Discurso no Senado Federal

HOMENAGEM A PAULO FRANCIS, REMEMORANDO CARACTERISTICAS DE SUA VIDA PESSOAL E DE SUA PROFISSÃO DE JORNALISTA. REFLEXÕES DE PAULO FRANCIS A RESPEITO DE SI PROPRIO.

Autor
José Serra (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/SP)
Nome completo: José Serra
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • HOMENAGEM A PAULO FRANCIS, REMEMORANDO CARACTERISTICAS DE SUA VIDA PESSOAL E DE SUA PROFISSÃO DE JORNALISTA. REFLEXÕES DE PAULO FRANCIS A RESPEITO DE SI PROPRIO.
Aparteantes
Eduardo Suplicy.
Publicação
Publicação no DSF de 06/02/1997 - Página 3899
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM POSTUMA, PAULO FRANCIS, JORNALISTA, ESTADO DE SÃO PAULO (SP).

      O SR. JOSÉ SERRA (PSDB/SP. Pronuncia o seguinte discurso. ) - Sr. Presidente, venho hoje a esta tribuna para homenagear o jornalista Paulo Francis, falecido ontem de manhã em Nova Iorque, cidade onde vivia há cerca de um quarto de século.

      Falo como amigo de Paulo Francis; amigo de longa data, há aproximadamente 34 anos. Lembro-me muito bem: nos conhecemos quando eu era Presidente da União Nacional dos Estudantes, no Rio de Janeiro, em conversa na residência do então Deputado Leonel Brizola. Paulo Francis era colunista do jornal Última Hora, depois de ter sido importante e inovador crítico de teatro e jornalista da revista Senhor, que representou um marco muito importante na história do jornalismo brasileiro.

      Nessas três décadas nossa relação pessoal e afetiva tornou-se mais próxima. Ao mesmo tempo essas décadas testemunharam as mudanças que nós dois sofremos na visão do mundo e do Brasil durante nossa trajetória política e profissional.

      Paulo Francis, como eu próprio, poderia muito bem se reportar a uma reflexão de Lord Keynes, o maior economista deste século, que, perguntado por que havia alterado seus pontos de vista com relação a questões econômicas importantes, dizia: "Quando os dados da situação mudam, eu mudo as minhas conclusões. O senhor faz o quê?” Essa reflexão de Keynes foi uma das marcas fundamentais da evolução do intelectual Paulo Francis e de sua produção como jornalista.

      O conhecimento de longa data me faz refletir a respeito de Francis em três aspectos.

      Qual era a essência de sua atitude como intelectual? Era a idéia da tolerância. Paulo Francis era um adepto fanático da tolerância de idéias e de pensamentos entre as pessoas. Algo que vai muito além de um famoso aforismo popularizado no Brasil por Rui Barbosa: “Não concordo com uma palavra do que dizes, mas defenderei até a morte o direito de o dizeres”.

      Evidentemente, é uma reflexão com a qual todos os democratas estão de acordo; mas o que está presente nas atitudes e na obra de Paulo Francis como jornalista e como intelectual vai muito além dessa declaração formal. Para ele o aforismo seria outros: “considero fundamental que haja gente que pense diferente de mim e fico satisfeito em saber que existe quem pensa de forma diferente”.

      Ele acreditava ser fundamental a diferença militante de pensamentos e idéias. A não consideração desse fato talvez tenha gerado bastante incompreensão para com seu trabalho como jornalista, ampliada pelo seu estilo solto e, de alguma forma, pelo próprio personagem Paulo Francis, criado a partir de seu trabalho como correspondente em Nova Iorque.

      Eu não concordava com tudo o que Paulo Francis dizia a respeito do País e das atuais etapas do nosso desenvolvimento. No entanto, essas diferenças de pensamento sempre me trouxeram satisfação. É muito importante, para o desenvolvimento das idéias, que existam confrontos, aceitos com absoluta tolerância. Essa era uma característica fundamental - e que talvez esteja perdida hoje - para entender-se o que Paulo Francis representou.

      Um segundo aspecto de sua vida refere-se à futilidade da intolerância. Paulo Francis foi um homem perseguido. Foi preso várias vezes em 1969 e 1970 pelas suas idéias, pelo que escrevia. Todos sabemos que ele não era militante político. Nunca o foi, mas esse aspecto de sua vida o transformou em exemplo do que é a futilidade da intolerância que foi política oficial do regime do AI-5..

