Discurso no Senado Federal

HOMENAGEM A MEMORIA DO SOCIOLOGO HERBERT DE SOUZA, O BETINHO.

Autor
Pedro Simon (PMDB - Movimento Democrático Brasileiro/RS)
Nome completo: Pedro Jorge Simon
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • HOMENAGEM A MEMORIA DO SOCIOLOGO HERBERT DE SOUZA, O BETINHO.
Aparteantes
Lúcio Alcântara.
Publicação
Publicação no DSF de 04/09/1997 - Página 18081
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM POSTUMA, HERBERT DE SOUZA, SOCIOLOGO, ESTADO DO RIO DE JANEIRO (RJ).

O SR. PEDRO SIMON (PMDB-RS. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador. ) - Sr. Presidente, V. Exª fica muito bem presidindo a sessão; parece um veterano de vários mandatos.

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, venho hoje, ainda que tardiamente, fazer meu pronunciamento sobre o Betinho.

Um pouco enfermo em Porto Alegre, licenciado do Senado, enviei, via fax, um requerimento para realização de uma sessão solene do Senado em homenagem ao Betinho. No entanto, foi aprovado outro requerimento que destinava a primeira parte da sessão a essa finalidade, e o Presidente do Senado resolveu cumpri-lo.

Em casa, pela TV Senado, assisti à sessão e aos pronunciamentos feitos em homenagem a Betinho. Mas venho a esta tribuna, Sr. Presidente, porque a consciência diz que é minha obrigação. Como deixaria de trazer aqui a minha palavra e a minha homenagem a uma figura como Betinho? Tenho o testemunho pessoal da convivência de mais de dois anos com ele; portanto, tenho obrigação de apresentar à Nação o seu trabalho, que acompanhei e do qual participei.

Tudo foi dito aqui, Sr. Presidente. Os oradores, naquela sessão especial, foram profundos e eloqüentes na exposição das idéias, do pensamento e da luta do Betinho. Na verdade, nunca se haverá de falar demais desse homem. Creio que Betinho é uma dessas figuras que marcam a história de um país. O seu exemplo nos faz sentir como a história e a vida debocham, às vezes, das figuras e dos cidadãos.

Tive grande amizade por uma pessoa chamada Teotonio Vilela, que aprendi a respeitar. E a fase mais épica de sua vida, em que se dedicou ao Brasil e escreveu uma das páginas gloriosas da história do País, coincide exatamente com a época em que não pôde ser candidato à reeleição no Senado, pelo exagero da sua doença: quatro cânceres. Alquebrado, com duas muletas, arrastando-se, ele percorreu o Brasil. Arrastando-se, levava uma mensagem de fé e de esperança no futuro do Brasil. As pessoas perguntavam por que Teotonio Vilela, sendo rico, com família e interesses diversos, não desfrutava seus últimos dias na Europa, no Nordeste ou na sua Alagoas. Ele ficou ao lado do povo até o último momento e se dirigiu a Alagoas para morrer.

Betinho foi uma pessoa que já nasceu marcada. Ele e seus irmãos hemofílicos viviam preocupados, porque não podiam sofrer um corte ao fazer a barba e, quando crianças, não podiam machucar-se. Em sua casa, as cantoneiras dos móveis eram protegidas para evitar acidentes. Essa foi a sua vida, bem como a de seus irmãos. Ele podia ter sido um revoltado, um amargurado, uma pessoa de mal com a vida; no entanto, foi um lutador.

Quando jovem, participou do movimento da JUC - Juventude Universitária Católica. Não satisfeito com aquele movimento, fez a união da JUC com os comunistas e fundou a AP - Ação Popular, movimento profundamente idealista que buscava, por meio dos extremos, uma saída para a sociedade. Dirigiu a UNE, onde lutou. No Governo de Jango, foi Chefe de Gabinete do Ministro da Educação; veio a Revolução e o pegou lutando. Ele foi para o exílio e continuou lutando; voltou do exílio e continuou lutando!

Depois contraiu a AIDS. Hemofílico, com transfusões permanentes de sangue, fruto da irresponsabilidade de um País, viu seus irmãos morrerem, conviveu com a AIDS. Era para ser um revoltado, uma pessoa de mal com o mundo, que dissesse: "Que mal eu fiz para essas coisas me acontecerem?"

E nós, que temos saúde, dinheiro e posição social; nós, que convivemos com festas e com a alegria, não olhamos para os lados, não nos preocupamos com o que existe à nossa volta.

