Discurso no Senado Federal

FALECIMENTO DO SOCIOLOGO HERBERT DE SOUZA, HOMEM SENSIVEL AS QUESTÕES SOCIAIS E O IDEALIZADOR DO 'AÇÃO DA CIDADANIA CONTRA A FOME E PELA VIDA'.

Autor
Gilvam Borges (PMDB - Movimento Democrático Brasileiro/AP)
Nome completo: Gilvam Pinheiro Borges
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • FALECIMENTO DO SOCIOLOGO HERBERT DE SOUZA, HOMEM SENSIVEL AS QUESTÕES SOCIAIS E O IDEALIZADOR DO 'AÇÃO DA CIDADANIA CONTRA A FOME E PELA VIDA'.
Publicação
Publicação no DSF de 12/08/1997 - Página 16031
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM POSTUMA, HERBERT DE SOUZA, SOCIOLOGO, ESTADO DO RIO DE JANEIRO (RJ).
  • ELOGIO, VIDA PUBLICA, HERBERT DE SOUZA, SOCIOLOGO, DEFESA, VIDA, CIDADANIA, INTEGRAÇÃO SOCIAL, COMBATE, FOME, MISERIA, POPULAÇÃO.

O SR. GILVAM BORGES (PMDB-AP. Pronuncia o seguinte discurso) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, desde sábado, o Brasil está de luto pelo desaparecimento de um de seus maiores estadistas: BETINHO.

Personagem imortalizado na música "O BÊBADO E O EQUILIBRISTA",feito hino do movimento pela anistia, como o irmão mais velho do famoso cartunista HENFIL, tornou-se, depois, com seu próprio nome e por seu próprio mérito, o mais influente político sem mandato da história recente do país.

Antena sensível da sociedade para a questão social e contraponto ao discurso hegemônico da eficiência econômica a qualquer preço, BETINHO representou a antítese do Brasil oficial, muitas vezes insensível à dor surda dos excluídos, ou como quer nosso Presidente, "à voz rouca das ruas".

BETINHO encarnou o sofrimento popular e deu voz às milhões de bocas famintas e silenciosas de nosso povo.

O grande mérito de sua pregação humanista foi o de politizar o problema da fome, colocando sua solução como obrigação social comum a todos os brasileiros, detentores ou não de cargos públicos, e não tema de interesse apenas de técnicos especializados em nutrição, demografia e economia.

A fome foi promovida por BETINHO à verdadeira vergonha nacional que é, de fato.

BETINHO viu o que, segundo NELSON RODRIGUES ninguém vê, o óbvio, isto é, a contradição lógica, ética e política existente entre fome e cidadania, como noções radicalmente excludentes.

Num país de mendigos, de sem-terra, de sem-teto, de sem-escola, não há lugar para a liberdade e a igualdade, premissas das revoluções democráticas modernas, pressupostos do Estado de Direito, fundamentos de qualquer organização social justa.

Nada mais oposto à idéia de dignidade contida no conceito de cidadania que a fome, a carência de um mínimo necessário à sobrevivência física.

O faminto é, sobretudo, um humilhado, um excluído absoluto, um ser definido pela suprema negação, que é a negação da própria vida.

Não há paz para quem tem fome: a vida é uma guerra constante e solitária contra a ameaça iminente de extinção.

Aqui está a grande clarividência de BETINHO, cujo movimento jamais se limitou ao simples combate à fome, em sua literalidade.

Ao invés, reeditando o exemplo de GANDHI, BETINHO deu dramaticidade ao tema, ao batizar sua iniciativa de

"AÇÃO DA CIDADANIA CONTRA A FOME E PELA VIDA", mostrando que não basta erradicar a fome, é preciso fazer disso uma luta conjunta da cidadania, uma luta cívica de integração social dos deserdados, um exercício do dever político da solidariedade, que não se esgota na mera doação de alimentos.

A figura de BETINHO só pode ser corretamente apreciada, se compreendida não como a imagem farisaica e distorcida da generosidade cristã, que só serve para reforçar a diferença social, para aprofundar a oposição entre quem tem a ponto de dar suas sobras e quem não tem a ponto de recorrer à caridade pública.

Não, para BETINHO, lutar contra a fome só faz sentido como parte integrante da luta pela cidadania, entendida como luta de todos e não só dos famintos.

Garantir o pão nada significa, senão o primeiro passo no longo caminho da conquista de uma pauta básica de direitos civis, sociais e políticos, capazes de fazer da sociedade brasileira uma sociedade de iguais.

Este o maior sinal da largueza de espírito de BETINHO: seu objetivo nunca foi o de aplacar estômagos, mas sim o de falar à consciência dos que não tem comida, através da consciência dos que têm.

A fome que preocupava BETINHO é a fome de igualdade, de justiça, fome bíblica, fome de grandes transformações, que faz bem-aventurados os que a experimentam, seja em si próprios, seja em seus semelhantes, como está no Evangelho de São Mateus.

Esta fome, que nos irmana a todos na mesma luta e cuja dor é mais intensa na consciência que nos estômagos, esta é a fome contra a qual BETINHO nos ensina que vale a pena lutar.

Neste combate patriótico, BETINHO deu literalmente seu sangue, contaminado pelas transfusões de que dependia para viver, pelos vírus da AIDS e da hepatite.

Assim, até o fim, sofreu na carne as mazelas de um sistema social absurdo e injusto que sempre denunciou e contra o qual se insurgiu: pagou com a vida o tributo cobrado por uma rede de saúde cínica e tolerante com o comércio de sangue infectado.

Nunca em nossa história a expressão "grande homem" teve melhor cabimento que ao caso desse frágil sociólogo, alma ardente, enfermo de indignação contra o apartheid social brasileiro.

Toda homenagem lhe é devida.

Nenhuma, porém, lhe faria tanta justiça como a de seguir-lhe o exemplo, dando continuidade às suas batalhas, que são as de todos nós por um país melhor de se viver.

Quem combate contra a fome, combate a favor da vida, combate, depois dele tornado, sobretudo, num dever cívico.

BETINHO deu foros de realidade à frase poética de DRUMMOND para quem " há momentos em que a vida é uma ordem: a vida, apenas, sem mistificações".

Soldado da vida, este civil até as últimas conseqüências, viveu e sofreu o Brasil com a fidelidade apaixonada dos visionários.

DARCY RIBEIRO e BETINHO, companheiros de viagem e de entusiasmo pela vida, estão mortos.

Que a morte dos sonhadores, no entanto, não signifique a morte dos sonhos.

Este sonho, o de um Brasil sem fome, ainda não acabou.

Era o que tínhamos a dizer, Sr. Presidente.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 12/08/1997 - Página 16031