Discurso no Senado Federal

HOMENAGEM AOS CINCO LIDERES DA REVOLTA DO MALES, ENFORCADOS EM SALVADOR, EM 14 DE MAIO DE 1835.

Autor
Abdias Nascimento (PDT - Partido Democrático Trabalhista/RJ)
Nome completo: Abdias do Nascimento
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • HOMENAGEM AOS CINCO LIDERES DA REVOLTA DO MALES, ENFORCADOS EM SALVADOR, EM 14 DE MAIO DE 1835.
Aparteantes
Lauro Campos.
Publicação
Publicação no DSF de 15/05/1998 - Página 8368
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM POSTUMA, VULTO HISTORICO, LIDER, NEGRO, REVOLTA, ESTADO DA BAHIA (BA), DEFESA, POPULAÇÃO, VITIMA, ESCRAVATURA.
  • ANALISE, TEORIA, JUSTIFICAÇÃO, ESCRAVATURA, CONTINENTE, AFRICA, REGISTRO, HISTORIA.

O SR. ABDIAS NASCIMENTO (Bloco/PDT-RJ. Pronuncia o seguinte discurso.) - Sr. Presidente, Srªs. e Srs. Senadores, sob a proteção de Olorum, inicio este meu pronunciamento.

Ainda ontem, ocupamos esta tribuna para evocar criticamente uma data histórica referente ao povo afro-descendente deste País. Hoje retornamos à História, desta vez no intuito de arrancar de um esquecimento injusto, imerecido e antinacional as figuras heróicas de cinco mártires das lutas pela liberdade no Brasil. Estou-me referindo aos cinco homens negros que, num 14 de maio, foram executados na cidade de Salvador, Bahia, pelo crime de não aceitarem as condições cruéis, desumanas e humilhantes em que viviam os africanos no Brasil. Cinco heróis da pátria, cinco campeões da liberdade que esta Nação um dia terá que reconhecer e venerar, ao lado de Tiradentes e dos outros heróis imolados por essa mesma causa. São eles os líderes da Revolta dos Malês, de 1835, marco indelével da resistência negra neste continente e um dos ingredientes básicos do caldo de cultura que propiciaria, mais de cinco décadas depois de sua eclosão, a extinção do sistema escravista em nosso País.

Um dos muitos subprodutos perversos da escravização de povos africanos por europeus, iniciada por portugueses em fins do século XV e que teve no Brasil o seu país de maior duração, foi a elaboração de um substrato teórico voltado à desumanização dos africanos e dos negros em geral, como forma de justificar uma dominação que não encontrava sustentáculo nos fundamentos religiosos e filosóficos do pensamento dos dominadores. Era preciso negar aos africanos e aos seus descendentes a própria condição de seres humanos, ainda que para isso se fizesse necessário distorcer, ou simplesmente negar, as conquistas desses povos nos variados campos do conhecimento e os feitos importantes por eles protagonizados no próprio contexto africano, bem como sua interação com outras culturas, tradições e civilizações.

Entende-se, desse modo, a visão deturpada que hoje se tem da África e de seus filhos. Ela é fruto de um processo de falsificação executado com mestria, desde o século passado, por historiadores, sociólogos e antropólogos engajados numa guerra ideológica, cujo principal objetivo estratégico era e continua sendo justificar - para perpetuar - a supremacia européia sobre os povos “de cor” dos outros continentes. Falo de falsificação por não caber aqui o benefício da dúvida, uma vez que os gregos, para não mencionar os famosos cronistas árabes de obra conhecida e divulgada no Ocidente, haviam descrito com precisão e clareza a diversidade de civilizações com que travaram contato no hoje difamado Continente Africano.

