Discurso no Senado Federal

LANÇAMENTO DO LIVRO 'JOÃO CALMON O BATALHADOR DA EDUCAÇÃO'. CONSIDERAÇÕES ACERCA DA ATUAÇÃO DO MINISTRO ANTONIO KANDIR NO GOVERNO FERNANDO COLLOR.

Autor
José Fogaça (PMDB - Movimento Democrático Brasileiro/RS)
Nome completo: José Alberto Fogaça de Medeiros
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM. GOVERNO FEDERAL, ATUAÇÃO.:
  • LANÇAMENTO DO LIVRO 'JOÃO CALMON O BATALHADOR DA EDUCAÇÃO'. CONSIDERAÇÕES ACERCA DA ATUAÇÃO DO MINISTRO ANTONIO KANDIR NO GOVERNO FERNANDO COLLOR.
Aparteantes
Lauro Campos.
Publicação
Publicação no DSF de 08/06/1996 - Página 9559
Assunto
Outros > HOMENAGEM. GOVERNO FEDERAL, ATUAÇÃO.
Indexação
  • COMENTARIO, LANÇAMENTO, LIVRO, AUTORIA, JOÃO CALMON, SENADOR, REPRODUÇÃO, ATUAÇÃO, DEFESA, EDUCAÇÃO, PAIS.
  • DEFESA, ANTONIO KANDIR, MINISTRO DE ESTADO, MINISTERIO DO PLANEJAMENTO E ORÇAMENTO (MPO), EPOCA, GESTÃO, GOVERNO, FERNANDO COLLOR DE MELLO, EX PRESIDENTE DA REPUBLICA, ACUSADO, AUTORIA, CONFISCO, CADERNETA DE POUPANÇA.

O SR. JOSÉ FOGAÇA (PMDB-RS. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Srª Presidente Emilia Fernandes, Srªs e Srs. Senadores, trago nesta manhã mais um ponto de reflexão. Mas não gostaria de abordar o assunto que me traz à tribuna sem antes fazer o registro do orgulho e satisfação que temos de vê-la, Senadora Emilia Fernandes, presidindo a sessão nesta manhã, não só pelo fato de termos uma mulher, mas também, para nós gaúchos, o fato de termos um mulher gaúcha na Presidência do Senado. Não poderia deixar de fazer esse registro.

Quero também registrar um outro fato da maior importância. Encontra-se no plenário do Senado uma das figuras mais queridas e atuantes que o Senado conheceu nos últimos anos: o Senador João Calmon. S. Exª, na última quarta-feira, foi objeto de uma homenagem. Lançou um livro que, na verdade, é a tradução da sua vida, cujo título é extremamente ilustrativo da sua personalidade como homem público. João Calmon, o Batalhador da Educação é uma reprodução de suas lutas, o que empreendeu pela causa da educação no Brasil. Faço o registro e a minha homenagem ao Senador João Calmon, aqui presente. Que V. Exª esteja sempre presente para nos lembrar, a cada dia, o que fez e do quão pouco estamos fazendo!

Srª Presidente Emilia Fernandes, Srªs e Srs. Senadores, gostaria de fazer, nesta manhã, uma reflexão sobre um outro assunto. O Ministro Antonio Kandir, até algum tempo atrás, era apenas um técnico de formação apartidária, ou seja, um homem sem uma atuação partidária mais explícita, mais intensa, e, portanto, alguém que vinha à vida pública com certa isenção. É evidente que hoje essa isenção não existe, porque é membro de um Partido, foi eleito Deputado Federal, tem um parti pris, tem uma opinião, uma inserção definida no processo político.

Esse tipo de inserção, na medida em que S. Exª é do Governo, na medida em que é do PSDB, na medida em que é ligado ao Presidente Fernando Henrique Cardoso e agora guindado ao cargo de Ministro do Planejamento, traz, claro, uma reação normal e, portanto, inevitável de críticas ao seu nome. Críticas que até então não eram lembradas mas que o processo político determina - como eu disse - inapelavelmente. Em outras palavras, na medida em que alguém vai para a berlinda, para a vitrine, na medida em que tem o cargo de Ministro do Planejamento, principalmente substituindo um Ministro poderoso como foi José Serra, isso, de maneira inevitável, atrai focos de luz e, ao mesmo tempo, como um irmão gêmeo, o foco da crítica.

