Discurso no Senado Federal

PAPEL DA ESCOLA NA QUESTÃO DO MENOR ABANDONADO.

Autor
Lúcio Alcântara (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/CE)
Nome completo: Lúcio Gonçalo de Alcântara
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
EDUCAÇÃO.:
  • PAPEL DA ESCOLA NA QUESTÃO DO MENOR ABANDONADO.
Publicação
Publicação no DSF de 23/11/1996 - Página 18843
Assunto
Outros > EDUCAÇÃO.
Indexação
  • ANALISE, PROBLEMA, MENOR ABANDONADO, MORTALIDADE INFANTIL, FOME, MUNDO.
  • CRITICA, METODOLOGIA, RECLUSÃO, MENOR ABANDONADO, DEFESA, ESCOLARIZAÇÃO.
  • DEBATE, INEFICACIA, ESCOLA PUBLICA, TEMPO INTEGRAL, PREJUIZO, ATIVIDADE EDUCATIVA, IMPOSSIBILIDADE, SUBSTITUIÇÃO, POLITICA SOCIAL.
  • DEFESA, APERFEIÇOAMENTO, ESCOLA PUBLICA, OBJETIVO, ESCOLARIZAÇÃO, SOCIALIZAÇÃO, ADAPTAÇÃO, NECESSIDADE, MENOR ABANDONADO.

O SR. LÚCIO ALCÂNTARA (PSDB-CE. Pronuncia o seguinte discurso.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, de tempos em tempos, numa periodicidade às vezes quebrada pela eclosão de algum episódio particularmente fotogênico, aquele que é, talvez, o retrato mais chocante da questão social brasileira, estampa-se nas páginas dos jornais e revistas e nas telas de televisão do País. Refiro-me à questão da infância de rua, que, embora não seja o maior nem o mais difícil problema a ser resolvido no Brasil, tem assegurado sempre eloqüentes índices de audiência graças à dramaticidade de suas imagens.

Às imagens agregam-se dados incertos, que apontam a provável existência de quarenta mil crianças perambulando pelas ruas das grandes cidades brasileiras. Essas crianças, na verdade, são a ponta do "iceberg" social, cuja base profunda está em empregos mal pagos e em lares desfeitos, em pais que foram massacrados pela vida, ou pelo álcool ou pela falta de estudo, e, também, porque perderam sua raiz social, e que não param de gerar meninos e meninas que não conseguem orientar, porque eles próprios já não têm rumo há muito tempo.

Por ocasião da conferência Habitat II, em Istambul, tive a oportunidade de constatar a grandeza desse problema social em escala mundial. Segundo dados divulgados pelo Fundo Internacional de Emergência das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), existem cem milhões de meninos de rua no mundo, dos quais quarenta milhões estão na América Latina. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), em dados também divulgados em Istambul, doze milhões de crianças morrem no mundo antes de completar cinco anos, por doenças causadas pela desnutrição, a cada ano.

O Presidente Fidel Castro, agora, na Conferência Mundial sobre Alimentação, em Roma, declarou que a meta traçada pelos países é tímida e vergonhosa: reduzir, no próximo ano, de 800 milhões para 400 milhões o número de famintos no mundo. É uma estatística realmente revoltante se levarmos em conta o que há de desperdício de alimentos. Falta o empenho dos governantes dos países industrializados no mundo para reverter esse quadro de pobreza, de miséria e de fome, que infelizmente ainda está presente em boa parte do mundo.

A abordagem planetária do problema, contudo, não minimiza a violência dos números. Só de janeiro a maio deste ano foram mortos 345 menores de doze anos, no Rio de Janeiro, vítimas de ferimentos a bala ou por objetos contundentes. Nos últimos dez anos foram assassinadas seis mil e cem crianças e adolescentes. Além disso, mais da metade da mão-de-obra do narcotráfico é constituída de meninos e meninas muito jovens, alguns contando apenas dez anos de idade. Diante desse quadro, a sociedade tem manifestado reações e sentimentos contraditórios, que oscilam da solidariedade episódica à inquietação, ao medo e à repulsa.