O SR. PRESIDENTE (Otoniel Machado) - Sr. Senador, gostaríamos de pedir a atenção do Plenário para registrar a presença dos Senadores Balzar e Dela Sota e dos Deputados Maureti e Rubel, membros do Partido Justicialista argentino. Queremos dar as boas-vindas aos nossos visitantes.

Senador Pedro Simon, V. Exª continua com a palavra.

O SR. PEDRO SIMON (PMDB-RS) - Senadores e Deputados irmãos, o Brasil é e continuará irmão da Argentina, e não será nenhum tipo de intriga dos Estados Unidos que nos vai afastar, pois temos o Mercosul. Durante anos eles impediram o nosso entendimento e agora que o estamos encontrando não será essa bobagem de o Brasil pertencer ou não ao Conselho de Segurança da ONU - na minha opinião, ele não deve fazê-lo, nem nada que eles inventem - que nos vai afastar.

É com muita alegria que, em nome do Parlamento, levo o carinho, o abraço e o afeto aos ilustres Senadores e Deputados do Partido Justicialista, partido este que está fazendo um belíssimo governo na Argentina. O Congresso brasileiro fecha com a Argentina e com o Mercosul, totalmente. Somos irmãos e haveremos de continuar sendo, porque nenhuma intriga nos afetará.

O Sr. Lúcio Alcântara (PSDB-CE) - Concede-me V. Exª um aparte?

O SR. PEDRO SIMON (PMDB-RS) - Ouço V. Exª com prazer.

O Sr. Lúcio Alcântara (PSDB-CE) - Senador Pedro Simon, antes de mais nada, congratulo-me com os Parlamentares argentinos que visitam o Congresso Nacional, o que certamente contribui para reforçar nossos laços políticos, culturais e afetivos. Como disse V. Exª, trata-se também de uma espécie de vacina contra essa manobra insidiosa de separação desses povos que têm tudo para ser irmãos, tornando realidade, de certa maneira, algo de que tive noção mais nítida quando comecei a viajar pelos países da América do Sul: o ideal de Bolívar, que falava da grande Pátria. Bolívar viu desfazer-se nesse conjunto de países que terminaram estabelecendo-se e tornando-se independentes em função até de dissidências e mal-entendidos esse grande ideal. Agora, nesse embrião que é o Mercosul, tentamos recriar o ideal bolivariano de construir realmente uma comunidade de povos unida pelos mesmos ideais. O discurso de V. Exª chama atenção pelo fato de estar mostrando que a fragilidade física não leva, em conseqüência, à debilidade moral, ética ou política. Ocorre o contrário em certos casos. Citou dois exemplos: Teotônio Vilela, que, em sua decadência física, minado pela doença, moléstia pertinaz, teve, em seu momento culminante, no apogeu de sua vida pública, o reconhecimento nacional, entrando para a história justamente numa hora em que se encontrava afetado gravemente por um câncer que terminou roubando-lhe a vida, mas que, antes, o maltratou bastante, limitando sua condição física. Todavia, numa espécie de compensação, brilhou, como nunca, sua estrela intelectual. Já ouvi depoimentos de V. Exª sobre sua convivência com Teotônio Vilela, aludindo inclusive ao período em que moraram juntos no mesmo apartamento.

O SR. PEDRO SIMON (PMDB - RS) - Está aqui Nisio Tostes, meu Chefe de Gabinete, que era uma espécie de "Madre Tereza de Calcutá" de Teotônio Vilela, uma vez que, por dois anos e meio, do gabinete para a minha casa, convivia, conversava e acompanhava o que foi a fantástica vida de Teotônio Vilela.

O Sr. Lúcio Alcântara (PSDB-CE) - V. Exª, mais uma vez, está rendendo um tributo de inteira justiça. E, evocando esses exemplos, tenta talvez dar brios em outros políticos no sentido de fazer com que a emoção aflore. Cito, como exemplo, o caso do Betinho, uma pessoa marcada pela enfermidade, pela doença e pela debilidade física ao longo de sua vida. O Senado, por uma iniciativa minha, realizou uma sessão com o intuito de homenageá-lo. Nessa sessão, muitos Senadores se manifestaram, inclusive V. Exª, que falou sobre o receio que ele tinha de sofrer qualquer pancada, qualquer traumatismo que lhe poderiam ser fatais. No entanto, houve um período da vida dele em que trabalhou em uma fábrica mesmo se vendo impossibilitado de exercer aquelas funções dadas suas limitações. Todavia, era um homem de uma energia enorme - o que pude presenciar, uma vez que em alguns momentos tive um convívio muito próximo com ele -, capaz de mobilizar vontades em torno da Ação da Cidadania contra a Miséria e a Fome e pela Vida. Nesse sentido, com oportunidade e com calor humano, V. Exª evoca esses exemplos para mostrar que essa capacidade de se doar, de servir, de procurar realizar o bem comum não tem nenhuma relação com a nossa vitalidade, dependendo muito mais de uma força interior que é capaz de nos mover nessa direção. E bem hajam Betinhos e Teotônios pelo Brasil afora, para promover o engrandecimento desta Nação.