Entre as críticas mais repetidas ao Ministro Antonio Kandir, está uma à qual quero fazer referência. Não posso deixar de fazer referência a isto, até em nome de uma certa memória política que creio ser importante resgatar a cada momento. Trata-se do confisco da poupança, que, a cada momento, se deseja associar ao Ministro Antonio Kandir.

Não venho a esta tribuna para fazer um julgamento do Ministro Antonio Kandir, porque não podemos fazê-lo. S. Exª não sentou sequer na cadeira ou ocupou a sua escrivaninha de Ministro do Planejamento. Logo, o Ministro do Planejamento Antonio Kandir não pode ser criticado nem julgado. O homem público Antonio Kandir, o ex-Secretário de Política Econômica do Governo Collor, sim, esse tem sido objeto de uma atenção especial por parte de um determinado viés de discurso oposicionista.

O Governo Collor fez muito mal ao Brasil. E não quero aqui só referir essa coisa primária, grosseira e imediatamente perceptível da utilização nefasta e corrupta do dinheiro público ou da corrupção das estruturas de poder. Não quero me referir aqui a essa coisa emblemática do Sr. PC Farias, que isso seria um discurso repetitivo, pobre. Já de tão repetido, de tantas vezes feito, possivelmente não valeria usar o tempo do Senado e dos Srs. Senadores para isso.

O Governo Collor fez mal ao Brasil por uma razão: baseava-se numa falsa premissa, na mentira ideológica de que é possível que um homem, sem nenhuma base partidária, ou seja, não respaldado em nenhuma forma de organização popular, não respaldado em nenhuma tradição ou concepção político-ideológica da sociedade brasileira; alguém que viesse e se apresentasse apenas com a face de um jovem de 41 anos, fisicamente vigoroso, de voz firme, tonitruante, com um discurso político superficial, com um carisma fabricado pelo marketing, mas alguém que, na sua fragilidade político-ideológica, se sustentasse em um discurso populista de direita, perpassando o seu discurso sobretudo uma enorme indefinição ideológica; ou seja, a crença de que o exercício do Governo, o exercício da Presidência, o exercício do poder presidencialista pode ser feito por um homem só, sem base, sem povo, sem conteúdo, sem sustentação política na organização popular, numa forma sequer mínima de organização popular, sem uma forma de organização programática, ideológica, política mínima por trás de si; que isso fosse viável, ou seja, que esse homem, nessas condições, poderia governar o Brasil. Não! Mentira! Collor não pôde e ninguém pode.

Não se governa o Brasil com essa superficialidade, com essa mentira, com essa fabricação de marketing, com essa sofisticada mentira que é a construção de uma imagem não- verdadeira de alguém que poderia, em nome de uma população informe, não definida, não ideologicamente organizada, salvar o Brasil. Portanto, eu jamais aceitaria participar de um governo assim. Então, se há uma crítica a fazer ao Sr. Antônio Kandir foi não ter ele percebido, ou, pelo menos, não ter tido o processo crítico suficiente para entender que tudo aquilo era falso e redundaria num espetacular fracasso - como redundou.

No entanto, se faço esta crítica ao Sr. Antônio Kandir, não posso criticá-lo pelo confisco da poupança. Não posso e acho que as esquerdas brasileiras não podem, a não ser que não haja memória. O confisco da poupança foi uma violência, foi um erro, foi uma tragédia, mas o autor dessa tese não foi o Sr. Antônio Kandir; os autores dessa tese não foram os economistas do Governo Collor, nem mesmo a Srª Zélia Cardoso de Mello.

Os grandes autores da tese do confisco da poupança, no Brasil, se há respeito à memória e à verdade, foram as esquerdas brasileiras, às quais me integrei viva e atuantemente nos anos 70 e 80. E participei dos debates com os economistas. Os economistas que fizeram a nossa cabeça, a nós, políticos eleitos, defendiam com veemência a tese do confisco da poupança.

