Discurso no Senado Federal

SOLICITANDO APOIO DOS SENADORES AO PROJETO DE LEI DO SENADO 273, DE 1996, DE SUA AUTORIA, QUE INSTITUI O ESTUDO DOS DIREITOS HUMANOS NA FORMAÇÃO POLICIAL.

Autor
Benedita da Silva (PT - Partido dos Trabalhadores/RJ)
Nome completo: Benedita Souza da Silva Sampaio
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
DIREITOS HUMANOS. SEGURANÇA PUBLICA.:
  • SOLICITANDO APOIO DOS SENADORES AO PROJETO DE LEI DO SENADO 273, DE 1996, DE SUA AUTORIA, QUE INSTITUI O ESTUDO DOS DIREITOS HUMANOS NA FORMAÇÃO POLICIAL.
Publicação
Publicação no DSF de 12/04/1997 - Página 7636
Assunto
Outros > DIREITOS HUMANOS. SEGURANÇA PUBLICA.
Indexação
  • COMENTARIO, EXCESSO, VIOLENCIA, POLICIA MILITAR, DENUNCIA, DISCRIMINAÇÃO, NECESSIDADE, MOBILIZAÇÃO, SOCIEDADE, DEFESA, CIDADANIA, DIREITOS HUMANOS.
  • DEFESA, JULGAMENTO, JUSTIÇA COMUM, CRIME, POLICIAL, CRIAÇÃO, SISTEMA, PROTEÇÃO, TESTEMUNHA, APOIO, CORREGEDORIA, POLICIA, AUMENTO, CONTROLE INTERNO.
  • NECESSIDADE, AUMENTO, CONTROLE EXTERNO, POLICIA, AMPLIAÇÃO, ATUAÇÃO, MINISTERIO PUBLICO, COMISSÃO, DIREITOS HUMANOS.
  • REGISTRO, ANAIS DO SENADO, ESTATISTICA, VIOLENCIA, POLICIA, VITIMA, NEGRO.
  • JUSTIFICAÇÃO, PROJETO DE LEI, AUTORIA, ORADOR, OBRIGATORIEDADE, ESTUDO, DIREITOS HUMANOS, FORMAÇÃO, POLICIAL.

A SRª BENEDITA DA SILVA (PT-RJ. Pronuncia o seguinte discurso) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores,

O BRASIL NÃO PRECISA DE "RAMBOS", MAS DE CIDADÃOS.

Já virou rotina no Brasil testemunharmos cenas de violência da Polícia Militar. Desta vez, cidadãos de Diadema, em São Paulo, e da Cidade de Deus, no Rio de Janeiro, foram vítimas de tortura, extorsão e assassinato promovidos por policiais militares em uma blitz da Polícia Militar. As imagens, divulgadas pela televisão, chocaram a nação e o mundo, provocando indignação diante de uma polícia que comete crimes, em vez de defender cidadãos, prevenir e resolver os próprios crimes.

Precisamente há um ano, o Brasil chocava-se diante de um outro massacre: 19 camponeses sem-terra assassinados, e mais de 60 feridos, no conflito com policiais em Eldorado do Carajás, no Pará.

Assim, de massacre em massacre, já temos Carandiru (111 presos assassinados, em 1992), Candelária (meninos de rua assassinados em plena escadaria da Igreja da Candelária, Rio de Janeiro), Eldorado do Carajás e agora a violência na Cidade de Deus e em Diadema. 

A repetição, na Cidade de Deus, Rio de Janeiro, do que aconteceu na Favela Naval, em Diadema, são ações que estão acontecendo, sem dúvida, em diversos outros pontos do país. Inúmeros vídeos, de repórteres amadores, estarão aparecendo daqui para a frente. O medo à revanche tem coibido a entrega de muitos destes vídeos sobre violência, praticada em vários pontos para o conhecimento da sociedade.