O SR. PEDRO SIMON (PMDB-RS) - Muito obrigado a V. Exª.

Sr. Presidente, tenho aqui um artigo de D. Mauro Morelli: "Memória e Legado do Betinho" - Profeta e Pastor. Peço que alguns trechos desse artigo sejam anexados ao meu pronunciamento. D. Mauro me mandou isso junto com uma carta, em que conta o que foi a cruzada de Betinho.

O que vou falar agora, Sr. Presidente, não tem sentido outro senão o de esclarecer um detalhe que acho importante e não por ter sido eu Líder do Governo na Presidência do Sr. Itamar Franco: Betinho presidia uma entidade não-governamental, o IBASE - Instituto Brasileiro de Análises Sócio-Econômicas -, presidia o Movimento Pela Ética na Política, além de realizar uma caminhada buscando o diálogo no sentido do combate à fome. Mas a campanha dele seria igual a tantas outras que estão por aí, muitas, meritórias, positivas, concretas, mas que ficavam no meio do caminho.

Um dia, o Lula, então Presidente do PT, procurou-me no gabinete do Senador Eduardo Suplicy, para apresentar um documento em que expunha também uma campanha de combate à fome. Naquela oportunidade, pedia-me ele para marcar uma audiência com o então Ministro da Fazenda.

Achei a proposta importante. Ao invés de falar com o Ministro da Fazenda, falei com o então Presidente Itamar Franco, que marcou uma reunião. Houve três reuniões no gabinete do Presidente da República com vários Ministros - e eu estava lá - e o Presidente do PT, que levou a sua equipe para expor o plano.

Repare: uma idéia que parecia ser como tantas outras, mas uma idéia importante do PT, do Lula, foi levada ao Presidente da República.

Normalmente, um Presidente da República não gosta de receber essas contribuições, principalmente de um partido adversário, mas o Presidente Itamar Franco fez questão de receber a equipe e montar um grupo de trabalho. Desse grupo de trabalho, surgiu o Conselho Nacional de Segurança Alimentar - Consea, de caráter consultivo, diretamente ligado ao Presidente da República, composto por nove ministros, mas com ampla maioria de cidadãos indicados pela sociedade. O então Presidente Itamar Franco queria que o Betinho fosse o Presidente. Betinho pertenceu ao Conselho mas indicou em seu lugar, para Presidente, Dom Mauro Morelli.

O Conselho reunia-se duas, três vezes por mês. O Presidente Itamar Franco fazia questão absoluta que o grupo constasse como instituição não-governamental. Seus ministros tinham que comparecer; ele, não. Por várias vezes, eu, como Líder, fiz reunião com o Governo para levar adiante aquelas decisões.

O que diz Dom Mauro Morelli em relação ao Conselho?

      "Assim, o Governo Itamar surge das ruas tomadas pela indignação do povo. Ética e cidadania.

      Atendendo a uma proposta do Presidente do Partido dos Trabalhadores e a uma convocação do Movimento pela Ética na Política, o Presidente realiza reunião ministerial, em 18 de março de 1993, com a presença de Herbert de Souza, o Betinho, por mim acolitado. Ultrapassando as barreiras de velhos processos políticos, foi rasgado o véu que encobria a realidade, tornando público o Mapa da Fome com o número escandaloso de 32 milhões de indigentes e de famintos.

      Em 16 de abril, o Presidente recebia das mãos da comissão, da qual Betinho e eu fazíamos parte, o Plano de Combate à Fome e à Miséria -, Princípios, Prioridades e Mapa das Ações do Governo, incluindo o projeto do Conselho Nacional de Segurança Alimentar, Consea, criado pelo Decreto nº 807, de 24 de abril de 1993.

      O Conselho Nacional de Segurança Alimentar foi instalado na significativa data de 13 de maio. Na mesma solenidade, os conselheiros foram empossados. Entre os 21 conselheiros da sociedade civil estava Betinho, acompanhado de mais 18 companheiros indicados pelo Movimento pela Ética na Política. Não foi o Presidente Itamar, não foi o Governo que indicou. O Movimento pela Ética na Política foi que indicou os 18 representantes que constituíram o Conselho Alimentar de Combate à Fome.