O Sr. Lauro Campos - V. Exª me permite um aparte?

O SR. JOSÉ FOGAÇA - Se V. Exª me permitir, vou fazer uma demonstração do que estou dizendo. É evidente que se V. Exª ainda não ouviu a demonstração, possivelmente não poderá fazer a avaliação necessária e importante para a sua intervenção.

O Sr. Lauro Campos - Mas talvez a minha contribuição possa ajudar nessa sua demonstração.

O SR. JOSÉ FOGAÇA - Bem, se V. Exª deseja fazer o aparte sem que eu tenha feito a exposição, com todo prazer concedo-lhe o aparte.

O Sr. Lauro Campos - Eu gostaria. Primeiro, para dizer que não tenho nada a justificar. Todos aqueles que me conhecem sabem que critiquei todos os planos de enxugamento, de redução dos gastos públicos, de política cambial, de arrocho salarial que foram articulados a partir do dia 28 de fevereiro de 1986. Mas, para ser breve, eu gostaria de esclarecer que o Professor Kandir, o Dr. Kandir, o Ministro Kandir, o Deputado Kandir é tido e considerado ou já foi chamado de "a indústria de produção de idéias". É essa fertilidade que encanta aqueles que o cercam. Não tenho a menor intimidade com ele, nunca tive e não o conheço.

O SR. JOSÉ FOGAÇA - Como eu não tenho, Senador Lauro Campos.

O Sr. Lauro Campos - Pois bem, essa idéia não deve ser atribuída, me parece, à esquerda brasileira. Eu sou...

O SR. JOSÉ FOGAÇA - Bem, V. Exª está entrando, em seu aparte, naquilo que é preciso demonstrar. Se V. Exª me aparteia para negar o que eu ainda não demonstrei, parece-me...

O Sr. Lauro Campos - Se V. Exª não quer o aparte...

O SR. JOSÉ FOGAÇA - Eu quero o aparte. Mas eu pediria que V. Exª me aparteasse depois que eu fizesse a exposição. V. Exª me disse que daria uma contribuição, independentemente da minha demonstração. Mas V. Exª está tentando me contestar sem ter me ouvido. Aí fico reduzido à seguinte opção, ao seguinte dilema: dou-lhe o aparte, por cortesia, para que V. Exª, antes de eu falar, tente desmontar o meu discurso; não lhe dou o aparte agora, mas depois, para que V. Exª, baseado na minha argumentação, contribua melhor, porque a sua contribuição será melhor se for após o aparte.

De qualquer maneira, dou-lhe o aparte. V. Exª falou 40 minutos antes de mim e agora dou o aparte a V. Exª.

O Sr. Lauro Campos - Falei regimentalmente por 40 minutos. Estou pedindo um aparte regimental também.

O SR. JOSÉ FOGAÇA - V. Exª tem o aparte.

O Sr. Lauro Campos - Não estou querendo desmontar o seu discurso, mas apenas contribuir, com uma informação. Se V. Exª me permite, é só para dizer que no dia 21 de junho de 1948, o Sr. Karl Deutsch, um monetarista, aplicou um plano de confisco igualzinho ao praticado aqui, no Governo Collor. Inclusive, a quantia deixada nas poupanças e nos depósitos bancários foi aproximadamente a mesma: lá foram deixados 40 marcos para cada alemão; aqui, foram deixadas 50 unidades monetárias para cada brasileiro. A origem, então, é monetarista; o pai chama-se Karl Wolfgang Deutsch; a data de aplicação, 21 de junho de 1948. O Deutsch monetarista não era de esquerda.

O SR. JOSÉ FOGAÇA - Muito obrigado, Senador Lauro Campos. A erudição e cultura de V. Exª é algo que não pode ser omitido nem excluído. Em qualquer pronunciamento essa erudição e essa contribuição em muito ajudam.