      Lembro-me da existência de um semanário, o jornal Pasquim, que representou uma forma de o Brasil vocalizar o seu pensamento por meio do humor, e Paulo Francis era um dos integrantes principais da equipe do Pasquim. A cidadania brasileira, por intermédio desse jornal, expressava-se pelo humor numa época de sufoco das liberdades. De fato, diante do Pasquim o povo ria e os poderosos choravam de raiva. Tanto isso é verdade que perseguiram o jornal, explodindo bancas que o vendiam, fazendo atentados a jornaleiros, para que, intimidados, não vendessem mais o semanário. Essa foi, sem dúvida uma das causas determinantes do desaparecimento desse jornal. E Paulo Francis, como um de seus integrantes, fundadores e articulistas, sofreu perseguição e prisão pelo seu trabalho, à época, nessa condição.

      É importante que nos demos conta da futilidade da intolerância, quanto mais não seja para que tenhamos sempre presente a necessidade de defender e aplaudir a cada momento, a tolerância, o direito de as pessoas divergirem. E o Paulo Francis fertilizou esse campo a partir de suas opiniões, expostas com toda a clareza nos jornais, nas revistas e na televisão.

      Um terceiro aspecto que eu quero lembrar a respeito do Francis é o seu caráter, a sua forma pessoal de ser. Ao contrário do que muitos poderiam crer, ele tinha pouco a ver, na sua vida pessoal, no seu relacionamento com as pessoas, com o personagem Paulo Francis que morava em Nova Iorque. Era um homem tímido, muito amigo dos amigos, respeitoso, até desajeitado para tratar assuntos do seu próprio interesse. Vivi um episódio pessoal no meu relacionamento com ele, em 1976/77 no que vale ser recordado.

      Víamo-nos com muita freqüência, especialmente quando eu morava em Princeton, como professor visitante do Instituto para Estudos Avançados. Naquela oportunidade, pretendendo voltar ao Brasil, exilado que estava desde 1964, tive muitas dificuldades de natureza legal: não tinha passaporte, não obtinha de consulados ou embaixadas a possibilidade de registrar o nascimento de meus filhos como brasileiros, não podia passar procuração para o Brasil, não podia sequer obter um papel que dissesse que eu era cidadão brasileiro.

      Não guardei nenhum ressentimento por esses fatos. Aliás, o Paulo Francis nunca expressou ressentimento pela perseguição que sofreu antes de deixar o Brasil.

      Naquele período muito difícil da minha vida, quando, do ponto de vista profissional e intelectual eu era uma pessoa já realizada profissionalmente, pertencendo, inclusive, a uma instituição acadêmica que era das mais importantes naquela época. Mas estava saturado. pelo meu afastamento do Brasil, que já se prolongava por mais de doze anos e que veio a se estender até 1977 - por 13 anos, portanto.

      Pois foi através de Paulo Francis que pude obter um quadro de referência que permitiu o meu regresso ao Brasil. Ele tinha relações pessoais com diplomatas, de quem aproximou-me e que, sob o risco de perda dos seus cargos e de perseguição, procuraram me auxiliar, não fazendo nada ilegal, mas respeitando minha condição de cidadão brasileiro: obter documentos, informações, saber como fazer para voltar ao seu país.

      Uma dessas diplomatas morreu de acidente há cerca de um mês no Rio de Janeiro - e quem informou ao Paulo Francis dessa morte fui eu mesmo. Chamava-se Margarida Zobaran. Foi-me apresentada por Paulo, de quem era amiga, e graças a ela - não só a ela, mas cito seu nome até por ter falecido - pude regressar ao Brasil em 1977.

      Quero deixar este testemunho a respeito do comportamento pessoal do Paulo Francis, generoso, delicado na sua relação com as pessoas, afetuoso e solidário no caso dos amigos.

      Como muitos outros, me somo à tristeza da família e apresento à esposa dele, Sônia Nolasco, minha solidariedade. Registro também que muitos homens públicos no Brasil, mesmo aqueles criticados por Paulo Francis, no momento do seu desaparecimento, reconhecem a importância do seu papel e do seu valor como intelectual.

      Registro, a propósito, manifestação do Senador Eduardo Suplicy. Ontem, S. Exª telefonou para a Sônia Nolasco para ampará-la, deixando de lado quaisquer ressentimentos que poderiam ter surgido a partir das, por vezes, implacáveis críticas que sofreu do Paulo.

      Aliás, a mesma tolerância que caracterizou a vida de Paulo também caracteriza a do Eduardo Suplicy.

      Tolerância não significa transigência, tolerância não significa falta de idéias próprias, significa, sim, considerar importantes as divergências, ficar contente quando alguém diverge e permite, portanto, que o nosso pensamento se consolide ou se modifique.

      O Sr. Eduardo Suplicy - V. Exª permite-me um aparte, Senador José Serra?

      O SR. JOSÉ SERRA - Ouço V. Exª, Senador Eduardo Suplicy.