      Como Betinho não reunia as condições físicas necessárias para assumir a efetiva coordenação do conselho, a secretaria nacional do Movimento pela Ética na Política apresentou meu nome ao Presidente Itamar, para a tarefa de secretário executivo. Betinho muito insistiu para que a presidência ficasse com o próprio Presidente da República. O Presidente não aceitou presidir, por si próprio, o novo Conselho, integrado também por nove Ministros de Estado, e preferiu que a decisão da entrega fosse feita a mim, um representante da sociedade civil."

Mais adiante, disse Dom Mauro:

      "Com a criação do primeiro conselho não-paritário da história da República inauguramos relações e critérios novos para o exercício do Poder."

Os membros indicados pelo Movimento pela Ética na Política eram ampla maioria para decidir o que bem entendiam. O Governo não estava impondo decisões, nem impondo maioria. É a primeira vez, Sr. Presidente, que o Governo se une a um movimento, a uma sociedade não-governamental, para fazer um trabalho a favor da sociedade, colocando em primeiro lugar a entidade não-governamental.

Veja, Sr. Presidente, que é a segunda vez que venho a esta tribuna para falar da mesma tese. A primeira vez foi quando eu disse que o Presidente Itamar aceitou, consentiu uma entidade ligada a ele, para uma comissão de combate à corrupção, uma comissão especial para apurar a corrupção no seu Governo. Os componentes dessa comissão eram elementos da sociedade sem nenhuma ligação com o Governo, com absoluta independência.

Agora acontece isso com a segunda entidade, uma entidade das mais importantes. Para um combate à fome e à miséria, o Governo fez questão que a sociedade a favor da ética na política indicasse os representantes, tivesse ampla maioria, indicasse o coordenador e assumisse o comando.

Diz o Bispo Dom Morelli:

      "Com a criação do primeiro conselho não-paritário da história da República, inauguramos relações e critérios novos para o exercício do poder. Reunindo a sabedoria política do governante e a competência da cidadania, o Consea transformou-se em espaço de diálogo permanente entre o Governo e a sociedade, instrumento de parceria, de colaboração crítica e de coordenação política de projetos para o combate à fome e erradicação da miséria.

      O pluralismo de agremiações políticas, de correntes ideológicas e de confissões religiosas a que pertencíamos, não criou entre nós barreiras insuperáveis ou intransponíveis.

      Em dois anos de caminhada, o Consea foi instrumento importante no processo de valorização e de fortalecimento da Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida. Com recursos garantidos pela Presidência da República, conselheiros e colaboradores pudemos viajar por todas as Unidades da Federação participando de lançamentos, encontros, seminários e congressos da Ação da Cidadania.

      Graças a essa parceria, com transmissão direta pela Embratel e Radiobrás, a sessão solene de lançamento da Ação de Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida, realizada no Auditório Petrônio Portella do Senado Federal, em 23 de junho de 1993, transformou-se em evento nacional. Na noite do mesmo dia, por decisão do Presidente Itamar, em rede nacional de rádio e televisão, o conselheiro Herbert de Souza e eu pudemos convocar toda a Nação para assumir o desafio de combater a fome através da solidariedade e a erradicar a miséria através de decisões políticas e mudanças estruturais."

O Presidente da República convocava uma rede de rádio e televisão, e não era Sua Excelência quem falava, nem seus Ministros, mas o Betinho - que, diga-se de passagem, batia no Governo Itamar, porque era Oposição - e o Bispo de Caxias, considerado um bispo de esquerda, que também não era um simpatizante de Itamar. Mas a cadeia de rádio e televisão foi convocada para eles, para que em nome da sociedade convocassem a sociedade para a campanha da erradicação da fome e da miséria. O que estou dizendo aqui é o pronunciamento de D. Mauro Morelli, que foi secretário executivo desse conselho.

Sei quantas vezes o Sr. Itamar e o Ministério ficaram magoados, porque o Betinho era duro, ele batia. Às vezes, o Itamar se queixava da dureza do Betinho, mas nem por isso o Governo pensou em tirá-lo.

Ainda Dom Morelli:

      "Colaboramos de forma crítica e dinâmica em ações de Governo, como no Programa descentralizador e renovador da Merenda Escolar, do Ministério da Educação; iniciativas e ações do Ministério da Saúde; o gigantesco Programa Emergencial de Distribuição de Alimentos - Prodea, para 2 milhões e 50 mil famílias, em 1.163 Municípios do semi-árido, através do Ministério da Agricultura e da magnífica e indispensável colaboração do Ministério do Exército, com o serviço patriótico de 12 mil oficiais e soldados do Exército brasileiro, sob o comando de Betinho e sob a coordenação não-governamental do Consea.