O fato de termos, no após-guerra, em um governo democrata-cristão da Alemanha, esse tipo de projeto econômico não elimina o fato de que a esquerda brasileira, nos anos 70 e 80, principalmente após 82, quando houve a crise da dívida externa brasileira, elaborou, sustentou e defendeu um discurso - e estão aí os documentos, os registros, e só por uma questão de respeito pessoal não menciono os nomes, porque isso implicaria, neste momento e nesta hora, que ficássemos fazendo tentativas de recuperar coisas do passado, que não têm sentido e nem lógica para o momento presente.

O que quero recuperar do passado não são as responsabilidades, os defeitos, a participação deste ou daquele nominalmente. O que quero recuperar do passado é o fato de que a esquerda brasileira abraçou, com entusiasmo e com vigor, a idéia de que confiscar poupança era algo necessário ao Brasil. Isso ninguém me disse. Participei dos debates - eu estava neste Congresso em 1982 -, participei dos seminários promovidos pelo Dr. Ulysses Guimarães com economistas da esquerda brasileira.

Eu fazia algumas perguntas tímidas, como um Deputado que iniciava, porque eu tinha algumas dúvidas sobre aquela tese. Mas a tese era a de que o overnight, que era a grande ciranda financeira daquele momento, significava um enriquecimento enorme e descontrolado dos setores improdutivos, dos setores financeiros do País; que determinava uma distribuição perversa da renda e, sobretudo, que levava a uma concentração de riqueza, de poder nas mãos do setor financeiro.

Do ponto de vista do modelo político, economistas de esquerda diziam que a preservação desse tipo de modelo financeiro significava, através de uma rolagem diária do capital e de uma desproteção da renda oriunda do trabalho, uma guerra do capital contra o trabalho, uma guerra da produção, da especulação contra a produção, que era produto de uma visão capitalista escorchante e selvagem; que era uma forma de apropriação do capital produtivo.

Portanto, não só havia uma crítica severa ao modelo financeiro estabelecido no Brasil pela política econômica do Sr. Delfim Netto, pela politica econômico-financeira do governo militar, como havia a transposição disso para uma concepção dialética marxista de que isso era, sobretudo, o cerne de uma luta entre o capital e o trabalho e de que aí estava notoriamente uma questão básica da luta de classes.

Esse discurso eu ouvi, foi repetido e transformou-se em pronunciamentos reproduzidos no Congresso Nacional por Deputados que tiveram as suas fontes ideológicas hauridas dos discursos da esquerda brasileira.

Erro? Acerto? Não creio que esse é o tipo de levantamento ou análise que deva ser feita agora, nem sequer estou jogando pedras nesses erros cometidos, até por uma razão: porque reproduzi essas palavras com a veemência e a convicção que me foi produzida, ou que recebi, ou que percebi e que assimilei nos debates.

De modo que eu seria alguém dando um tiro no próprio pé se eu viesse a dizer aqui que quem fez isso, quem agiu assim, quem sustentou esse discurso era idiota. Não! Fui um deles.

No entanto, não é possível esconder determinados fatos. À época do confisco da poupança no Governo Collor, o então Deputado César Maia - aliás, quero dizer que o respeito muito; é um homem inteligentíssimo, é um homem da melhor qualidade do ponto de vista da sua formação intelectual e não tenho dele a visão que a mídia faz em torno da sua figura como Prefeito do Rio de Janeiro -, chegou a apoiar aquela proposta, sustentada pela Ministra Zélia Cardoso de Mello, assim como outros economistas com formação na esquerda o fizeram, principalmente na área trabalhista e pertencentes à socialdemocracia, quando chegaram a dizer que aquela atitude poderia ser uma saída.

Srª Presidente Emilia Fernandes, Srs. Senadores, havia um entusiasmo enorme com relação a esse discurso. E me recordo perfeitamente de um episódio ocorrido quando se elaborou o chamado Programa Brasil, do então Senador Teotonio Vilela, o pai - figura respeitabilíssima e inesquecível com a qual a vida me deu condições de conviver no Senado e no Congresso Nacional, além de Afonso Arinos, João Calmon, Pompeu de Souza e outros. Lembro-me que este Programa foi elaborado para se contrapor ao governo militar de então e era levado pelo País através da figura honorável do Senador Teotonio Vilela.

