro que nenhuma demarcação anterior foi feita de acordo com as exigências de um decreto que não existia. Não bastasse essa exigência descabida, o decreto permite ainda que os interessados interfiram nos processos, juntando os títulos dominiais, quando a Constituição diz claramente que os títulos sobre terras ocupadas por índios são nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos.

As organizações não-governamentais brasileiras e estrangeiras manifestaram-se veementemente contra as alterações introduzidas pelo Decreto 1.775. A veemência foi tamanha que o Governo Federal, com receio de não receber os recursos externos para demarcações das terras indígenas, ficou numa situação difícil. Além disso, enviou à Europa o Ministro da Justiça, Nélson Jobim, para lá tentar explicar os motivos que levaram o Brasil a permitir a anulação de áreas demarcadas.

Sabemos que os receios dos índios não são infundados. Segundo dados recentes da Folha de S. Paulo, foram feitas 1.200 contestações sobre 70 áreas indígenas. A Fundação Nacional do Índio - Funai estudou os pedidos e aceitou cerca de 500 reclamações em relação a pouco mais de 50 áreas.

Agora, dentro dos prazos estipulados pelo decreto, caberá exclusivamente ao Ministério da Justiça analisar as contestações e decidir se a queixa do suposto proprietário de terra, seja ele o Estado, o Município, ou particular, é ou não procedente. Na prática, todo o poder de decisão está concentrado nas mãos do Ministro da Justiça a quem caberá dar a palavra final sobre se uma área é ou não indígena.

Esse decreto 1.577, repito, é contraditório e constitui concreta e absurda ameaça aos direitos assegurados aos povos indígenas pela Constituição de 88. O art. 231 da atual Carta Magna é claro ao estabelecer que "são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcar, proteger e fazer respeitar todos os seus bens".

É o que está escrito no art. 231 da nossa Carta Magna.

Esse decreto tirou a tranqüilidade do pouco que resta de nossas nações indígenas. O que dizer então do futuro de nossos índios, que continuam isolados do seu estado mais puro? Trata-se de índios que, mesmo arredios, continuam mantendo suas tradições seculares? Estes estão sendo espremidos em seus próprios territórios. São índios sem terra demarcada - é preciso que se atente para isso - e que vivem se escondendo de contrabandistas, madeireiros, traficantes, garimpeiros, para fugir da morte. Esses continuam sendo massacrados impiedosamente apesar das leis.

Nós, Parlamentares, também somos responsáveis por essa situação, que ainda persiste nos dias de hoje. Devemos ser altamente fiscalizadores e devemos cobrar com veemência que as demarcações sejam feitas com justiça. E temos o dever de olhar essas nações, para o povo das florestas, e buscar soluções. Não devemos apenas aceitar que esse decreto venha ferir a Constituição, trazer mais uma preocupação, entre tantas as que estamos vivendo.

Oxalá não aconteça o que está acontecendo ao Movimento dos Sem-Terra. Já temos índios demais sendo exterminados, suicidando-se. É preciso lutar, sem tréguas, na tribuna desta Casa, para garantir que a situação jurídica de nossos índios, como membros de sociedade diferenciada, detentores de direitos especiais, seja consolidada. Precisamos garantir que os seus direitos de usufruto sobre as terras que ocupam sejam respeitados.

Por isso aqui estou, não como num dia de festa, mas como uma homenagem imbuída de um compromisso de fazer voz não apenas nesta tribuna, mas com os compromissos que o Partido dos Trabalhadores tem com a causa da minoria e do meio ambiente, sobretudo com o direito da cidadania do povo brasileiro.

Em nome de tudo isso, assomo esta tribuna, pedindo a esta Casa que, não apenas com sensibilidade, mas com respeito à Constituição brasileira, não aceite que esse decreto venha feri-la. E mais do que ferir esta Letra, que se torna morta quando não é cumprida, é ferir diretamente uma comunidade que sabemos ser a legítima proprietária dessas terras, que alguns acreditam não ser de ninguém, mas que sabemos ser de uma raça brasileira que é o povo indígena.

Neste dia, fica aqui a nossa solidariedade e o nosso compromisso para continuarmos lutando para que eles possam, dignamente, continuar exercendo a sua cultura, a sua religiosidade e a sua política que, evidentemente, não passam pela nossa. A sua política econômica passa por outros valores, que, aliás, queremos preservá-los, para que, socialmente, eles possam estar integrados sem perderem a sua identidade.

Sr. Presidente, era o que tinha a dizer.

Muito obrigada.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 24/04/1996 - Página 6776