Discurso no Senado Federal

HOMENAGENS A MEMORIA DO ESCRITOR CEARENSE JOSE DE ALENCAR NO TRANSCURSO DOS 170 ANOS DE SEU NASCIMENTO.

Autor
Lúcio Alcântara (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/CE)
Nome completo: Lúcio Gonçalo de Alcântara
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • HOMENAGENS A MEMORIA DO ESCRITOR CEARENSE JOSE DE ALENCAR NO TRANSCURSO DOS 170 ANOS DE SEU NASCIMENTO.
Publicação
Publicação no DSF de 16/03/1999 - Página 5428
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM, ANIVERSARIO DE NASCIMENTO, JOSE DE ALENCAR, ESCRITOR, ESTADO DO CEARA (CE).

      O SR. LÚCIO ALCÂNTARA (PSDB-CE. Pronuncia o seguinte discurso.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, há 170 anos atrás, neste mesmo mês de março, nascia um dos nossos mais ilustres romancistas - José de Alencar -, o cearense de Mecejana, que sonhava, ainda jovem, no frescor dos 15 anos, escrever um livro que fosse um “poema da vida real”. Não escreveu apenas um poema da vida real, mas vários.

      Lapidou-os com o cinzel elevado de um mestre. Construiu suas obras com as tintas da pátria. Acabou por provocar uma revolução na literatura brasileira. Não o fez por acaso. Alencar quis realmente fazer uma revolução, que era, segundo ele mesmo dizia, “irresistível e fatal”. Não lhe era concebível que a civilização brasileira deixasse de aperfeiçoar a língua portuguesa, o instrumento mesmo com que se constroem as idéias. Alencar é reconhecido por ter libertado a língua portuguesa dos cânones das letras portuguesas. Cantou a gente e as coisas brasileiras. Exaltou nossas florestas, nossos rios, nossos mares. Estudou a flora e a fauna brasileiras para melhor retratar o exuberante cenário tropical. E foi criando uma nova linguagem que Alencar produziu uma literatura nova, a expressão original de um mundo essencialmente brasileiro, do qual sobressaíam personagens e cenários autenticamente brasileiros.

      Nasceu Alencar em 1829 e morreu no Rio de Janeiro, em 1877. Era filho de ilustre político, também de nome José de Alencar. Por força das atividades políticas do pai, cresceu e estudou no Sul, formando-se em Direito em São Paulo, em 1850. Mas mesmo tendo crescido fora do Ceará, a região de origem sempre marcou-o sentimentalmente, deixando fortes traços em sua obra e em suas atitudes.

      Contam seus biógrafos que, mal saído da adolescência, viajando certa vez pelo Ceará, Alencar sentiu-lhe nascer um incontido impulso de cantar a terra natal. E foi-se deixando impregnar pelas imagens cearenses, embebendo-se mais e mais com as paisagens de sua terra.

      Fato é que apenas em 1865 sai a lume aquela que é uma das mais belas realizações de nossa prosa romântica: o romance Iracema. O autor chamou-o de “lenda do Ceará”. Comprometido com o projeto nacionalista do movimento romântico, o romance pode ser interpretado como a origem mítica da civilização brasileira, formada a partir da primitiva miscigenação entre portugueses e indíos. Nele, narram-se os amores proibidos entre o guerreiro português Martim e a virgem tabajara Iracema. De grande beleza e plasticidade, a musicalidade de sua prosa fez com que fosse tomado como um longo poema em prosa. Não há como não mencionar um pequeno segmento de sua página de abertura, que nos fará remontar, por certo, aos nossos tempos de colegiais:

       Além, muito além daquela serra, que ainda azula no horizonte, nasceu Iracema.

       Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna, e mais longos que seu talhe de palmeira.

           Embora a figura de Alencar tenha ficado, ao longo dos anos, indelevelmente ligada ao grande romancista que ele realmente foi, sua trajetória revela, contudo, ter sido ele um homem de múltiplos afazeres. Além da literatura, dedicou-se ao jornalismo e à advocacia, foi ainda funcionário público, tendo sido repetidas vezes deputado pela Província do Ceará e, de 1868 a 1870, ministro da Justiça. Apesar de ter como grande meta ocupar uma cadeira senatorial, não conseguiu se eleger Senador, malgrado a expressiva votação recebida, que o colocou como o primeiro nome numa lista sêxtupla, da qual o Imperador deveria escolher dois nomes. Não tendo sido escolhido, desgostou-se da política e retirou-se da vida pública.