S. Exª estava errado? Se estava, eu também estava, porque sustentei o seu discurso. E uma das propostas do Programa Brasil era exatamente a transformação dos títulos públicos federais em bônus de guerra, embora o nome não fosse esse. Ou seja, o confisco da poupança, porque as contas remuneradas se lastreavam em títulos públicos federais.

Confiscar os títulos públicos significava confiscar a poupança nacional. E aquilo era, na verdade, uma guerra dos trabalhadores contra o capital escorchante, selvagem, da exploração desumana de quem produz por quem especula. É, portanto, o único ponto - vejam bem, é isso a que quero me referir - de toda a vida do Sr. Antônio Kandir que não posso criticar, e ninguém da esquerda brasileira pode fazê-lo. Não é ético, não é sadio, do ponto de vista moral, e é mesquinho do ponto de vista político.

Ficar chamando a atenção para o fato de que ele foi de um Governo como o de Collor, que tanto mal fez ao Brasil, é uma coisa; agora, acusá-lo de ter feito parte naquele processo de confisco da poupança é, no mínimo, uma hipocrisia. É hipócrita aquele que diz que está errado, que acusa quem fez aquilo que sempre defendia.

Quem sempre defendeu o confisco dos títulos públicos e de todo o lastreamento da poupança e da ciranda financeira pode criticar absolutamente tudo no Sr. Antônio Kandir, inclusive essa incapacidade de perceber o quão frágil e deformada era a estrutura que sustentava o Governo Collor. Mas, quanto ao confisco da poupança, desculpem-me, não podem, porque pregaram esse entendimento, defenderam-no e achavam que era uma guerra do trabalho e da produção contra o capital escorchante e improdutivo.

Não tenho nenhuma dúvida, hoje, de que isso foi profundamente equivocado. Mas quero dizer que, antes de criticar o Sr. Antônio Kandir, tenho que fazer esta autocrítica, para dizer que tanto ele quanto todos nós estávamos profundamente equivocados. E se tudo o que o Sr. Fernando Collor fez merece crítica e desaprovação, esse também é o único ponto do seu programa de governo que as esquerdas sempre pregavam e apoiavam, e que ele, seguramente, retirou dos programas sustentados pela esquerda brasileira.

Timidamente, em meio àqueles debates, lembro-me que um Deputado Federal perguntou: - "Mas, ao confiscar essa chamada dívida mobiliária, que lastreia os fundos financeiros dos bancos, não estamos fazendo aí alguma coisa que venha a atingir duramente a classe média brasileira?" Porque os títulos nada mais são do que empréstimos dos bancos ao Governo: os bancos dão o dinheiro e recebem títulos.

Mas onde os bancos vão buscar esse dinheiro, para esse giro dos títulos? Os bancos vão buscá-lo na poupança pública, nas contas remuneradas, nos fundos de investimento, enfim, no dinheiro que é não só dos grandes capitalistas nacionais, mas desse amplo espectro da classe média brasileira que, como todos nós, tinha a sua conta remunerada, tinha a sua poupança, tinha os seus fundos de investimento.

Portanto, isso atingia, disseminadamente, ramificadamente, toda a sociedade brasileira. E um Deputado Federal fez esta pergunta: - "Mas não vamos, por acaso, atingir uma parcela significativa da classe média que pode se voltar contra nós, por termos feito isso?" E alguém disse: - "Não! Será uma parcela apenas daqueles que sobrevivem da especulação e da ciranda financeira. Os pequenos assalariados, os setores de baixa renda não têm conta remunerada. Essa população marginalizada que trabalha, que recebe salários baixos, não tem conta remunerada, não tem proteção da especulação financeira. Logo, estaremos fazendo justiça!"

E esse foi um dos programas básicos da esquerda brasileira.

O Economista e Professor Lauro Campos nada tem com isso, porque estou me referindo àqueles economistas que traziam para nós, então Parlamentares do chamado "Grupo Autêntico", a linguagem e o discurso que reproduzíamos na tribuna do Congresso Nacional.

