Discurso no Senado Federal

REAPRESENTAÇÃO DE PROJETO DE LEI QUE AUTORIZA A EUTANASIA, MORTE SEM DOR NOS CASOS QUE ESPECIFICA, E DA OUTRAS PROVIDENCIAS.

Autor
Gilvam Borges (PMDB - Movimento Democrático Brasileiro/AP)
Nome completo: Gilvam Pinheiro Borges
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
SAUDE.:
  • REAPRESENTAÇÃO DE PROJETO DE LEI QUE AUTORIZA A EUTANASIA, MORTE SEM DOR NOS CASOS QUE ESPECIFICA, E DA OUTRAS PROVIDENCIAS.
Aparteantes
Ney Suassuna.
Publicação
Publicação no DSF de 22/05/1996 - Página 8420
Assunto
Outros > SAUDE.
Indexação
  • DEFESA, APROVAÇÃO, PROJETO DE LEI, AUTORIA, ORADOR, AUTORIZAÇÃO, MORTE, DOENTE, ESPECIFICAÇÃO, CARACTERISTICA, PAIS.

O SR. GILVAM BORGES (PMDB-AP. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, traz-me à tribuna desta Casa um assunto importante e, de certa forma, bastante polêmico, já que confronta com alguns dogmas e valores muito arraigados na sociedade, principalmente nos segmentos religiosos.

Enquanto Deputado Federal, apresentei um projeto de lei e o estou reapresentando neste momento. Esse projeto autoriza a prática da morte sem dor, nos casos em que especifica e dá outras providências: a eutanásia. Passo a lê-lo:

      "Art. 1º - Esta lei disciplina os casos em que poderá ser autorizada a prática de morte sem dor e os respectivos procedimentos prévios à sua consecução.

O art. 2º deste projeto que estou apresentando nesta tarde diz o seguinte:

Art. 2º - Será permitido o desligamento dos aparelhos que mantêm alguns dos sinais vitais do paciente, caso seja constatada sua morte cerebral, desde que haja manifestação da vontade deste.

§ 1º - A manifestação de vontade do paciente deve ser expressa e obedecerá às normas aplicáveis às manifestações de última vontade.

§ 2º - A constatação da morte cerebral deverá ser firmada por junta médica, formada por, no mínimo, 3 (três) profissionais habilitados, sendo que pelo menos um deles deterá o título de especialista em neurologia ou seu equivalente.

Art 3º - Será permitido o desligamento dos aparelhos que mantêm alguns dos sinais vitais do paciente, caso seja constatada a sua morte cerebral, desde que haja prévia e expressa autorização de seus familiares

§ 1º - Para efeito desta lei, considera-se familiares o cônjuge, descendentes, ascendentes e os colaterais, consangüíneos ou não, até o 3º grau.

Sr. Presidente, Srs. Senadores, aperfeiçoamos este projeto, tentando abranger várias situações.

O que me faz apresentar um projeto dessa natureza, com o qual já venho lutando desde a Câmara dos Deputados, é o simples fato de respeito à vida. Por que não? O que é a vida? Pergunto-me e tenho me questionado sobre o que é a vida. A vida é o gozo do pleno exercício do prazer, do trabalho, do lazer, com as faculdades mentais em plena atividade.

Então, Sr. Presidente, queremos fazer um apelo à Nação; queremos fazer um apelo aos nobres pares, para que analisem com mais profundidade essa questão. É verdade que a religiosidade tem posições que prevalecem muito, mas há um episódio que me trouxe a apresentar esse projeto de lei, Sr. Presidente.

Certa vez fui a um hospital, fazer uma visita a um amigo doente. Ele fora atropelado e estava tetraplégico, tendo passado praticamente seis meses no leito. Os parentes o haviam abandonado. Ele só movimentava os olhos, mas estava lúcido e falava; as costas estavam cheias de ferida. Comoveram-me muito as palavras que ele disse: "Gilvam, o pior é que nem tenho como estancar esse sofrimento". Ele não tinha como fazê-lo. Vi naquele homem um profundo sofrimento.