No Rio de Janeiro, a violência da Polícia Militar apresenta índices alarmantes. Somente na capital, em operações definidas como confrontos, matou-se oito vezes mais civis do que durante o mesmo período do ano anterior. As mortes são defendidas, na maioria das vezes, como resistência à ordem de prisão. Entre janeiro de 95 e fevereiro de 96 a PM matou cerca de 200 pessoas, somente na cidade do Rio de Janeiro. Neste período, apenas 11 policiais militares sofreram algum tipo de ferimento.

Todos estes episódios são sinônimos de violência policial. A dramática realidade é que essa violência é generalizada e corriqueira em nosso país. Está cada vez mais difícil explicar aos nossos filhos e netos o porquê de tanta violência. É cada vez mais difícil explicar à nossas crianças que a violência policial, que ela assiste pela televisão, não é real e que devemos confiar na polícia. Uma contradição, pois pela TV assistimos os cidadãos de bem apanharem da PM, enquanto os que batem - os policiais - são os verdadeiros bandidos.

São imagens de violência policial de causar inveja aos violentos filmes de Hollywood.. Quem são os diretores desses filmes genuinamente nacionais? Dois cinegrafistas amadores, cidadãos anônimos que decidiram fazer alguma coisa contra essa rotina do terror. Rotina? Sim. Todos nós sabemos, por ter informações ou por ter sofrido na própria pele que, lamentavelmente, a violência policial é uma rotina uma prática hedionda institucionalizada na sociedade e dirigida contra o pobre, o negro, as crianças e os adolescentes desassistidos. Esses setores são vitimados duplamente: pela injustiça social e pela violência policial.

Infelizmente, a novidade é apenas a divulgação das denúncias pela televisão, porque a violência policial está presente no dia a dia do cidadão pobre. A opinião pública reage porque as imagens da violência chocam qualquer ser humano, especialmente por ser feita apenas para humilhar e maltratar as pessoas.

Até onde está a raiz da impunidade desses delinquentes fardados. O Brasil está partido. A está cidadania dividida em cidadãos de primeira e de segunda categoria. Enquanto persistir essa divisão não encontraremos a paz e grande parte da sociedade continuará sendo submetida à violência institucionalizada, diante da qual se tornam impotentes. Por isso, quando surge uma onda de indignação da opinião pública, unindo brasileiros de bem, como foi na grande manifestação unitária do Reage Rio, temos que avançar e consolidar as conquistas da sociedade civil no campo das defesas dos direitos humanos e do cidadão.

Cidadania no Brasil ainda é uma planta de estufa. Precisamos desenvolver uma cidadania resistente, orgulhosa de seu país e consciente, não só de seus direitos, mas também de suas obrigações. A manifestação contra a injustiça social e a violência policial é, sem dúvida, uma obrigação da opinião pública. Não podemos deixar que a onda passe sem plantar nada no terreno que fertilizou.

Antes de mais nada é necessário cobrarmos a responsabilidade dos poderes públicos. A Constituição Federal é ignorada. O Art. 5º, que trata especialmente dos direitos e deveres individuais, é uma ficção em nosso país.

Todos os instrumentos legais que regulamentam direitos sociais são desprezados. Exemplo disso é o Estatuto da Criança e do Adolescente, uma lei cumprida apenas por pouquíssimos governos municipais e estaduais.

Enquanto estiver socialmente partido, com a sua maior parte mantida discriminada e afastada da cidadania efetiva, o Brasil continuará violento e a violência nunca, em nenhum momento da história da humanidade, levou a alguma coisa, senão a mais violência e sofrimento.

É comum a defesa da pena de morte em nosso país. Encontra eco o slogan dos grupos de extermínio de que "bandido bom é bandido morto". Contudo, essa frase sinistra, que significa a negação de todo o direito, nos faz perguntar: e quem e vai nos proteger dos policiais-bandidos? Sim, porque os chamados "Justiceiros" e grupos de extermínio sempre acabam servindo aos poderosos, acharcando os bandidos e extorquindo, espancando, violentando e aterrorizando as pessoas inocentes. As imagens da Favela Naval e da Cidade de Deus mostram claramente que, para a violência policial, todos os cidadãos são igualmente "bandidos", todos nós somos objetos de extorsão.