           Sua carreira literária começa, realmente, com as crônicas publicadas nos jornais Correio Mercantil e Diário do Rio de Janeiro, depois reunidas sob o título Ao Correr da Pena, de 1856. Não eram crônicas no sentido que hoje se dá ao termo. Eram folhetins, escritos mais longos do que a crônica, publicados geralmente aos domingos, no rodapé da primeira página do jornal, com o objetivo de comentar e passar em revista os principais fatos ocorridos na semana, fossem eles alegres ou tristes, sérios ou banais, econômicos ou políticos, sociais ou culturais.

           A estréia de Alencar no Correio Mercantil ocorreu em setembro de 1854, quando estava o autor com 25 anos. Foram os folhetins semanais, intitulados "Ao correr da pena", que projetaram o nome de Alencar no meio intelectual e social do Rio do Janeiro, então capital do Império. Nas mãos de um hábil escritor como Alencar, o folhetim jamais se limitou ao gênero jornalístico. Com sua maestria, imprimiu esse formidável escritor cearense a suas crônicas semanais a qualidade de verdadeiras peças literárias, a que não faltavam elegância e leveza de estilo.

           O prestígio como folhetinista rendeu-lhe o convite para o cargo de redator-gerente do Diário do Rio de Janeiro, onde trabalhou por quase três anos. De sua pena sai, entre os meses de outubro e novembro de 1855, uma segunda série de folhetins, aos quais vão se acrescer outros tantos publicados no ano seguinte.

           A leitura desses folhetins é agradável ainda hoje, não só pelo brilhante estilo do escritor, quanto por revelar, em seu conteúdo, um conjunto de transformações importantíssimas por que passava o Rio de Janeiro na ocasião. A cidade vivia seu primeiro grande momento de progresso e modernização em moldes capitalistas, cujo desenho vai surgindo da pena entusiasta de Alencar. Nos folhetins, podemos vê-lo maravilhado com as primeiras máquinas de costura importadas dos Estados Unidos, deslumbrado com a viagem de trem a Petrópolis, tecendo elogios à iluminação a gás do Passeio Público, encantando-se com os melhoramentos da cidade.

           O País passava por grandes transformações. É preciso que se considere o espírito que predominava na época para melhor compreender o advento do Romantismo a esse cenário. Modificações profundas marcaram a história brasileira no século XIX. Num período de menos de cinqüenta anos, o País assistiu à transferência da família real para o Rio de Janeiro, à elevação do Brasil à categoria de reino, à independência, ao período do primeiro reinado, com D. Pedro I, a um período de regência durante a menoridade de D. Pedro II e ao início de um longo segundo reinado, que se estenderia até a Proclamação da República, em 1889.

           Na primeira metade do século, alguns aspectos que dominavam a cena brasileira eram: o orgulho nacional despertado pela independência; a insatisfação com o alcance das reformas introduzidas por D. João IV; os projetos de construção do novo país; a luta pela manutenção da unidade nacional; conflitos entre liberais e conservadores na busca do modelo político; o conjunto, enfim, de embates e sentimentos de luta nacional pela consolidação da autonomia.

           Na segunda metade do século, já consolidada a independência e a unidade nacional, o país conheceu um surto de desenvolvimento com a ampliação do comércio exterior e da imigração européia; o aumento da exportação de café e o início da industrialização.

           A implantação do Romantismo no Brasil está ligada ao projeto de construção nacional. Criar uma expressão literária nacional era um dos grandes anseios dos autores românticos brasileiros. Esse anseio se concretizará sobretudo no indianismo e na utilização da "cor local", isto é, da caracterização de um ambiente tipicamente brasileiro, da descrição de uma natureza essencialmente americana. No texto de Alencar, são evidentes as tematizações românticas: a idealização do índio como o "bom selvagem", vivendo em perfeita harmonia com a natureza; a idealização da "raça americana", formada pelo intercurso dos elementos índio e europeu; a cor local, explorada nos mínimos elementos da linguagem descritiva, no emprego da analogia.