Sr. Presidente, imagine um homem com AIDS, em fase terminal, de dor profunda. Há casos de câncer cuja dor não é aliviada sequer por poderosos remédios. A morte é inevitável. Os recursos que a medicina tem já não resolvem. Como pode a própria sociedade dizer àquele moribundo, abandonado, na profunda dor e solidão que seus dias, inevitavelmente, estão marcados? A hipocrisia de dizer não deve-se ao karma? Ele está pagando pecado? Ele tem que agüentar até o último dia porque existe um planejamento e um livro em que está escrito que esse é o seu destino?

Ora, Sr. Presidente, nobres Srs. Senadores, esses questionamentos que tenho feito envolvem o mais alto grau de fraternidade humana. Eu, Sr. Presidente, como todos nós, estou sujeito às fatalidades e gostaria de ter esse direito garantido; eu não gostaria de ser algemado, de ser tolhido ou impossibilitado de tomar uma decisão. Neste projeto, a intenção não é voltada apenas aos casos de se desligarem os aparelhos; nossa intenção é muito mais abrangente: é o direito ao livre arbítrio, o direito à cidadania. Se perdi meu referencial de prazer, meu sentido de vida; se a vida para mim deixou de ser, cabe a mim decidir e a ninguém mais. O juízo de valores fica a cargo da própria cultura e do que se aprende na sociedade, seja no dia a dia, na religião ou nos contatos que temos.

Sr. Presidente, o Brasil tem milhares de homens em profunda dor. Os hospitais de câncer estão liquidados. Já vi muito sofrimento.

O Sr. Ney Suassuna - Permite-me V. Exª um aparte?

O SR. GILVAM BORGES - Concedo o aparte ao nobre Senador Ney Suassuna.

O Sr. Ney Suassuna - Senador Gilvam Borges, estou ouvindo o discurso de V. Exª. Sou um homem extremamente católico, religioso, mas acredito ser falta de piedade, quando não há mais recursos e soluções, prolongar-se a vida artificialmente. Tive um caso em família, quando minha própria mãe passou 11 meses em sofrimento, ligada à máquina e sem solução. Isso é falta de piedade. Temos que pensar muito seriamente sobre essa situação e temos que tomar uma decisão de coragem, mas penso que, artificialmente, não se deve prolongar o sofrimento de um ser humano.

O SR. GILVAM BORGES - Agradeço o aparte de V. Exª.

Passo a ler, Sr. Presidente, Srs. Senadores, a justificação do projeto:

Versando o tema de permanente atualidade e constante controvérsia, a presente proposição visa à discussão em profundidade do problema da morte voluntária sem dor, que se não é feliz como a dos santos e beatos figura o mínimo de conforto que se pode dar ao condenado, a esse desenlace, mitigando a derradeira agonia.

Desde a ementa, procuramos emprestar maior clareza ao projeto, para evitar distorções num tema de tal magnitude. O problema do direito à morte sem dor não parece insolúvel, atualmente, diante dos progressos prodigiosos da medicina, que dispõe dos mais variados processos técnicos para sua caracterização, e as crescentes perquirições científicas que podem levar a prognósticos que parecem superar os limites da falibilidade humana.

O direito à vida como prerrogativa individual cunha uma medalha que tem no seu reverso a figura do livre arbítrio, reconhecido pelos crentes como um atributo divino e pelos céticos como fundamento e síntese de todas as prerrogativas essenciais da pessoas humana.

Nas mais antigas civilizações, era esse direito assegurado acima de qualquer prerrogativa social, nas codificações dos povos ou no Direito consuetudinário, expresso o preceito no decálogo mosaico, na lei romana das Doze Tábuas e no multimilenar Código de Hamurabi.