Registro aqui que tenho a maior isenção em criticar o Sr. Antônio Kandir a cada passo, a cada erro que cometer. Só não vou permitir que se ponha em cima dele, como se fosse um fardo só seu, aquilo que é um fardo de todos nós. Ou seja, quem pregou, quem defendeu o confisco da poupança foi a Oposição brasileira na primeira parte da década de 80, e o fez com uma veemência e com uma convicção que me empolgou e que empolgou, inclusive, um homem do talante, da dimensão pública de um Teotonio Vilela, cuja memória tem que ser permanentemente reverenciada pelo País.

O Sr. Lauro Campos - Permite-me V. Exª um aparte?

O SR. JOSÉ FOGAÇA - Mais uma vez, concedo um aparte a V. Exª, com muita honra e com muito prazer.

O Sr. Lauro Campos - Eu só gostaria de esclarecer que o termo empregado por V. Exª "a esquerda brasileira" é um tanto impreciso, generalizante.

O SR. JOSÉ FOGAÇA - Isso é verdade, reconheço que é verdade. Entre as esquerdas, havia muitas esquerdas, e nuanças muito diferenciadas.

O Sr. Lauro Campos - Apenas para esclarecer que, do meu ponto de vista, por exemplo - e sou marxista, li O Capital quatorze vezes, fora todas as outras obras de Marx, a quem considero o maior filósofo, o maior pensador que já houve na história da humanidade -, o que acontecia era o seguinte: a crise era de sobreacumulação. Quando isto ocorre, o capital foi acumulado velozmente durante muito tempo, a taxa de lucro cai; assim, o dinheiro vai para a especulação ou vai para a Bolsa - aí os títulos da Bolsa sobem. Então, ou uma coisa ou outra acontece. E aqui, no Brasil, foi por especulação. Quer dizer, o lucro passou a ser lucro não-operacional, lucro obtido na especulação. O problema não estava lá nos 75%, por exemplo, que os banqueiros levaram em 1989 como pagamento da dívida pública brasileira - 75% das receitas do Governo. Ficou um Governo de 25%. Por quê? Porque o problema estava na produção, e na produção não se tem coragem de mexer - na estrutura da produção e da propriedade. E nunca concordei com isso - para mim, monetarismo é coisa de superfície -, nunca concordei que medidas monetárias pudessem simplesmente superar os nossos problemas. Reconheço, embora nunca tenha apoiado, que naquele momento - o que é racional num momento se torna irracional em outro - o capitalismo brasileiro, que criou essa sobreacumulação, essa especulação e essa ciranda financeira, do qual os próprios capitalistas e comerciantes se beneficiaram, porque eram portadores de títulos da dívida pública, não nos tenha deixado com opções muito amplas. Prefiro a crítica ao sistema à crítica às pessoas, que são meros portadores das relações sociais em que estão inseridas. Muito obrigado.

O SR. JOSÉ FOGAÇA - Obrigado, Professor Lauro Campos. Eu não poderia concordar mais com V. Exª. Acho que, de fato, cada momento tem a sua racionalidade, a sua circunstância e as suas condições.

V. Exª citou Maurice Godelier, que também é um autor que conheço e que tem essa visão de que, principalmente em economia, o que vale para um momento não vale para outro. E foi exatamente isso que eu disse ao Presidente Itamar Franco. Na época eu era Presidente Nacional do PMDB, uma Presidência que tive por um tempo muito curto e fulminante, mas que procurei exercê-la com dignidade. Às vezes eu era chamado ao Palácio, como Presidente Nacional do Partido, e lembro-me que, na época, o Senador Itamar Franco, então Presidente da República, fez um pronunciamento dizendo que queria que o Brasil voltasse ao New Deal, de Roosevelt, que era crescer com base nos investimentos públicos. Não citei Godelier, mas lhe disse que aquilo que talvez tenha valido para os Estados Unidos, para o tipo de estado vigente nos anos 30, não se aplica ao estado dos anos 90. Ou seja, a proliferação do dinheiro, da moeda, num período em que o Estado ainda é enxuto, pequeno, não é só algo bom, sadio, mas necessário. E John Maynard Keynes estava certo nisso, embora na época fosse tachado como alguém que vinha a desviar o rumo da revolução, do processo revolucionário, que era a troca evidente de uma classe dominante por outra; embora a esquerda ortodoxa dissesse que o que vinha a fazer Keynes era, simplesmente, salvar o capitalismo.