Causa, assim, um enorme choque a todos aqueles educados segundo a tradição eurocêntrica travar conhecimento com as numerosas civilizações avançadas que se desenvolveram em todas regiões do Continente Africano. Uma dessas regiões tem estreita relação com o tema que, hoje, trago à baila: trata-se do Sudão Ocidental. Não o país hoje chamado Sudão, mas uma vasta área da África Ocidental que, atualmente, abriga nações como Nigéria, Gana, Senegal, Mauritânia e Mali, algumas delas nomeadas em homenagem a antigos reinos e impérios que lá floresceram. Estou falando de Estados poderosos, com dezenas de milhões de habitantes, espalhados por milhões de quilômetros quadrados, dotados de uma aprimorada infra-estrutura, de uma cultura requintada e de um considerável poderio bélico, traduzidos em quase vinte séculos de progresso e desenvolvimento.

Baseada fundamentalmente no comércio do ouro, abundante na área, a riqueza material dessa região propiciou o desenvolvimento de uma cultura original, fertilizada pelas trocas comerciais com o restante da África, assim como com a Europa e a Ásia. A religião muçulmana, introduzida pelos comerciantes árabes, acabou sendo adotada pela elite governante, embora fortemente mesclada com elementos das religiões autóctones. O povo, entretanto, permaneceu fiel, em sua maioria, às crenças ancestrais. Dos vários Estados organizados na região, ao longo de quase dois mil anos, três se destacam: o reino de Gana e os impérios do Mali e de Songhai. Sua riqueza cultural pode ser avaliada pelo fato da cidade de Tombuctu, na curva do rio Níger, na atual República do Mali, abrigar, em pleno século XIV, a universidade de Sankore, aonde acorriam intelectuais muçulmanos de todo o norte da África e do sul da Espanha - na época, dominado pelos mouros - para estudar Matemática, Filosofia, História e Direito Islâmico. Por essa época, a atividade mais lucrativa em Tombuctu era o comércio de livros.

Em meados do século XV, com a derrota de Songhai ante os exércitos marroquinos, esse período brilhante da História Africana chegou ao fim. Não por acaso, no momento em que ganha pulso o processo de expansão da Europa, quando os filhos do Velho Continente começam a “descobrir” outras regiões do mundo, todas elas já habitadas, muitas vezes por povos de cultura tecnologicamente avançada. Com isso, cai o preço do ouro, encontrado com abundância em algumas das “novas” terras, provocando a decadência econômica do Sudão Ocidental. Ao mesmo tempo, intensifica-se o processo de escravização de africanos, que acabaria transplantando à força para o outro lado do Atlântico a maior parte do elemento humano que poderia dar continuidade à saga civilizatória africana. Foi assim que os malês, nome genericamente atribuído aos africanos islamizados, vieram parar no Brasil, especialmente na Bahia, região de maior concentração das etnias negro-muçulmanas neste País.

Na verdade, a Revolta dos Malês de 1835 foi o ponto máximo de uma série de rebeliões iniciadas no princípio do século XIX, lideradas por africanos e afro-descendentes praticantes do Islamismo. Alimentadas pelo espírito de Jihad, ou Guerra Santa, fundamentavam-se todas elas na luta pela liberdade diante de inimigos não apenas de outra raça e cultura, mas também de uma religião, a cristã, por eles vista como pagã. Segundo os registros, a primeira dessas rebeliões eclodiu a 28 de maio de 1807. Armados de arcos, flechas, facões, pistolas e fuzis, africanos da etnia haussá enfrentaram portugueses e brasileiros das forças coloniais e, embora derrotados, demonstraram ser não somente valentes e destemidos, mas também - o que é mais importante neste contexto - possuídos de um grau de organização que assustou seus poderosos adversários. O objetivo era simples: apoderar-se dos navios ancorados na Baía de Todos os Santos e neles voltar para a África. Derrotada a insurreição, Antônio e Baltazar, seus principais chefes, são condenados à morte, enquanto outros insurretos recebem penas de não menos de cem chibatadas em praça pública para servirem de exemplo a outros negros que ousassem sonhar com a liberdade.