      O Sr. Eduardo Suplicy - Prezado Senador José Serra, há poucos dias concluí a leitura de uma obra admirável, a autobiografia de Nelson Mandela, Um Longo Caminho para a Liberdade, no qual ele afirma que mesmo com as pessoas adversárias, mesmo com as pessoas que possam ter agido da maneira pior possível com respeito a si próprias sempre é possível estabelecer um elo de diálogo e reconhecer nelas qualidades. V. Exª mencionou três características importantes do jornalista Paulo Francis, que o tinha em grande consideração. Ainda ontem, quando as emissoras de televisão transmitiram diversos aspectos das principais declarações de Paulo Francis, houve momentos em que apareceram as avaliações dele a respeito daquele que considerava uma das pessoas mais bem preparadas para ser um estadista no Brasil. Ele se referia a V. Exª, Senador José Serra. Concordo com o jornalista Paulo Francis em que V. Exª é de fato uma das pessoas mais bem preparadas para a vida pública. De fato, ontem, telefonei para Sônia Nolasco transmitindo-lhe o sentimento relativo àquilo que eu havia com ela conversado em algumas oportunidades. Em 1993, quando estive em Nova Iorque para uma atividade, ela havia me telefonado para entrevistar-me. Na ocasião, expressou respeito e admiração pelo meu trabalho. Isso ocorrera um ano após ataques muito pesados feitos pelo jornalista Paulo Francis contra a minha pessoa. Eu disse a Sônia Nolasco que estranhava o que acontecia com o Paulo Francis, porque, afinal ele me tratara com muito respeito e amizade durante os anos 70, seja em momentos em que o visitara em Nova Iorque, seja durante o tempo em que Claudio Abramo e Otavio Frias haviam-nos convidado para trabalhar na Folha de S.Paulo. Nessa época, por exemplo, Paulo Francis entregou-me o livro "Cabeça de Negro", por ele autografado, dizendo: "Ao meu Deputado, economista e cabeça, um abraço, Paulo Francis". Quem assim se refere a outra pessoa o está tratando com respeito e amizade. Justamente depois que ingressei no Partido dos Trabalhadores Paulo Francis resolveu atingir-me, por vezes, de forma ofensiva. Eu havia transmitido isso a Sônia Nolasco, e ela disse que um dia iríamos conversar, as coisas se esclareceriam e - ela dizia ter certeza disso - retomaríamos o diálogo. Em novembro último estive em Nova Iorque e encontrei Sônia Nolasco na ONU, onde ela trabalha. Perguntei-lhe se seria o momento desse reencontro. Ela me disse que talvez não fosse ainda. Antes de sair de Nova Iorque deixei para Paulo Francis uma pequena mensagem com o livro de Philippe Van Parys: "Real Freedom for All", justamente um dos fundadores da rede européia da renda básica, para que melhor compreendesse a evolução da reflexão sobre o tema da renda de cidadania, da renda mínima garantida. Eu até disse que, caso fosse vivo, Claudio Abramo lhe diria algumas verdades a meu respeito, porque Paulo Francis manifestou-se drasticamente no sentido de procurar impedir que eu disputasse a Prefeitura de São Paulo em 1992. Eu estava no segundo turno, numa competição com o Prefeito Paulo Maluf, e Paulo Francis resolveu usar do poder extraordinário de comunicação não apenas em sua coluna "Diário da Corte", mas também na Rede Globo, em horário nobre. Reiteradas vezes - e de forma incomum - recomendou que lessem sua coluna no domingo seguinte, quando escreveria que eu, candidato a Prefeito - usarei a expressão dele -, "era maluco". E disse isso, em flashes, na quinta, na sexta, no sábado, até que a matéria foi publicada no domingo. Foi essa questão que suscitou o direito de resposta. Sem que eu tivesse sido consultado, o advogado do Partido dos Trabalhadores, Luís Bueno de Aguiar, pediu inclusive que o juiz tomasse uma medida, e o juiz impediu que ele escrevesse a meu respeito durante o restante da campanha. Esclareci que, com respeito a essa atitude, eu estava de acordo que ele dissesse o que pensava, mas eu queria o direito de resposta e queria ter oportunidade de conversar com ele. Eu disse ontem a Sônia Nolasco, o que, infelizmente, não aconteceu. Ela me disse que em novembro ele estava tão brabo com os funcionários do Petrobrás, que tinham entrado na Justiça com uma ação contra ele. Por isso, não era o melhor momento. Ele estaria muito melhor, depois. Bem, reitero: tenho respeito por ele como um dos jornalistas de maior importância na História do Brasil. Porém, mas com o Partido dos Trabalhadores, com o Lula, com o Vicentinho - Vicente Paulo da Silva -, com a Luiza Erundina, com a Marilena Chauí, com tantos companheiros do PT, com a Senadora Benedita da Silva, ele muitas vezes foi pouco tolerante. Poderia manifestar suas discordâncias de pensamento, mas não da forma como se referiu a Vicentinho. Paulo Francis disse que Vicentinho merecia umas chibatadas, e isso o magoou profundamente. Talvez por causa da força de expressão dele.Com respeito a mim, certa vez disse que eu teria deixado de votar para quebrar o sigilo bancário da Deputada Roseana Sarney em função de o PFL aceitar não realizar a CPI sobre a CUT. Isso foi uma inverdade que ele continuou a escrever, o que me ofendeu profundamente. Gostaria de registrar esses pontos. Em relação ao que Paulo Francis escreveu e disse na televisão em 1992, gostaria de ter-lhe dito que me parecia uma atitude de lesa-humanidade. Paulo Francis, conforme disse em entrevista ao Roda Viva certa vez - ele esteve lá mais de uma vez -, teve um estresse praticamente na mesma idade que eu também tive. Um problema de estresse aos vinte e poucos anos de idade - como eu tive aos vinte e um anos - não o impediu de se tornar um jornalista importante na história da imprensa brasileira, como não me impediu de fazer o que fiz nos últimos trinta e cinco anos de vida. Isso prova que qualquer jovem, que porventura nessa idade tenha um problema, pode perfeitamente ter uma vida produtiva, saudável, para si próprio, para o seu país, para sua família, para seus pares. Gostaria de ter tido essa conversa com ele. Infelizmente, ele faleceu.