Desde o século XVIII, a sociedade brasileira se sentiu ameaçada com a disseminação de meninos que encontravam nas ruas seu meio de sobrevivência. Em torno de 1730, funda-se a Casa dos Expostos, ou a "Roda", criada por inspiração italiana para abrigar almas inocentes. Em 1832, abre-se a Escola de Aprendizes de Marinheiros para os abandonados maiores de 12 anos. Em dezembro de 1898, a Escola Correcional 15 de Novembro. As soluções de então pouco diferem das propostas atuais. Naquela ocasião era um caso de polícia; hoje, é assunto para sociólogos, psicólogos, assistentes sociais. Mas no fundo o objetivo principal continua sendo o mesmo: resguardar a segurança e a tranqüilidade a que a sociedade tem direito e, como conseqüência óbvia, dar conveniente destino aos "infelizes", acolhendo-os em instituições especialmente destinadas a esse fim. A solução seria "corretiva" e "reparadora", pois permitiria, ao mesmo tempo, "vigiar" e punir". Essa medida acaba tão-somente por retirar as crianças da rua, da circulação livre, da vista da sociedade e da esperança de vida.

O inegável fracasso dos métodos de "confinamento" na integração das crianças de rua à sociedade fez com que uma nova tendência passasse a ganhar espaço nas vozes de políticos, de educadores e de todos que, mesmo eventualmente, abordam o tema: trata-se da crença no encaminhamento da clientela em questão a escolas, preferencialmente de tempo integral ou de horário ampliado.

Essa tendência merece uma reflexão mais aprofundada de nossa parte, uma vez que não somos especialistas na matéria, e a solução pode-se nos afigurar, como parece acontecer com a média da opinião comum, um equacionamento razoável para o problema. Comecemos, portanto, por argüir as motivações, explícitas ou não, que porventura norteiem a proposta e que possam talvez configurá-la como uma moderna variante do velho confinamento.

Os projetos de escola pública de tempo integral ou ampliado, destinados a meninos de rua, parecem constituir, no momento presente, tentativas de sanar deficiências profundas na área da promoção social. Constituem busca de soluções para o problema do abandono real ou latente de crianças e adolescentes e alternativas de prevenção da delinqüência. A escola pública de tempo integral surge, assim, como uma das "soluções novas" para os problemas gerados pela crise econômica e na esfera da segurança pública, uma vez que tal crise, ao potencializar o problema da violência, em cujo interior ganha relevo a questão do menor, recoloca, por outra via, a discussão sobre a função da escola e sobre a qualidade de ensino que a rede pública oferece. Esses projetos acabam por sugerir que a rede das escolas públicas supra, em parte, deficiências das políticas sociais, cuja superação demandaria investimentos e compromissos muito mais significativos.

Tal atitude, além de revelar um desconhecimento da realidade da escola brasileira, cuja infra-estrutura física e de recursos humanos não está preparada para receber a clientela dos meninos de rua em tempo ampliado, apresenta dois riscos a serem considerados.

Ao apontar essa questão, Srªs e Srs. Senadores, não estou aderindo dogmaticamente a uma postura técnico-profissional segundo a qual à escola cabe ensinar e nada mais. Ao contrário, é preciso considerar as novas exigências que a sociedade faz à instituição escolar, cabendo encará-la de uma perspectiva mais ampla. Contudo, ao fazê-lo, é importante não cair na armadilha de confundir essa mirada mais abrangente com a proposição de medidas paliativas que, além de não representarem um enfoque mais sério dos problemas estruturais geradores da pobreza, acabam por prejudicar a atividade pedagógica que a escola se propõe a desenvolver.

Naturalmente, aqui se faz necessária a pergunta: qual é a atividade precípua da escola? Acredito, Srªs e Srs. Senadores, que a escola tem um papel a cumprir no atendimento ao direito de cidadania relacionado à apropriação do saber historicamente acumulado. Nesse particular, a escola deve ser pensada, preliminarmente, em seu caráter instrutivo, ao participar da divisão social do trabalho no que diz respeito à transmissão, em escala social e de modo sistemático e organizado, de um acervo de conhecimentos e valores que não seria possível transmitir em nível meramente familiar ou individual. Nesse sentido, pensada a escola como agência educativa que se propõe à transmissão de determinado saber, a função de instrução parece-nos inerente a sua própria natureza. A forma de contribuição da escola para a transformação da sociedade está, prioritariamente, na distribuição institucionalizada do saber. A função instrucional da escola é de fundamental importância no sentido de garantir que as amplas camadas da população tenham acesso ao acervo cultural produzido historicamente pela humanidade. Existe um mínimo desse acervo cultural, científico, tecnológico, produzido historicamente, a que o ser humano, para viver o seu tempo, precisa ter acesso em nossa sociedade, independentemente da classe social a que pertença.