      Fomos parceiros e testemunhas da contribuição infatigável e competente do Ministério do Trabalho na promoção de relações mais justas no mundo do trabalho e do esforço para promover a geração de empregos. Sentimos crescer nossa esperança com a retomada da Reforma Agrária, através da centena de decretos de desapropriação de propriedades agrícolas ociosas para assentamento dos sem-terra."

      Quem está falando não é o Líder o Governo; quem está falando é o Dom Mauro Morelli, Bispo da Igreja Católica, Apostólica, em Duque de Caxias, à época Presidente do Consea. Acompanhamos o processo de aprovação do Orçamento Geral da União, para garantir a continuidade e o aprofundamento dos programas de combate à fome e à miséria, bem como a implementação de projetos de saneamento de habitações em favelas.

      Importante contribuição foi dada pelos cidadãos funcionários de 32 empresas públicas, estaduais e autárquicas" - que foram colocadas à disposição, sob a coordenação do Betinho e de D. Mauro Morelli para a campanha de combate à fome - "atendendo à determinação do Presidente e à convocação do Movimento pela Ética na Política, ajudaram a nascer e a crescer por esse imenso território brasileiro a Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida, criando incontáveis comitês de solidariedade e promovendo, de forma criativa, inúmeras iniciativas de combate à fome e à miséria.

      Em reunião histórica ocorrida em agosto de 93, no Fórum de Ciência e Cultura da Universidade Federal do Rio de Janeiro, com a presença de presidentes de 30 Estatais, sob a batuta do Betinho, foi assinado o Termo de Adesão do setor público à grande cruzada nacional da Ação da Cidadania."

      "Vinculando-se ao Conselho Nacional de Segurança Alimentar, o Comitê das Empresas Públicas fez tramitar propostas que, transformadas em resoluções e endossadas pelo Presidente Itamar, foram encaminhadas aos diversos Ministérios envolvidos.

      Em parceria com a Secretaria Nacional da Ação da Cidadania, confiada a Maria José Jayme, a Bizeh, Diretora do Inesc, e com a colaboração do Comitê de Empresas Públicas, foi desencadeado o processo de preparação da 1ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar para definir os caminhos da sociedade e do governo no combate à fome e à erradicação da miséria. A grande meta da Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida, expressão cunhada por Dom Luciano Mendes de Almeida, mais conhecida por Campanha da Fome ou Campanha do Betinho, sempre foi colocar a fome como prioridade da agenda política e implantar a Política de Segurança Alimentar como resposta exigida pela cidadania do povo brasileiro.

      Entre nós sempre foi consenso que a Reforma Agrária é projeto político eficaz e de baixo custo econômico para combater a fome e romper o ciclo da miséria. Da mesma forma uma Política Agrícola cuja meta primeira e prioritária seja a produção diversificada e regionalizada de alimento para consumo do povo. Defendíamos, ainda, a criação de oportunidades e garantia de trabalho para jovens e adultos. Por último, considerávamos urgente e inadiável a implantação de uma Política Salarial que reconhecesse a dignidade humana, valorizasse o trabalho e garantisse vida com dignidade e qualidade para o trabalhador ou trabalhadora e sua família."

      "Pudemos realizar vinte e seis conferências regionais e celebrar em Brasília, de 27 a 30 de julho de 1994, com mais mil e oitocentos delegados, a 1ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar. Assim como em nome da Segurança Nacional fora construída uma potência econômica, terceiro produtor e exportador de alimentos, da mesma forma, em nome da segurança alimentar, queríamos então combater a não-cidadania e garantir comida em todas as mesas."

      "Nossa proposta de Política de Segurança Alimentar não se reduz à distribuição de sacolas de alimentos ou de cestas básicas. Segurança alimentar é direito à vida e exigência de cidadania.

      Segurança alimentar faz parte do novo e mais amplo conceito de segurança que abrange desde a garantia de atendimento às necessidades básicas para o crescimento harmonioso da criança até o respeito às minorias e aos dissidentes. Acima da segurança das coisas e do Estado, a segurança das pessoas. Segurança alimentar é garantia de direito básico da cidadania. Em cada mesa o pão nosso de cada dia adquirido com dignidade e suficiente para assegurar as necessidades nutricionais de cada pessoa."