      O SR. JOSÉ SERRA - Meu caro Senador Eduardo Suplicy, suas palavras expressam aquilo que eu dizia quanto ao espírito de tolerância que V. Exª tem tido ao longo de toda sua vida pública. Conheço-o, inclusive na dimensão privada, uma vez que somos amigos pessoais há pelo menos tantas décadas quanto as que V. Exª se referiu, quando passou a ter uma atuação na vida pública e começou na militância estudantil. Trabalhamos juntos desde 1962, quando V. Exª era aluno da Fundação Getúlio Vargas e eu presidente da. União Estadual dos Estudantes de São Paulo.

      Sr. Presidente, quero encerrar as minhas palavras mencionando algumas reflexões do Paulo Francis a respeito de si próprio. Ele dizia, numa entrevista à Folha de S.Paulo, em meados de 1983:

      "Dizem que ofendo as pessoas. É um erro. Trato as pessoas como adultas. Critico-as. É tão incomum isso na nossa imprensa que as pessoas acham que é ofensa. Crítica não é raiva. É crítica. Às vezes é estúpida. O leitor que julgue... Meu tom às vezes é sarcástico. Pode ser desagradável. (Veja, Sr. Presidente, que reflexão autocrítica, significativa.) Mas é, insisto, uma forma de respeito, ou, até, se quiserem, a irritação do amante rejeitado. Queria que os criticados fossem melhores"

      Diz ainda num texto que escreveu no ano passado - talvez a última reflexão sobre si próprio:

      "Faz bastante tempo que me convenci de que a vida não tem pé nem cabeça, que religião é uma tentação emocional resistível ... Mesmo em momentos muito emocionais me dei conta de que havia um outro eu, ausente. Medo de morrer? Não tenho, realmente. Não tenho filhos( lembrando Machado de Assis)-, não deixei a ninguém o legado da minha passagem".

      Durante anos descobri coisas sobre o ser humano, experimentei prazeres vários, mas hoje nada vejo de novo. Estou habituado a viver e a idéia da extinção me assusta, até que me dou conta ... de que morrer é como antes de nascermos...

      Quero agradar? Gosto que me leiam e saibam o que acho das coisas. É uma forma de existir. Trabalho é a melhor maneira de escapar da realidade ... O trabalho bem-feito é satisfatório como realização, saber que se deu um teco no marasmo, na confusão, que se fez círculos na água, que volta a parar, mas o movimento é real enquanto dura.

      Há em mim um resíduo de saltimbanco. Gosto de uma platéia, quero mantê-la cativa. Afinal, vivo disso, há quarenta anos.

      Confio em que meu humor me salve, quer dizer, que me facilite o que der e vier. Enquanto há vida se vai levando. Aproveitei o máximo. Devo dar graças ao destino ... Minha cabeça é meu produto primário e minha indústria. Saí da caverna. É minha satisfação que partilho com leitores de cabeça limpa."

      Com essas palavras quase que de despedida de Paulo Francis pelo próprio Paulo Francis, encerro minha homenagem a esse amigo, a esse intelectual, a esse jornalista importante da vida brasileira.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 06/02/1997 - Página 3899