A verdade é que a esquerda brasileira e a internacional sempre se incorporaram nessa visão de que o investimento do Estado é a base de alavancagem da economia, de aceleração da produção, da geração de emprego. Isso foi verdade nos anos 30, nos anos 40, nos anos 50, nos anos 60, nos anos 70, e fracasso e fraude nos anos 80 e 90.

Esse Estado, que era um mecanismo de distribuição de renda, passou a ser o contrário: um mecanismo concentrador de renda. O Estado brasileiro, nos anos 80, diminuiu a renda dos mais pobres e aumentou a renda dos mais ricos, por um processo inflacionário, no qual quem tinha capital preservava-o na ciranda financeira e quem vivia de baixo salário via-o esmilingüir-se no dia-a-dia da perda do valor da moeda.

V. Exª tem razão, Senador Lauro Campos: o que vale para uma época não vale para outra. Defender agora um modelo keynesiano de economia é desconhecer que estamos no final dos anos 90 e que esse modelo de Estado se esgotou, até porque deu certo.

O Estado brasileiro foi brilhante nos anos 50, 60 e 70, mesmo no período da ditadura militar, porque investiu numa rica e moderna infra-estrutura de telecomunicações, a melhor da América Latina - o Brasil causou inveja por isso. E é preciso reconhecer que isso ocorreu durante o governo militar.

Esse mesmo Estado, no Governo Juscelino Kubitschek, era acusado de tudo. Se fôssemos reproduzir agora os jornais da época contra Juscelino - meu Deus! - talvez houvesse uma comoção nacional, porque Juscelino hoje é respeitado e o que ficou da sua imagem e da sua memória é algo extremamente positivo. Mas Juscelino aderiu ao modelo keynesiano: investiu em Furnas, em Três Marias, em Brasília, na expansão das estradas para viabilizar a indústria automobilística nacional - gastos públicos, investimentos públicos, para alavancar e acelerar o desenvolvimento da economia. Deu certo? Deu certo, sim! O Brasil e a Índia talvez tenham sido as economias mais estatizadas no Terceiro Mundo do após-guerra. O Brasil foi um país estatizado na sua economia, e isso foi extremamente positivo. Porém, como diz o Senador Lauro Campos, o que é racional numa época não é racional na outra, reproduzindo o pensamento de Godelier.

A essas alturas, não me cabe fazer nenhuma defesa do Sr. Antônio Kandir, o qual não terá aqui nenhuma defesa que não mereça; também não terá aqui nenhuma acusação ou crítica que não mereça. Nem estou aqui sequer dizendo que aquele operador do Governo Collor foi competente ou foi brilhante. Penso que não o foi, porque tudo aquilo redundou num grande fracasso. Tenho todas as críticas a fazer ao Sr. Antônio Kandir.

Mas, pelo amor de Deus, quando lembramos o pecado dos outros, é bom também batermos um pouco no peito e lembrarmos os nossos pecados, para que as coisas não fiquem passando para a opinião pública como irresponsabilidade, como discurso de político que não respeita a verdade, porque isso desmoraliza as nossas posições, o conceito do Congresso, levando, depois, ao que vemos nas pesquisas: o último lugar em credibilidade da opinião pública.

Criticar, sim, por que não? Acusar, sim, porque é necessário, quando isso faz sentido e tem fundamento na verdade. No entanto, jogar palavras ao vento, como se tivéssemos passado uma borracha no passado, apagando tudo o que aconteceu apenas há alguns anos, confesso que não me sinto bem com isso. Começa a me dar uma ansiedade de reposição da verdade, que é ao que estou satisfazendo, nesta manhã, na tribuna do Senado.

Obrigado, Srª Presidente.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 08/06/1996 - Página 9559