Não nos parece que o direito à vida, simplesmente citado sem definição no art. 5º, caput, da Constituição em vigor, implique negar ao homem, no gozo real de seu arbítrio, o direito de morrer, quando se encontre sofrendo, numa vida vegetativa, desmoralizado, envelhecido pelo sofrimento, presa da dor incurável e veemente.

Esse direito de morrer tem-se expressado no suicídio e na eutanásia, como em atos heróicos e riscos assumidos.

Os gregos tanto admitiam a eutanásia por decisão pessoal como prescreviam a pena de morte nos crimes ideológicos. E, assim, Sócrates foi condenado a beber a cicuta, dando um belo exemplo de estoicismo ao morrer, conversando com os seus discípulos.

Ainda hoje, o suicídio, mesmo frustrado, resta impune, embora punível, apenado o induzimento à morte.

Restam as duas figuras como tema milenar, discussão dos doutos, principalmente os juristas.

Quanto à eutanásia, é convidada ao debate a participação dos médicos, porque sua admissão possível exigirá a presença do especialista em neurologia, em doenças terminais, principalmente a partir do crescente progresso da medicina no prolongamento da vida das doenças incuráveis, num cruel artificiosismo clínico que apenas prolonga a dor, a inconsciência e o sofrimento dos familiares.

Digladiam-se as duas correntes, enquanto os representantes de várias confissões religiosas interferem para que a moral judaico-cristã continue a impor, no campo do direito positivo, o domínio dos seus dogmas.

Defende-se a eutanásia, quando quem a pede quer fugir a uma vida penosa, sem qualquer gratificação, impelido, quem executa essa última vontade, por um impulso piedoso ou altruístico.

Quando o Código Penal uruguaio, de 1935, incluiu a permissão à eutanásia, o jurista Garcia Pinto exprobou os legisladores, dizendo que a verdadeira piedade nada tem a ver com a "lástima eutanásica", para acusar seus promotores de buscar libertar-se, egoisticamente, do espetáculo da dor alheia, eliminando o doente.

O nosso Nélson Hungria também assinalava que, na eutanásia, havia uma conjunção do egoísmo dos que ficam com o desespero dos que partem,... "e o homicídio do consciente são fatos antijurídicos, pois o homem não pertence somente a si próprio, senão também ao meio social. Há um interesse social na vida de cada homem".

Tem razão o ilustre jurista, mas a conclusão desse interesse social na vida do homem válido à sociedade não atinge a proteção indesejável do Estado ao que se julga no direito de morrer.

Se por uma dor moral insuportável ou pelo tedium vitae invencível quer o homem alienar-se da existência, que exerça o seu direito de morrer, diante das agruras insuportáveis de uma vida vegetativa ou crescentemente dolorosa, incurável o sofrimento.

Argumenta Nélson Hungria que, mesmo se limitasse a eutanásia aos casos de enfermos desenganados, portanto vidas socialmente inúteis, a incurabilidade não é um critério inexorável da ciência médica, variando no tempo e no espaço. E, por vezes, os médicos anunciam o "último suspiro" de um agonizante, de vela na mão, que se restabelece.

Nélson Hungria escreveu isso em 1946, há quase meio século.

Autor do Código Penal, encomendado pela ditadura de Getúlio Vargas, também opôs à tese do in dubio pro reo a do in dubio pro societate.

Era no tempo em que o nazismo, o fascismo e o stalinismo haviam dado o mínimo valor à vida e à liberdade humanas, quando Stalin fuzilava, Hitler queimava e Mussolini levava à prisão perpétua seus concidadãos, até sob a desculpa de não pertencerem à raça ariana.

Hungria achava que o Estado tem o direito de matar, em caso de guerra externa. Seu Código Penal permite o aborto honoris causa e evita a morte da parturiente, chamado necessário. E, como todos os códigos penais do mundo civilizado, permite a execução do semelhante em legítima defesa, de terceiros ou da propriedade.

Será que a propriedade privada é um bem que se possa justificar moralmente como superior à vida?