Mais adiante, continua Dom Mauro:

      "A ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida, com a 1ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar, propunha um novo projeto de Brasil capaz de oferecer ao povo brasileiro uma qualidade de vida correspondente à sua riqueza, isto é, condições de vida condizentes com a dignidade humana e com as exigências básicas para a realização da pessoa em sociedade."

Sr. Presidente, não lerei o final do pronunciamento porque nele estão presentes algumas críticas ao atual Governo. Esperavam, D. Mauro e Betinho, que o atual Governo continuasse aprimorando o que o anterior tinha feito. Surpreendentemente, o primeiro ato do Governo foi extinguir o Conselho: fora a presença de entidades de um órgão coordenado pelo Governo, com a presença do Governo, para fazer o que a sociedade estava fazendo.

Leio trecho da última entrevista de Betinho publicada no O Globo.

      "Setores da esquerda nunca engoliram esta campanha porque sempre pensaram que a solução dos problemas estruturais não passava pelo conjuntural; que o amanhã não passa pelo agora. Se você diz: quem tem fome tem pressa, tem que comer; dizem: assistencialismo".

Betinho participou desse debate. Diziam: "O Betinho vai entrar em numa campanha contra a fome distribuindo alimentos? Temos de resolver os problemas estruturais, temos de resolver as mudanças na sociedade. O Betinho entrar numa campanha dessas é ridículo, porque ele não está equacionando o problema." Betinho contra-argumentava dizendo - e eu o ouvi muitas vezes - que sabia que aquilo não era o ideal, que doía em sua alma dar alimento a um cidadão que não tem o que comer por caridade.

A solução propugnada por Betinho era dar condições para que, com dignidade, essas pessoas mantivessem suas famílias com o seu trabalho. Dizia ainda que não podia vê-las morrendo de fome enquanto a oportunidade de trabalho digno não aparecia para 32 milhões de brasileiros. Ele tinha conhecimento da provisoriedade dessa campanha e sabia que ela nada poderia resolver. Contudo, a campanha iria existir enquanto fosse criado um esquema para produzir e distribuir mais alimentos; alimentos que, posteriormente, não seria dados por caridade, mas por direito.

Sr. Presidente, em outra entrevista ao Correio Braziliense, Betinho argumentava:

      "Há vários aspectos positivos na ação do Governo Itamar Franco: ter assumido a questão como prioridade absoluta; ter criado o Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea) e dado apoio; e a introdução na política da questão da segurança alimentar."

      Foi a primeira vez na História que isso aconteceu e aconteceu no Governo Itamar".

São palavras de Betinho.

Poderão perguntar por que estou falando assim. Estou falando assim, Sr. Presidente, porque, na minha opinião, enganam-se os que imaginam que vamos equacionar o problema do Brasil só por meio do Governo. Engana-se o Governo se pensa assim; engana-se o cidadão que pensa isso.

Há muitas pessoas no Brasil, Sr. Presidente, que pensam que exercer a cidadania é votar no Presidente, é votar no Deputado, é votar no Governador, é votar no Prefeito, porque essas pessoas vão resolver os problemas do país. É claro que não. A solução é, em conjunto, nós colaborarmos para resolver os problemas.

Não vejo nada mais lindo no Brasil - aliás, no mundo inteiro - que as entidades não-governamentais. As organizações não-governamentais, no mundo inteiro, são um exemplo - até no Primeiro Mundo - dado por pessoas que se dedicam ao combate à AIDS, ao combate às armas atômicas, à defesa do meio ambiente. Em qualquer lugar, existem essas entidades que se reúnem em defesa de alguma coisa.

Quanto maior a noção de cidadania, quanto maior o progresso, quanto maior a cultura de um povo, mais essas pessoas se dão conta da sua importância. Betinho fundou uma das entidades mais belas do Brasil, que foi exatamente essa que tanto lutou contra a fome.

Sr. Presidente, estou dizendo essas coisas porque, desde que Betinho morreu até hoje, eu não vi em nenhum jornal, em nenhum dos pronunciamentos feitos dessa tribuna, nada nesse sentido.

Não estou fazendo esse destaque porque essa campanha foi lançada no Governo Itamar, do qual eu era Líder. Pouco me importa isso, Sr. Presidente. Estou fazendo esse destaque para ressaltar a importância do trabalho do Governo junto com a sociedade. Estou aqui para chamar a atenção desta Casa para o significado de tudo isso.

Em primeiro lugar, é preciso que o Governo entenda que não é o dono da verdade e não pense que pode ser o único a alimentar o povo, que basta designar órgãos e pessoas para fazer esse trabalho em seu nome.

