Discurso no Senado Federal

HOMENAGEM DE PESAR PELO FALECIMENTO DO DR. NELSON WERNECK SODRE.

Autor
Lúcio Alcântara (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/CE)
Nome completo: Lúcio Gonçalo de Alcântara
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • HOMENAGEM DE PESAR PELO FALECIMENTO DO DR. NELSON WERNECK SODRE.
Publicação
Publicação no DSF de 11/03/1999 - Página 4992
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM POSTUMA, NELSON WERNECK SODRE, MILITAR, ESCRITOR, ESTADO DO RIO DE JANEIRO (RJ).

O SR. LÚCIO ALCÂNTARA (PSDB–CE) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, o País viu falecer, no dia 13 de janeiro último, um grande intelectual brasileiro. A notícia, se não passou despercebida para a imprensa, também não mereceu um maior destaque. Na vida como na morte, a discrição foi uma das marcas de Nelson Werneck Sodré. Se ela prejudicou o reconhecimento a que sua produção faz jus, essa discrição muito revela do seu possuidor. Nelson Werneck nunca pôs a vaidade e os interesses pessoais acima da preocupação pelo bem comum. Sua modéstia, portanto, era decorrente de uma característica que ainda melhor espelhava o homem: uma admirável coerência.  

Nelson Werneck Sodré nasceu no Rio de Janeiro, em 1911. Ainda menino, mostrou pendor pela carreira militar, apesar de essa não fazer parte das tradições familiares. Sua vida como militar foi narrada em Memórias de um Soldado , livro publicado em 1967, muitíssimo interessante pelas experiências pessoais que relata, mas também por tudo que nos ensina a respeito de uma longa fase da história do Brasil. Acompanhamos a sua entrada no Colégio Militar, ainda na República Velha, mas já sacudida em seu conservadorismo pelo movimento tenentista. A descrição que faz dos colegas e dos mestres, da rigidez disciplinar e da resistência a ela, traduzida muitas vezes em deformações no comportamento dos alunos, ressaltada por um senso de humor contido mas penetrante, parece-me possuidora de grandes méritos literários. Destaca-se a figura do Professor de História, Isnard Dantas Barreto, personagem que destoava do ambiente militar e mostrava empenhado interesse pela formação intelectual e psicológica dos seus alunos. Em um depoimento biográfico, muitos anos depois, diria Nelson: "Quando eu era ainda um rapaz sem rumo, tive a sorte de encontrar um mestre de enorme valor (..), que me apontou rumos que deram linhas definitivas à minha formação. Não guardei dele somente os ensinamentos gerais, mas a ânsia rebelde, a inconformação, de que não me arrependo."  

Inteiramo-nos, depois, de sua passagem pela Escola Militar, já tendo se definido por abraçar a carreira, logo após a revolução de 1930; seguimos muitos dos episódios ligados a sua vida na caserna, ao longo do Estado Novo e após a restauração da democracia. Em 1949, sua participação na chapa vitoriosa às eleições do Clube Militar iria lançá-lo ao palco de acontecimentos de relevo histórico. Inserem-se tais fatos no confronto entre os militares que empunhavam a bandeira nacionalista e os conservadores ou reacionários, disputa que teve vários lances de grande importância na vida política do País, como as tentativas de impedir as posses dos presidentes Juscelino Kubitschek e João Goulart, em 1955 e 1961, respectivamente. Os movimentos golpistas foram eficazmente combatidos pela corrente nacionalista, com o Marechal Henrique Lott à frente, garantindo-se, então, a continuidade do regime democrático.  

Um dos muitos episódios interessantes que se relacionam a tal contexto político é a punição, por motivação política, de Nelson Werneck Sodré, diretor do Departamento Cultural do Clube Militar, concretizada com a dispensa de sua função de Professor da Escola de Estado Maior e transferência do Rio de Janeiro para uma guarnição de fronteira, na cidade gaúcha de Cruz Alta. O comandante do Regimento, conhecido por um ferrenho anti-comunismo, iria render-se diante das qualidades militares e humanas de seu subordinado, elogiando-o enfaticamente em todas as oportunidades. O major Werneck Sodré, mesmo sem nunca esconder suas posições políticas de esquerda, termina por ser nomeado Sub-Comandante da Guarnição, assumindo o comando interinamente durante 6 meses.  

Voltando ao Rio de Janeiro em fins de 1954, Werneck Sodré continua sua exemplar carreira militar, sem deixar de se posicionar contrariamente às atividades conspiratórias já mencionadas, o que fazia com que sempre pairasse a ameaça de punição. Em 1961, ele solicita a sua passagem para a reserva, uma vez que fora efetuada nova punição: apesar do apoio do Presidente João Goulart, o então Ministro da Guerra exigia sua transferência para o Norte do País.  

Assumindo a patente de general com a ida para a reserva, Nelson Werneck Sodré passa a dedicar-se plenamente às atividades intelectuais, dando prosseguimento a seus cursos no Instituto Superior de Estudos Brasileiros – ISEB, do qual fora um dos fundadores, e escrevendo novos livros. Até agora pouco ou nada falamos da sua atuação como intelectual, a qual ele relata em outro livro autobiográfico, Memórias de um Escritor , como se assim quisesse ressaltar a dualidade dessas carreiras, as quais exerce com igual dedicação: a de militar e a de escritor.  