A legislação vigente no Brasil permite penas de mais de cem anos, quando há cumulativamente delituosa. Raríssimos os que vivem mais de cem anos para cumpri-las. Trata-se de um eufemismo: não é pena capital, mas é a condenação da morte em vida.

Também praticamente se consagra, no direito não escrito dos países civilizados, que "crime de multidão não tem sujeito ativo". Assim, ocorrem cenas de linchamentos no Brasil e não se sabe da condenação de um linchador por homicídio caracterizado.

Autores como Nélson Hungria e Garcia Pinto, que consideram desnecessária a eutanásia, citando a opinião de grandes médicos, não conseguem provar a injuridicidade da sua adoção.

Reconhecemos aos médicos a palavra final sobre a inutilidade dos esforços científicos para reter a vida de uma pessoa em que não funcionam o sistema nervoso central, inapelavelmente comprometidas as funções pulmonares, renais e cardíacas, como nos casos de metástase de câncer, de AIDS ou esclerose cerebral senescente.

Dizia Miguel Couto, o príncipe da medicina clínica brasileira, no início deste século: "Não há doença, há doentes".

Assim sendo, não há regras sem exceção para decidir-se sobra a possibilidade de recuperação de um enfermo terminal, sendo infinitamente mais presumível a sua morte.

Também devemos legislar para as exceções, não considerando o apego à vida maior do que o desejo de libertar-se da dor. Não é difícil concluir, seguindo o pensamento de Miguel Couto, que "há doentes" desancorados da última esperança de vida, implorando a "morte piedosa", a mão penitente de um amigo que o liberte do suplício abominável de viver como um vegetal.

De outro lado, é de ser punido o falso piedoso, que, falseando a vontade ou sem conhecimento do doente, ministra-lhe o cálice amargo da libertação.

Muito diverso dele é o agente eutanásico, na busca de um processo menos doloroso para atender ao moribundo que lhe implora a libertação do sofrimento.

Ele está plenamente imbuído de que não comete um delito, mas pratica um dever social.

Centenas de casos ocorrem, semelhantes, a cada ano no Brasil, que viu, recentemente estarrecido, a mãe de um ex-Presidente da República condenada ao exercício das funções biológicas primárias apenas, totalmente descerebrada até a última parada cardíaca.

Não é crível que um diagnóstico possa, piedosamente, condenar à morte uma criança supostamente inviável e não um adulto que, consciente da própria incurabilidade e envelhecido pelo sofrimento, implora que lhe tirem um bem, para outros supremo, que considera imprestável: a vida.

Não se pode compreender o livre arbítrio, defendido por todas as sociedades democráticas, sofra limitações, a não ser quando produza mal a outrem ou contrarie a convivência social, o que ocorre com o moribundo, implorando a última saída.

Sr. Presidente, Srs. Senadores, essa é uma matéria apaixonante. Devemos ter consciência de que o nosso caminho natural é a morte. Como os religiosos dizem que há prosseguimento - mutações, encarnações -, questiono e apelo aos religiosos do meu País no sentido de que, se está tudo certo, programado, haja complacência, humanidade, amor, fraternidade, respeito, porque todos nós, sem exceção, poderemos estar em situações desesperadoras, dolorosas, nas quais nem o ópio, nem as palavras do conforto moral, os dogmas e valores religiosos nos sustentarão.

Peço aos meus nobres Pares, Senadores, que, como eu, estão mais próximos do fim - somos de 1936 para frente -, apoio a essa proposta. Muitos companheiros brevemente estarão deixando esse nosso convívio com certeza absoluta. Se estiverem no vexame, se estiverem na desgraça, se perderem o referencial de prazer e da execução do cotidiano, peço que se lhes dê morte digna, morte justa. E que todos possamos passar desta, se houver a outra, com dignidade. Morte com dignidade e sem dor!


Este texto não substitui o publicado no DSF de 22/05/1996 - Página 8420