Isso não impediu, contudo, que outras revoltas se sucedessem em 1809, 1810, 1814, 1816, 1822, 1826, 1827, 1828 e 1830. As penas de morte, deportação e açoites em público com que se viam contemplados seus líderes não pareciam intimidar os negros baianos; pelo contrário, pareciam servir de estímulo ao espírito libertário trazidos e herdado da Mãe África, desvelando plenamente a crueldade do sistema que o subjugava. Mas foi em janeiro de 1835 que aconteceu, na visão dos poderosos da época, a mais grave e perigosa dessa série de insurreições, aquela que ficou conhecida como a Revolta dos Malês. O plano era engenhoso. A rebelião deveria eclodir a 25 de janeiro, durante a festa de Nossa Senhora da Guia. Nessa madrugada, os revoltosos se reuniriam para iniciar, em vários pontos da cidade, uma série de ataques simultâneos, do tipo que hoje descreveríamos como guerrilha urbana. Numa segunda etapa, a eles se juntariam os negros das plantações localizadas na periferia de Salvador.

Quis o destino que os revoltosos fossem derrotados, não pela capacidade de reação dos escravocratas, mas por terem sido delatados por Guilhermina Rosa de Sousa, mulher nagô emancipada que decerto não compartilhava o espírito libertário de seus irmãos e irmãs, mas pertencia àquela espécie de seres humanos, encontráveis em todas as raças, que se contentam em rastejar em busca das migalhas dos dominadores. Tão diferente de outra mulher negra, Luísa Mahin, figura destacada nas insurreições malês e que viria a ser mãe do grande poeta negro, herói e mártir da abolição: Luís Gama.

Alertadas sobre a iminente revolta, as autoridades tomaram providências no sentido de contê-la. A intensa repressão então desencadeada provocou enfrentamentos mortais, ensangüentando os becos, as ruas, os largos e a própria memória da Bahia. Duzentas e oitenta e seis pessoas foram acusadas, 194 das quais da etnia nagô. No início das investigações, as autoridades imperiais imaginaram, de acordo com seus preconceitos, que não passassem de crendices e instrumentos de bruxaria os documentos escritos em árabe, incluindo trechos do Corão, encontrados entre os pertences dos insurretos. Não tardaram a descobrir, porém, para a sua estupefação, o papel desempenhado por uma liderança letrada em árabe e português, responsável por uma rede complexa e organizada, que atingia a própria África, com ramificações pelos interesses britânicos da época.

As sentenças foram rápidas como a aplicação de uma medida provisória imposta por um rolo compressor. Cinco acusados foram condenados à morte por enforcamento: Jorge da Cunha Barbosa e José Francisco Gonçalves, alforriados, ao lado dos escravos Joaquim, Gonçalves e Pedro. Como nada ficasse provado contra si, Pacífico Lucitan, uma espécie de mentor dos revoltosos, recebeu uma pena terrível: mil chibatadas em praça pública. Outros mais foram aquinhoados com penalidades semelhantes - 600, 800, 1.000 chibatadas, aplicadas diariamente, de forma parcelada, de modo a não destruir o patrimônio dos escravocratas. Demonstrações, talvez, da benevolência do escravismo à brasileira, como querem os apóstolos da chamada “democracia racial”.

A triste história da escravidão marcou para sempre, com tintas de sangue, a própria história deste País. Nela se fundamenta a chaga do racismo, cancro renitente que contamina o tecido social brasileiro, raiz da maior parte dos problemas mais graves que ainda hoje afligem esta Nação. Mais lições de dignidade, como a saga dos malês, com seus correlatos em cada pedaço de chão que o africano pisou neste País, servem-nos de azimute para as lutas hoje travadas pelos afro-descendentes em busca da igualdade com que sonharam nossos antecessores na primeira metade do último século. Que o espírito dos mártires de 1835 nos possa conduzir e iluminar...

O Sr. Lauro Campos (Bloco/PT-DF) - V. Exª me permite um aparte?

O SR. ABDIAS NASCIMENTO (Bloco/PDT-RJ) - Com muito prazer, Senador Lauro Campos.