Quando se critica a violência policial não se pensa em atingir a polícia enquanto instituição, pois essa função é necessária para a segurança do cidadão é justamente o seu desvio inegável dessa função. Com todas as demais instituições do Estado num regime democrático, a polícia também tem que se subordinar à vontade soberana do povo. Conforme determina o Art. 1º da Constituição Federal.

A violência policial nasce do medo que as elites tem do povo, cresce com a impunidade e se intensifica com o estímulo das autoridades e às vezes, por que não dizer, da própria população assustada com o aumento da criminalidade. Depois que a PM do Rio de Janeiro criou a "gratificação por bravura", aumentaram os atos de brutalidade e covardia com a população indefesa.

A Comissão de Segurança Pública da Assembléia Legislativa investigou as 1.403 operações policiais que, entre janeiro de 1993 e junho de 1996, resultaram em pelo menos uma morte de civil em cada uma delas. Em muitas dessas mortes foram constatadas fortes indícios de execução sumária.

Gostaria de fazer uma longa citação do brilhante e respeitado jurista Raimundo Faoro, que, numa entrevista a Elio Gaspari, no jornal "O Globo" de 6 de abril, falando sobre a violência policial afirmou, com muita propriedade: "No caso do Pará, que até hoje está impune, ficou a idéia de que a polícia errou, mas estava certa. O pessoal das favelas e das beiras de estrada está chegando e está assustando. A maneira como o poder publico lida com eles reflete uma elite assustada, que ainda não sabe como se comportar. Ela sabe muito bem o que a PM faz, tanto no mato quanto nas favelas. O que ela não pode tolerar é que se filmem essas coisas. Se houvesse uma noção de respeito ao cidadão, em vez de estarmos discutindo a má qualidade do caráter daqueles dez bandidos, estaríamos cuidando de acabar com a Justiça Militar, que mantém em liberdade os criminosos que não foram filmados."

O que a sociedade civil - governo, parlamentares, entidades democráticas e cidadão comum - pode fazer?   Criar um sistema de proteção das testemunhas para viabilizar judicialmente as denúncias e assim processar os policiais que se desviarem de suas funções. Para esse sistema realmente ter resultados práticos, e necessário, o Congresso Nacional deve modificar o Art. 125 da Constituição Federal, transferindo para a Justiça comum a competência para julgar os crimes cometidos por policiais. É necessário ainda dar mais apoio às Corregedorias das polícias, com vistas a aumentar o controle interno das atividades policiais. Quanto ao controle externo da polícia, é essencial que seja ampliado o papel do Ministério Público para, em conjunto com as Comissões de Direitos Humanos das Câmara de Vereadores, Assembléias Legislativas e Câmara Federal, com as Entidades de Defesa dos Direitos Humanos e com os órgãos de comunicação de massa, fiscalizarem, denunciarem e processarem os policiais que se desviarem de suas funções.

A recente criação da Secretária Nacional de Direitos Humanos se insere nessa preocupação e esperamos que cumpra o seu papel. Pensando nisso foi que, em fevereiro de 1995, apresentei um projeto de resolução propondo a criação no Senado, de uma Comissão Permanente de Direitos Humanos. Acredito que quanto mais houver Secretarias governamentais Comissões Parlamentares e Entidades civis, dirigidas para acolher denúncias e defender os direitos humanos, menor será a omissão e tolerância com a violência policial e mais perto estaremos da pacificação da sociedade brasileira.

Os tristes episódios revelados durante a semana deram margem ao surgimento de estatísticas avaliando a violência policial nos grandes centros urbanos. Merece registro nos anais desta Casa Legislativa a pesquisa realizada pelo Instituto DATAFOLHA, do jornal Folha de São Paulo, revelando que, no Brasil, o medo da polícia aprende-se mais rapidamente quando se é negro e pobre.

