Discurso no Senado Federal

EXALTANDO AS IDEIAS E AS OBRAS LITERARIAS DE COMBATE A FOME DO MEDICO JOSUE DE CASTRO.

Autor
Joel de Hollanda (PFL - Partido da Frente Liberal/PE)
Nome completo: Joel de Hollanda Cordeiro
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • EXALTANDO AS IDEIAS E AS OBRAS LITERARIAS DE COMBATE A FOME DO MEDICO JOSUE DE CASTRO.
Publicação
Publicação no DSF de 25/10/1996 - Página 17653
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM, CINQUENTENARIO, LANÇAMENTO, OBRA INTELECTUAL, JOSUE DE CASTRO, MEDICO, ESCRITOR, CIENTISTA, DEFESA, COMBATE, FOME, BUSCA, JUSTIÇA SOCIAL.

O SR. JOEL DE HOLLANDA (PFL-PE. Pronuncia o seguinte discurso.) - Sr. Presidente e Srªs. e Srs. Senadores, em sua época, ele foi o brasileiro mais conhecido, admirado e respeitado em todo o mundo. Nele, vida e obra se mesclaram na mais que perfeita simbiose entre a busca do conhecimento e a aguda sensibilidade social. Autêntico cidadão do mundo, conferiu à questão da fome o embasamento científico necessário à sua superação.

Estou falando de Josué de Castro.

Médico, cientista e professor, que Recife viu nascer a 5 de setembro de 1908, foi pioneiro nos estudos científicos relativos aos problemas da alimentação.

Há cinqüenta anos Josué de Castro publicava um livro fadado a fazer história: Geografia da Fome. Traduzida em diversos idiomas, a obra representou, ao lado de Geopolítica da Fome, lançada cinco anos mais tarde, a culminância do trabalho intelectual do autor.

      "Na realidade, a fome coletiva é um fenômeno social bem mais generalizado. É um fenômeno geograficamente universal, não havendo nenhum continente que escape à sua ação nefasta. Toda a terra dos homens tem sido também a terra da fome."

Essas palavras, presentes na introdução de Geografia da Fome, cujo cinqüentenário hoje celebramos, marcam aquela que foi, muito provavelmente, a maior contribuição deixada por Josué de Castro: a lição de que a fome universal não é um fenômeno natural; ao contrário, seus estudos mostram-na fruto da ação humana, uma perversa realidade socialmente produzida.

Alertando a consciência universal para o dramático problema da desnutrição e da miséria, Josué de Castro fez de sua vasta e profícua obra um libelo contra as injustas estruturas sociais que condenam grande parte da humanidade a uma vida de exclusão. Profético, via na tragédia da fome a ante-sala de embates violentos, advertindo: "Enquanto metade da humanidade não come, a outra metade não dorme, com medo da que não come."

Graduado em Medicina ainda muito jovem, poucos anos depois concluía seu curso de Filosofia. Sinalizando o caminho pessoal e profissional que iria trilhar até o fim, desde o início de sua carreira, Castro lançou o "olhar armado" sobre as injustiças sociais, buscando fazer do conhecimento o meio eficaz para superá-las.

A rigor, tudo o que Josué de Castro pesquisou, produziu e publicou integra um mesmo contexto, de total e absoluta coerência, em que o saber mais se dissocia do fazer, ambos guiados e moldados pela busca da justiça. Assim, seu primeiro trabalho foi um inquérito sobre a alimentação de quinhentas famílias de operários recifenses, constituindo-se, como lembrou recentemente o Diário de Pernambuco, na "primeira pesquisa científica a produzir estatísticas sobre os problemas sociais do Estado. Na época, ele constatou que os trabalhadores da cidade consumiam apenas 60% das calorias necessárias para sobreviver".

Daí por diante, Sr. Presidente, Josué de Castro foi enriquecendo sua produção bibliográfica, publicando textos que, pela importância do tema, densidade do conteúdo e orientação metodológica, ganharam leitores e interlocutores em todas as partes do mundo. Aclamado internacionalmente, o autor de Geografia da Fome recebia, em 1953, em plena efervescência da Guerra Fria, o Prêmio Roosevelt, que lhe foi conferido pela Academia Americana de Ciências Políticas. No ano seguinte, em Praga, era laureado com o Prêmio Internacional da Paz.