O fato é que o gosto pelos livros e pelo estudo de vários ramos do conhecimento surge muito cedo em nosso homenageado. Ao longo de sua trajetória no Exército, Nelson dedica-se paralela e continuamente ao estudo, escrevendo e publicando esporadicamente artigos em revistas, até que passa a assumir a seção de crítica literária em alguns jornais do Rio e de São Paulo. Basicamente um autodidata, posta à parte a sua formação militar, publica seu primeiro livro, História da Literatura Brasileira , em 1937, início de uma vasta e substancial produção bibliográfica. Apenas dois anos depois, publica o segundo livro, Panorama do Segundo Império , a mostrar que a sua vocação era a de um polígrafo, ou, como diríamos hoje em dia, de um pesquisador multidisciplinar, realizando-se especialmente em amplos e abrangentes estudos históricos. Devemos destacar, nessa mesma linha, a Formação Histórica do Brasil , de 1962, a História Militar do Brasil , de 1965 e a História da Imprensa no Brasil , de 1966. Ressaltemos estudos consistentes como As Razões da Independência , Brasil, Radiografia de um Modelo e A Coluna Prestes , além de diversos livros voltados para a divulgação cultural junto a um público mais amplo, como O Que se Deve Ler para Conhecer o Brasil , Quem é o Povo no Brasil e uma série de quatro livros sobre os fundamentos do pensamento marxista. Registre-se, ainda, uma inovadora Introdução à Geografia , com o subtítulo Geografia e Ideologia , publicada em 1976. A década de 80 assiste ao surgimento de outros títulos; imagino que sua atividade de escritor tenha se estendido até bem próximo de sua morte.  

Sua obra é marcada por um esforço pioneiro em empregar de modo sistemático o método materialista-histórico para a compreensão da história, da sociedade e da cultura brasileiras. Ambiciosos em seu empenho de totalização, seus estudos ressentem-se de deficiências relacionadas não apenas às características do ambiente científico-cultural na época em que surgem, como relacionadas ao próprio ineditismo de seus objetivos. Tais deficiências tornaram-se mais claras com o posterior desenvolvimento das ciências sociais no Brasil: com toda a sua seriedade intelectual e capacidade de autocrítica, Nelson Werneck não foge a certa esquematização em suas análises, simplificando o complexo quadro das relações entre as classes sociais, bem como entre a estrutura social e as produções culturais. A ênfase nacionalista de suas análises insere-se em um contexto histórico marcado pelo projeto desenvolvimentista do ISEB. Adicione-se a isso que com a queda dos regimes de economia socialista, na virada dos anos 80, o marxismo passa a viver a sua maior crise teórica, mostrando-se incapaz, no mínimo, de prever as surpreendentes mudanças sociais, políticas e econômicas que ocorrem no final deste século.  

Simplificação maior, e certamente mais injustificável, seria desconsiderar toda a importante contribuição que um pensamento de inspiração marxista, renovando-se, pode trazer para a compreensão do complexo mundo contemporâneo, propondo novos ângulos de abordagem de seus numerosos impasses. Simplificação inadmissível, por outro lado, seria recusar os ensinamentos da obra de um pensador como Werneck Sodré, um dos valorosos vultos da história do pensamento brasileiro neste século, personagens que por vezes assumem a dimensão heróica, ao produzir em condições adversas e até mesmo ameaçadoras.  

Sobretudo por isso, Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, não gostaríamos de deixar passar em silêncio o afastamento do nosso convívio desse grande intelectual. Não podemos nos dar ao luxo de, a cada momento, esquecer tudo que se passou antes de nós e começar de novo, embora essa pareça ser freqüentemente a vocação da cultura e da política brasileiras. Nelson Werneck Sodré era desses historiadores com especial sensibilidade para resgatar do esquecimento fatos e personagens que merecem nossa constante reflexão. Assim, neste singular livro que é a História da Imprensa no Brasil , sua veemente caracterização de jornalistas de heróico ímpeto oposicionista, como Cipriano Barata e Frei Caneca. Com a História Militar do Brasil , tomamos conhecimento de uma ampla tradição democrática e progressista das Forças Armadas, que não pode ser ignorada no conjunto das lutas democráticas travadas em nosso País.  

Dizíamos há pouco que as carreiras militar e intelectual de Werneck Sodré desenvolveram-se paralelamente, sem uma influência mútua marcante. Isso é, sem dúvida, uma simplificação: já no episódio de sua participação na Diretoria do Clube Militar, ambas as vertentes de sua vida estão entrelaçadas. O mesmo ocorre quando sobrevem o golpe militar de março de 1964, quando seu nome consta da primeira lista de cidadãos com os direitos políticos cassados, certamente por sua dupla condição de oficial, ainda que reformado, e atuante intelectual de esquerda. Nelson Werneck enfrenta em seguida a prisão, com a mesma dignidade com que o fizera outrora um dos escritores e amigos que mais admirava, o insuperável Graciliano Ramos. Liberto do cárcere, deverá prestar depoimentos em diversos Inquéritos Policiais Militares, um dos quais pretende caracterizar como subversivas as atividades do ISEB. Em nenhum momento a sua coragem vacilará e ele continuará denunciando os desmandos da ditadura, que põe a cultura e a democracia no banco dos réus, e o fará mesmo nos momentos de mais estúpida repressão.

 

Por essas razões, Sr. Presidente, pela valiosa obra que deixou, pelo digno e coerente exemplo de vida, o nome de Nelson Werneck Sodré deve ser lembrado; e sua obra, estudada; e seu exemplo, seguido.  

Muito obrigado.  

 

Ap


Este texto não substitui o publicado no DSF de 11/03/1999 - Página 4992