O Governo Itamar fez diferente: os representantes do Conselho Nacional de Segurança Alimentar - Consea - foram indicados por intermédio do Movimento pela Ética na Política, que também foi muito importante porque, junto com a OAB, a ABI, e a CNBB, veio aqui e nos deu força, apoio e estímulo para aprovarmos o impeachment. Naquela entidade, junto com o Betinho, surgiram os membros do Conselho Nacional de Segurança Alimentar. É para isso que estou chamando atenção. Quero dizer que ação desse tipo é viável.

Betinho conseguiu mobilizar, no Brasil inteiro, uma infinidade de entidades organizadas para fazer esse trabalho sem a presença do Governo. Os funcionários do Banco do Brasil se organizaram e fizeram das agências do Banco um ponto de apoio para a campanha de combate à fome. Lá eles recebiam as doações e as distribuíam para os famintos. Também o Exército Nacional colaborou. Além dos funcionários do Banco do Brasil, doze mil cidadãos do Exército foram coordenados pelo Betinho e por Dom Mauro Morelli.

Sr. Presidente, quero chamar a atenção para o fato de que não há o que pague esse trabalho feito pelo Betinho, por Dom Mauro Morelli, pelo Consea, pelos doze mil integrantes do Exército Nacional, pelos funcionários do Banco do Brasil e também pelas empresas estatais. Esse trabalho não tem preço! As entidades estatais o fizeram, como a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, mas não como entidade; fizeram esse trabalho como cidadãos, colaborando em favor de uma causa que era nacional! Eu não conheço nada mais importante do que isto, Sr. Presidente: trazer a cidadania para colaborar nesse sentido.

O Betinho votou no Lula, Sr. Presidente. E nunca eu, que votei no Presidente Fernando Henrique, ou alguém do Governo Itamar, que fechava com o Fernando Henrique, pedimos para o Lula votar no Fernando Henrique. Até o último dia, o Betinho - ele e o bispo - fizeram a distribuição de alimentos por todo o Brasil!

Sr. Presidente, nunca houve uma palavra no sentido de que essa distribuição não fosse feita a quem mais precisava. Jamais o Presidente Itamar permitiu que aquela campanha fosse usada em favor de seu candidato na campanha para a eleição! E jamais o seu candidato aceitaria isso! Jamais o Lula se queixou que fosse usada a campanha contra ele, e jamais o Presidente Itamar permitiu que a campanha fosse usada em favor do Lula. Em uma campanha acirrada, dura, entre dois candidatos, ficou de fora a campanha contra a fome, que se desenvolveu e funcionou até o dia das eleições, não precisando parar porque era época eleitoral. Em nenhum momento, em nenhum lugar, nenhum jornal ou político disse que a campanha do Betinho no Governo Itamar tinha sido usada aqui ou acolá para favorecer esse Prefeito, aquele Deputado, algum candidato a Governador ou a Presidente da República.

Há momentos em que podemos unir toda a cidadania. O normal, Sr. Presidente, era não ter acontecido nada. O Suplicy avisou-me que o Lula queria falar comigo. Quando nos falamos, o Lula mostrou-me uma idéia para combater a fome, solicitando uma reunião com o Ministro da Fazenda para lhe entregar um documento. Falei com o Ministro, e ele recebeu o Lula. Isso é normal na política do Brasil e não é essa a tradução do que se passa numa entidade civil que se apresente. Foi o Lula, Presidente do PT, o candidato a Presidente da República, com 45% da preferência nacional na época.

Quando falei com o Presidente Itamar, ele disse para trazer o Lula, que se assustou por ter de encontrar-se com o Presidente da República, e refez o projeto. Já não se tratava mais daquelas duas páginas que ele tinha me dado - era um dossiê, e ele levou uma equipe de técnicos do PT, que o Presidente Itamar Franco recebeu como tal. Houve algumas reuniões com o grupo de trabalho que fez os estudos e decidiu lançar a idéia.

Lançada a idéia, restava saber a quem entregar: a nós mesmos, a um Ministro, a alguém da Confraria do Pão de Queijo? Não, ao Betinho e ao Bispo de Duque de Caxias. Quem indicaria os membros do Conselho? A entidade pela ética na política. Entraram os nove Ministros, os membros daquele Conselho, exigiram, porque eles eram importantes: estavam ali por serem Ministros da Fazenda, do Planejamento, da Saúde, do Trabalho, da Agricultura, dos Transportes, enfim, porque eram os Ministros que davam garantia às verbas e aos estímulos para que o Projeto fosse adiante.