O Sr. Lauro Campos (Bloco/PT-DF) - Nobre Senador Abdias Nascimento, de início, quero externar a minha grande admiração pela pessoa que agora ocupa a nossa tribuna. V. Exª é um dedicado, autêntico, intransigente e fiel professor; estudioso, historiador da história que querem esquecer, da história que querem desprezar, da história que querem marginalizar, para continuarem o processo de espoliação, de exploração e de obstaculização da liberdade do povo afro-brasileiro. Não apenas no Brasil, mas, nos Estados Unidos, onde lecionou em universidades por longo tempo, V. Exª dedicou a sua profícua vida à defesa e à afirmação desses pontos de vista. Hoje, V. Exª tocou num daqueles pontos que mostram a importância do aporte, da contribuição da cultura negra para o Brasil. Nos dias atuais, vemos que a ciência também contribui para derrubar essas barreiras que alimentam o processo de escravização atual, disfarçado, cínico. Hoje sabemos que a vida humana começou na África. Ou seja, todos somos africanos, porém, modificados pelas circunstâncias inerentes ao processo de globalização, que espalha o homem pela face da terra. Franz Boas, autor de um livro que li quando tinha 18 anos, chamado The Mind of Primitive Man, já alertava a respeito desses erros em que incorrem aqueles que julgam que a raça branca, os arianos, tem características superiores às da raça negra. Ele mostra, no seu livro, como a raça negra possui diversos traços que, na escala evolucionista, a distancia mais até dos primatas do que os próprios homens brancos. Quando os maleses vieram para o Brasil, falavam duas línguas e aprenderam o Português. Eram poliglotas, portanto. Além disso, como lembra o grande historiador da economia brasileira, sabiam manipular e manufaturar o ferro, algo que os portugueses não sabiam fazer e aprenderam com os africanos. Os fornos de ferro feitos conforme os modelos africanos funcionaram muito melhor do que aqueles que se tentaram fazer em São Paulo, usando-se outra tecnologia. Neste breve e entusiasmado aparte, não tenho tempo senão para elogiar a sua conduta no exercício do seu mandato e parabenizá-lo pelo trabalho que tem realizado. Muito obrigado.

O SR. ABDIAS NASCIMENTO (Bloco/PDT-RJ) - Senador Lauro Campos, agradeço, muito emocionado, esse seu aparte, porque V. Exª não demonstrou apenas uma solidariedade formal, mas tocou fundo nas questões da existência do povo africano no mundo. Realmente, causa espanto extraordinário dizer-se, como V. Exª afirmou e é cientificamente provado, que a raça humana nasceu na África e que a raça branca é apenas uma “degradação” da raça negra. Então, é muito curioso ver esses homens de tipo nórdico, esse segmento brasileiro que quer ser nórdico, europeu, descobrirem que estão com um pé na África e que lá estão as suas raízes. É uma prova da grande alienação do nosso País esse esforço de querer ser europeu, de querer ser do Primeiro Mundo, de querer ser supercivilizado, quando o natural é reconhecer a própria imagem, a própria identidade e abandonar essas frivolidades, levando o País e o seu povo a sério.

Agradeço-o profundamente. Minha admiração por V. Exª começou no dia em que entrei nesta Casa. Ouço com freqüência os seus pronunciamentos e vejo a sua grande luta para libertar o nosso povo dos grilhões do colonialismo econômico. E isso é algo fundamental para que o País possa dizer que é uma nação e que tem realmente uma soberania, que está muito prejudicada por essa subordinação a interesses colonizadores e imperialistas.

Acrescento ao meu discurso o seu aparte e, com muita emoção, agradeço a V. Exª.

Sr. Presidente, espero que o espírito dos mártires de 1835 nos possa conduzir às portas do Terceiro Milênio e iluminá-las, apontando-nos o caminho da concretização dos mesmos ideais por que eles tombaram. Penso que a lição desses mártires não será esquecida por nós, os afro-descendentes, e, espero, por todo o povo brasileiro.

Axé!

Muito obrigado, Sr. Presidente.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 15/05/1998 - Página 8368