Em São Paulo, os negros são os mais abordados e agredidos com mais freqüência, recebem mais insultos e mais agressões físicas que os brancos. Também são os mais revistados do que qualquer outro grupo étnico.

Os números são impressionantes entre os da raça negra:

* 48% já foi revistado alguma vez. Desses, 21% já foram ofendidos verbalmente e 14% agredidos fisicamente por policiais.

* Os pardos superam os negros em ofensas: 27% já foram ofendidos verbalmente e 12% agredidos fisicamente. Ao todo, 46% dos pardos já foram revistados alguma vez.

* A população branca é menos visada pela polícia: 34% já passaram por uma revista; 17% ouviram ofensas e 6% já foram agredidos, menos da metade da incidência entre negros.

* 35% (trinta e cinco por cento) dos negros dizem que têm mais medo da polícia do que de bandidos.  

"Preto ou mulato, jovem, pobre. Este é o alvo preferido do aparelho repressivo estatal. É o sujeito com 'cara de prontuário'. É aquele que - só por pertencer a determinada classe ou minoria ou por enquadrar-se num estereótipo - torna-se vulnerável à ação do sistema repressivo penal. Ou seja, não precisa praticar nenhum delito para ser suspeito. Basta existir e estar na rua".

É a "teoria da vulnerabilidade" definida por criminalistas e que se aplica ao mundo inteiro, atingindo cidadãos pobres, que não sabem ao certo o que é cidadania. Vivem em lugares marginalizados, onde o Estado é praticamente ausente. O papel do Estado é preenchido por bandidos. A polícia não coíbe a ação criminosa e aterroriza os moradores, que não protestam por temerem uma reação ainda mais violenta.

Pois foi exatamente isso que aconteceu na Favela Naval, em Diadema. Afinal, não podemos esquecer que também era negro o homem que morreu naquela "blitz".

Ás vésperas de completar 109 anos de abolição da escravidão, após quatrocentos anos de escravidão e mais de cem anos de exploração, os negros foram e continuam a ser os perseguidos. Sobre esta dramática realidade - divisão social por critérios raciais - devemos refletir, pois o fator racial, nos crimes de violência policial, foi e continua a ser solenemente ignorado pelas autoridades.

A iniciativa do Projeto de Lei que "institui o estudo dos Direitos Humanos na formação policial". A presente proposição, apresentada em dezembro de 1996, tem por finalidade promover um aperfeiçoamento na formação dos policiais brasileiros, contribuindo para um melhor relacionamento com os demais cidadãos.

A justificativa afirma que as causas da crescente violência urbana são complexas, mas residem, principalmente, em nossas acentuadas desigualdades sociais e na dissolução de certas regras de convivência humana provocadas por rápidas transformações sociais e culturais.

Infelizmente, não faltam situações em que o comportamento equivocado de determinados policiais foi fator de desencadeamento de atos de violência ou de aumento da tensão social, como os verificados em Diadema. Diversas ocasiões têm demonstrado a incapacidade de inúmeros policiais de manter um relacionamento humano equilibrado, particularmente no contato com pessoas das camadas mais pobres da população. A ignorância e o desrespeito de princípios básicos da Constituição Federal e da legislação brasileira, referentes aos direitos humanos, transparecem no tratamento absurdo que muitas vezes é dispensado às pessoas pelas forças policiais.

Essa situação revela as deficiências existentes na formação dos policiais brasileiros, embora, certamente, reflita também outros problemas ligados à definição de nossas políticas de segurança pública. A proposta apresentada procura contribuir para a reversão desse quadro, ao determinar que se dê realce, na formação policial, ao estudo dos direitos humanos. 

Ainda que esse estudo já faça parte da formação de algumas academias de polícia, julgamos procedente a criação de uma lei federal sobre o tema, como forma de universalizar a exigência e de reforçar, pelo amparo da lei, as iniciativas já existentes. 

Em vista de sua relevância social solicito o apoio do Senado Federal a este Projeto de Lei.

Era o que tinha a dizer.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 12/04/1997 - Página 7636