           Aos 27 anos, Alencar estréia com Cinco Minutos, série de folhetins publicadas no Correio Mercantil. Em 1857, vem a lume, no mesmo jornal, O Guarani. Foi sendo publicado à medida que ia sendo escrito, em três rápidos meses. Alencar concretiza nesse romance o programa que tinha em mente de uma literatura nacional, baseada nas tradições indígenas e na descrição da natureza, mas regida por uma rigorosa disciplina estética. A partir daí, não cessaria mais de escrever e publicar com rara abundância, tendo produzido 21 romances, que merecem, ainda hoje, a leitura de adolescentes, velhos e moços.

           O professor e crítico literário Antônio Cândido identifica na obra de Alencar três fases mais ou menos distintas.

       Na primeira, que vai de 56 a 64, publica alguns dos seus romances mais importantes e quase todo o teatro. De 65 a 69, apenas escritos políticos, inclusive as famosas Cartas de Erasmo, nas quais exortava o Imperador a exercer efetivamente os seus poderes, a fim de pôr cobro à tirania das cliques governamentais. De 70 a 75, postos de lado a política e o teatro, entra em nova fase criadora, publicando oito livros de ficção.

      Não há, Sr. Presidente, Srªs. e Srs. Senadores, entre os que tenham freqüentado os bancos colegiais, quem se olvide das páginas de Alencar lidas no verdor dos anos e até hoje presentes na memória. Quem não se lembra da devoção e da fidelidade do índio Peri por Cecília? Ou de Aurélia, rica e formosa, a provocar suspiros e paixões nos moços casadoiros da burguesia fluminense? Ou, ainda, do envolvimento sentimental entre Canho e Catita, no cenário sociocultural dos pampas?

      Eu não poderia, Sr. Presidente, como cearense, mas principalmente como brasileiro, deixar de prestar essa singela homenagem à memória de José de Alencar, no mês em que se comemora seu natalício. Mais do que colocar sua pena à disposição de genuínos impulsos estéticos, Alencar usou-a para alcançar um ideal nacionalista. O grande escritor Machado de Assis sintetizou nesta frase a figura e a obra de Alencar:

      “Nenhum escritor teve em mais alto grau a alma brasileira.”

      A esse propósito, ao fazer um balanço de sua obra no prefácio do romance Sonhos d' ouro, de 1872, Alencar busca mostrar que ela abrange todas as fases da vida brasileira, e explicita o ideal nacionalista que move a produção de sua obra e a função social, política e histórica que ele atribui ao romance romântico:

      A terceira fase, a infância de nossa literatura, começada com a independência política, ainda não terminou; espera escritores que lhe dêem os últimos traços e formem o verdadeiro gosto nacional, fazendo calar as pretensões, hoje tão acesas, de nos recolonizarem pela alma e pelo coração, já que não o podem pelo braço.

      Para encerrar, Senhor Presidente, permito-me reproduzir, nas linhas abaixo, o comentário que sobre Alencar fez o crítico literário Luís Viana Filho.

      Para o grande público de leitores brasileiros, nada existe comparável a José de Alencar. Assim foi desde o primeiro momento quando, dado o tímido primeiro passo com Cinco Minutos, surpreendeu o Brasil com o fabuloso O guarani. Não importa saber se ele é o maior ou o melhor dos nossos romancistas: o incontestável é ser ele, ainda hoje, o que mais de perto fala à sensibilidade da alma nacional. Nem outra cousa explica que, volvido um século sobre a sua morte, permaneça como o escritor mais lido em todo o país. É que, no fundo, somos um povo romântico, e José de Alencar foi por excelência a mais alta expressão do romantismo no Brasil.

      Com essas palavras, dou por encerrada esta modesta homenagem que presto, em nome do povo do Ceará que represento nesta Casa, a esse extraordinário cearense e fenomenal brasileiro, José Martiniano de Alencar.

      Muito obrigado!


Este texto não substitui o publicado no DSF de 16/03/1999 - Página 5428