Mas a escola nunca é um espaço exclusivamente de instrução. Ela é, também, um espaço de socialização. O aluno, em contato com os colegas, com professores, com os demais elementos da escola, vai travando conhecimento com pessoas de idades, gestos, hábitos e características pessoais diversas das suas e das que costuma encontrar em seu ambiente familiar. O contato do aluno com a cultura institucional da escola - expressa em seu regimento, em sua estrutura organizacional, na teia de relações pessoais que se estabelecem, no uso de implementos, materiais e espaços físicos - propicia a aquisição de modos de ser, pensar, falar, mover-se, posicionar-se diante do mundo.

Srªs e Srs. Senadores, ao afirmar que, a meu ver, são funções precípuas da escola a instrução e a socialização, não estou querendo dizer que a escola nada possa fazer pelos meninos e meninas de rua.

Na verdade, defendo o entendimento de que a escola pode fazer pelas crianças de rua o mesmo que pode fazer por todas as crianças. Para a grande maioria da população que freqüenta a escola, a função de instrução tem sido reduzida a mínimos insignificantes, como resultado de uma ação incompetente que não consegue prover seus usuários de conteúdos em quantidade e qualidade compatíveis com suas necessidades, nem logra retê-los por muito tempo, expulsando-os já nos primeiros anos de escolaridade.

Como se vê, Srªs e Srs. Senadores, há muito a ser feito pela escola em relação à criança brasileira, particularmente em relação aos meninos e meninas de rua, sem que ela precise desfigurar sua missão institucional ou adotar, obrigatoriamente, recursos eventuais, como o tempo integral ou ampliado. Se, por um lado, o aumento da jornada traz um potencial positivo aos que dependem exclusivamente da escola para o acesso ao conhecimento escolar, é importante ressaltar, também, uma outra faceta não menos relevante: trata-se de sua viabilidade para as crianças que, desde cedo, complementam o salário dos pais. Não só "complementam" como, na maioria das vezes, sustentam propriamente a casa, conforme demonstra a reportagem da revista Veja, de 30 de outubro último, em que são relatados casos de crianças que retiram de sua labuta na rua pelo menos quatrocentos e oitenta reais por mês - mais de quatro salários mínimos.

A complexidade do problema não admite uma solução linear. Alternativas como bolsa-educação, oficinas de aprendizagem de pequenos ofícios, setores de ensino técnico, artístico e outros são exemplos de um enorme espectro de possibilidades a serem consideradas. Há registro de iniciativas bem-sucedidas espalhadas por todo o País, de Salvador a Porto Alegre, desenvolvidas em conformidade com as peculiaridades locais. O projeto de democratização efetiva do atendimento escolar está exigindo, hoje, que se multipliquem experiências diferenciadas de atendimento, de acordo com as características e interesses da clientela.

Voltando ao binômio instrução/socialização, para que possamos encaminhar a finalização deste pronunciamento, mesmo cientes da precariedade do diagnóstico esboçado, reiteramos a indagação crucial: o que pode a escola fazer pelos meninos e meninas de rua? Ouso responder que pode fazer o mesmo que deveria fazer por todas as crianças: exercer plenamente sua função.

A verdadeira transformação a que a escola deve ser submetida para capacitar-se a atuar competentemente junto à clientela especial das crianças de rua é aquela que consiga ligá-la aos interesses desse segmento, afastando-a do modelo formalista e distante, para faze-la experimentar novas soluções, familiares e compreensíveis ao universo dos interessados.

Não se trata, no entanto, de uma idealização romântica, que leve a aceitar acriticamente tudo o que venha dos meninos de rua. Trata-se, em vez disso, de reconhecer, na população infantil das ruas, valores, modos de ser, concepções de mundo e formas de expressão que são historicamente determinadas e reveladoras de uma condição e de uma classe social. Esse reconhecimento é básico para que os projetos pedagógicos da escola brasileira revejam as perspectivas de instrução e socialização que têm sido formuladas para essas crianças e adolescentes e formulem outras, adequadas às suas necessidades e fundamentadas em sua realidade, mas que, ao mesmo tempo, sejam capazes de permitir a transferência das experiências para as múltiplas situações do mundo.

Era o que eu tinha a dizer, Sr. Presidente.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 23/11/1996 - Página 18843