Por isso, Sr. Presidente, volto a dizer que li inúmeras páginas de discursos falando do nosso querido Betinho e da história extraordinária de sua vida. Mas não vi essa análise em nenhum jornal ou pronunciamento. Repito que não estou preocupado com a análise em termos do Governo Itamar, mas penso no gesto do Betinho: adversário, Oposição ou até revolucionário que aceitasse participar, sentar à mesa e ser um coordenador, ele entendia que a campanha contra a fome estava acima de tudo.

Foi mérito do Presidente Itamar Franco, que chamou o Betinho? Maior mérito foi do Betinho, que aceitou. Muitos arregalaram os olhos, perguntando o que Betinho estaria fazendo, se ele seria um colaborador do Governo Itamar. Muita gente estranhou.

Quando a Erundina aceitou ser Ministra, o PT ficou magoado. Quando Betinho aceitou fazer parte do Governo Itamar, ele disse: "Não devo nada a ninguém, a não ser à minha consciência. Ficarei aqui enquanto sentir que não estou sendo usado; ficarei aqui enquanto sentir que posso fazer, posso ajudar, posso colaborar e que não estão apenas usando meu nome." Lembro que ele disse isso no seu primeiro pronunciamento, que foi até meio agressivo.

Betinho ficou até o fim, porque até o fim sentiu que não estava sendo usado e que estava ajudando, estava colaborando. Em nenhum momento, houve pedido de renúncia ou ameaça de renúncia, nenhum protesto. Reivindicações, queixas e exigências, isso aconteceu. Mas, em nenhum momento, ele sentiu que estava sendo usado ou que não estava sendo prestigiado.

Estou falando isso, repito, para mostrar o que pode ser feito por este País pelos "Betinhos" da vida. É claro que o Betinho é um símbolo, uma bandeira, uma história. No entanto, não há cidade ou Estado que não tenha o seu "Betinho", que não tenha alguém, doente ou não, enfim, qualquer pessoa, com saúde debilitada ou não, um padre, um estudante, uma senhora que perdeu o marido, não importa quem, mas pessoas com vontade de colaborar. Sinto isso. Quando ando no meu Rio Grande do Sul, quantas são as pessoas que nos procuram dizendo: "Eu quero ajudar, eu tenho tempo. Muitas e muitas vezes, eu não sei o que fazer. Eu quero ajudar". Mas dizem que não se pode chamar essa gente porque a Constituição diz que o trabalho tem que ser remunerado e não se pode trabalhar sem remuneração.

O exemplo do Betinho, a campanha que ele fez, o trabalho que ele desenvolveu, sua luta ao lado da sociedade é um exemplo do que pode ser feito com a sociedade. Por isso, Sr. Presidente, falo aqui. Por isso minha homenagem ao Betinho é diferente de todas as outras. Eu tinha muito o que falar do Betinho, mas quantos discursos já foram feitos? Eu tinha tanto a dizer sobre quem foi o Betinho, das idéias do Betinho, da luta do Betinho, do que foi sua passagem pelo Chile, da luta social, da luta política; eu, que presidi a UNE, poderia dizer da sua luta na direção na UNE. Suas lutas foram tão fantásticas! Tanta coisa poderia ser dita. Mas a mim me parece que tudo já foi dito.

Com todo o respeito aos Parlamentares e à imprensa, este artigo, que vai ser publicado numa revista especializada, "Memória e Legado de Betinho, Profeta e Pastor", de D. Mauro Morelli, do qual li grande parte neste pronunciamento, é o que tem de mais bonito, o que tem de mais profundo, é o que deixa a mensagem do que alguém pode fazer querendo seguir os passos de Betinho.

Seja quem for, na cidade, no município, seja o local onde for, seja a pessoa que for, não precisa ser um Betinho, um líder nacional e internacional; não precisa ser um candidato ao Prêmio Nobel da Paz. Mas ele pode, no seu município, ser um candidato a fazer sua parcela para resolver as questões, ali, na sua rua, na do seu vizinho, na do seu irmão.

Importante, de um lado, Sr. Presidente, é a presença da sociedade. É importante que as pessoas sintam que são responsáveis e que alguma coisa podem fazer. Entretanto, mais importante que isso é o Governo entender que, além de fazer caridade, além de distribuir como favor, além de fazer a ação do Estado, deve convocar a cidadania, para trabalhar junto com ela. É a grande missão.

Isso fez Betinho, isso fez Dom Mauro. Esse foi um período emocionante para a História deste País. Queira Deus que os próximos presidentes possam fazer gestos iguais a esse.

Muito obrigado, Sr. Presidente.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 04/09/1997 - Página 18081