Segundo o testemunho da historiadora Maria Yedda Linhares, apresentado em resenha publicada pela Ciência Hoje, revista de divulgação científica da SBPC, as teses e o carisma de Josué de Castro ganhavam o mundo e "suas conferências atraíam multidões entusiastas. Sua palavra brilhante e direta era acolhida com respeito e admiração". Sempre identificando a fome em nossa época como um "mal do colonialismo dos tempos modernos e efeito da abusiva exploração das riquezas por processos técnicos e econômicos devastadores", Josué de Castro não se limitava ao diagnóstico do problema e, em todas as oportunidades, expunha suas idéias de como combater a fome.

Nesse ponto, vale a pena repetir o que dele disse Rémy Montour, em 1973: "Se foi o caloroso advogado dos pobres, Castro jamais pleiteou a piedade ou o assistencialismo, e sim a justiça e uma outra ordem no mundo". Essa feliz assertiva remete-nos a algo muito presente, como elemento central e definidor, na vida de Josué de Castro: a ligação indissolúvel entre reflexão e ação.

Exemplos não faltam, Sr. Presidente, para a comprovação de que o trabalho intelectual de Castro sempre esteve voltado para a intervenção transformadora da realidade. Assim é que a instituição do salário mínimo, no Brasil, teve sua fundamentação no pioneiro estudo de 1933, no qual Josué examinava as condições de vida e trabalho de operários recifenses. Há que se lembrar, ainda, sua opção em candidatar-se à Câmara dos Deputados - tendo sido eleito para dois mandatos - como parte de uma estratégia de, pela via parlamentar, propugnar por reformas e mudanças estruturais.

Reportando-se à influência das idéias de Josué de Castro sobre decisões governamentais postas em prática no País, Maria Yedda Linhares lembra que, graças às pesquisas e à incessante doutrinação do grande cientista pernambucano, "outras iniciativas tiveram curso ao longo dos anos trinta e quarenta: a criação do Instituto de Nutrição no Rio de Janeiro, cujo ponto de partida foi o laboratório experimental por ele montado e dirigido; a instituição da merenda escolar no Ministério da Educação; a criação de restaurantes populares para os trabalhadores (SAPS)."

Foi além, no entanto, nosso autor. Com a publicação da Geografia da Fome, secundada alguns anos depois pela Geopolítica da Fome, Josué de Castro transformou-se em personalidade internacional e, como tal, requisitado para atuar em várias partes do mundo. Deve-se a ele, em grande parte, a criação da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), uma das mais importantes agências da ONU, de cujo Conselho foi presidente em sucessivos mandatos.

Plenamente integrado ao mundo em que nasceu e ao tempo em que viveu, Josué Apolônio de Castro estabeleceu, no conjunto de sua obra, um espécie de "interpretação biossocial" da realidade brasileira, sem olvidar quadros semelhantes que o mundo apresentava. A ele, inclusive, foi atribuída a expressão "subdesenvolvimento" que, com certeza, dele recebeu significativo aporte conceitual.

Em sua obra clássica, cujo cinqüentenário ora comemorado deve estimar-nos a prosseguir e a aprofundar os caminhos abertos pelo autor, Castro demonstrou a historicidade do flagelo da fome em nosso País. Para ele, a agressividade do ambiente, no início da colonização, juntou-se à cobiça e à inabilidade do "elemento colonizador, indiferente a tudo que não significasse vantagem direta e imediata para os seus planos de aventura mercantil", que se desdobrou em ciclos sucessivos de economia destrutiva.

Sua amarga - porém correta - conclusão leva-nos ao exame de nossa evolução histórica, onde se incluído o período pós-colonial: "Em última análise, esta situação de desajustamento econômico e social foi conseqüência da inaptidão do estado político para servir de poder equilibrante entre os interesses privados e o interesse público". Quanta atualidade, Sr. Presidente, num texto de cinqüenta anos!

Ao encerrar este meu pronunciamento, cujo propósito foi o de registrar a passagem das cinco décadas do lançamento do livro Geografia da Fome, homenageando a inteligência e o elevado grau de compromisso social que caracterizaram seu autor, repito o grande brasileiro, intelectual e pensador católico Alceu de Amoroso Lima, o Tristão de Athayde, ao definir, com extrema clareza, o significado da obra e do trabalho de Josué de Castro:

      "A obra clássica de Josué de Castro merece ser relida e aproveitada, pois sua inspiração é, ao mesmo tempo, científica e moral, como deve ser toda fórmula social, para o bem de uma nacionalidade de vasto futuro como a nossa. Josué de Castro pagou caro sua sabedoria. Mas a posteridade lhe faz justiça e há de aproveitar-se de sua ciência".

Era o que eu tinha a dizer, Sr. Presidente.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 25/10/1996 - Página 17653