Discurso no Senado Federal

REFLEXÕES SOBRE A GUERRA NA IUGOSLAVIA.

Autor
Paulo Hartung (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/ES)
Nome completo: Paulo César Hartung Gomes
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA INTERNACIONAL.:
  • REFLEXÕES SOBRE A GUERRA NA IUGOSLAVIA.
Publicação
Publicação no DSF de 14/04/1999 - Página 8044
Assunto
Outros > POLITICA INTERNACIONAL.
Indexação
  • ANALISE, HISTORIA, PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL, SEGUNDA GUERRA MUNDIAL, ESTRUTURAÇÃO, EUROPA, CRIAÇÃO, PAIS ESTRANGEIRO, PROVOCAÇÃO, CONFLITO, GRUPO ETNICO.
  • ANALISE, POLITICA INTERNACIONAL, ATUALIDADE, GUERRA, PAIS ESTRANGEIRO, IUGOSLAVIA, RETROCESSÃO, UNIÃO EUROPEIA, IDEOLOGIA, PAZ, DEMOCRACIA.
  • CRITICA, ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU), OPÇÃO, GUERRA, VIOLENCIA, INEFICACIA, DIPLOMACIA, SOLUÇÃO, CONFLITO.

O SR. PAULO HARTUNG (PSDB-ES) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, as cenas mostradas na tevê banalizam os bombardeios da OTAN, a marcha dos refugiados albaneses e o protesto da população Sérvia. A barbárie não justifica a escalada militar norte-americana e a radicalização nacionalista Sérvia no Velho Continente. O mundo bem que poderia fechar o milênio sem mais essa guerra na Europa. O que parece um teatro do absurdo apenas confirma que o século das piores guerras ainda não acabou. Começou com as potências mundiais preparando-se para elas, com a formação de duas alianças militares antagônicas (a Tríplice Aliança e o pacto franco-russo) e a divisão quase total do mundo entre as potências capitalistas. E assim parece que vai terminar. Após a queda do Muro de Berlim, o passado congelado pela Conferência de Yalta tornou-se um gigantesco iceberg a derreter-se, com seus espelhos e sombras, formando ameaçadores blocos de gelo. Como se sabe, o acordo diplomático-militar selado entre Roosevelt (EUA), Churchill (Reino Unido) e Stálin (URSS) em 1945 ditou os destinos da Europa até o colapso da antiga URSS.  

Dois oficiais nacionalistas sérvios, Princip e Gravinovich, que lutavam pela libertação dos iugoslavos da opressão austro-húngara, precipitaram o início da Primeira Guerra Mundial ao assassinarem o herdeiro do trono dos Habsburgos, arquiduque Francisco Ferdinando, em 28 de julho de 1914. Foi em Sarajevo, na Bósnia, palco recente de violentos conflitos étnicos. Em resposta, a Áustria colocou em prática velhos planos de repressão à Sérvia, com apoio da Alemanha. A maior potência militar européia da época estava interessada no conflito e esperava, assim, atrair a Rússia e a França para um confronto, que naquele momento era-lhe favorável. Enquanto o Império Austro-Húngaro pretendia consolidar seus domínios ao Sul, dos Bálcãs ao Adriático, a Alemanha sonhava com a conquista de toda a Europa Central, da Ucrânia à Bélgica. Mas os cálculos dos estrategistas militares deram errados. O que parecia ser uma guerra rápida durou quatro anos e alastrou-se pelo mundo. A Inglaterra entrou na guerra. Os Estados Unidos desprezaram a advertência de George Washington e se meteram nas "complicações européias". De européia, a guerra tornou-se mundial. Participaram do conflito canadenses, australianos, neozelandeses, indianos, chineses, africanos. Somente na batalha de Verdun, em fevereiro-julho de 1916, que mobilizou 2 milhões de homens, um milhão de baixas foram registradas. Para barrar a ofensiva alemã sobre a França, os britânicos perderam 420 mil soldados, 60 mil em apenas um dia de batalha. Na carnificina, pela primeira vez, entraram em ação o avião, o submarino e as armas químicas. Morreram 8 milhões de soldados e 6,5 milhões de civis.  

A derrota da Alemanha não resolveu os velhos conflitos de natureza étnica e religiosa que embaralhavam as fronteiras entre Oriente e Ocidente na Europa, desde a queda de Constantinopla. Muito menos liquidou com as contradições entre as heranças dos velhos impérios coloniais e as novas áreas de influência das potências que emergiram com o capitalismo monopolista, como a Alemanha, o Japão e os próprios Estados Unidos. Na verdade, o acordo de paz imposto pelos Estados Unidos, Grã-Bretanha e França, vitoriosos no confronto, não tinha apenas o objetivo de controlar a Alemanha, que quase havia ganho a guerra sozinha. A Europa deveria ser remapeada, para que os espaços vazios deixados pelo colapso dos impérios coloniais russo, austro-húngaro e turco-otomano fossem ocupados.  

Assim, o Tratado de Versalhes estimulou a criação dos novos estados-nações a partir de agrupamentos étnico-linguísticos, a pretexto de que tinham o direito de autodeterminação. O Presidente Wilson, dos EUA, foi um ardoroso defensor dessa tese. Porém, com o surgimento de novas monarquias e ditaduras fantoches, o desastre político, diplomático e militar da formação dos novos Estados foi tamanho que o Congresso norte-americano recusou-se a ratificar o tratado. A Alemanha, dentre outras sanções, perdeu todas as suas colônias e devolveu à França a Alsácia e a Lorena. O Império Austro-Húngaro foi desmembrado: surgiram a Checoslováquia, a Hungria, a Polônia e a Iugoslávia. O Império Turco-Otomano perdeu o Iraque, a Jordânia e a Palestina, que se tornaram protetorados britânicos; e a Síria e o Líbano viraram protetorados franceses. A Segunda Guerra Mundial (1939-1945) foi a revanche da primeira. Alemanha, Japão e Itália foram potências agressoras, iniciando uma guerra que mais ninguém queria, mas aconteceu. Matou mais de 50 milhões de pessoas, com o extermínio de 5,6 milhões de judeus no holocausto, e 40 milhões de europeus de todas as nacionalidades foram desenraizados. A guerra só acabou depois das duas bombas atômicas lançadas pelos Estados Unidos contra o Japão, em Hiroshima e Nagasaki, matando 170 mil pessoas. Como se vê, o status quo do Tratado de Versalhes não foi a solução, foi o problema. De certa forma, serviu de caldo de cultura para a ascensão fascista na Alemanha, onde social-democratas e comunistas se digladiavam, e justificou todas as pretensões territoriais do Eixo.  

Os delírios de Hitler, que decidiu invadir a Rússia e declarou guerra aos EUA, levaram a Alemanha para um beco sem saída político e militar: nova derrota, outra humilhação e a divisão do território ao meio. Mais uma vez o mapa das operações militares estabeleceu as fronteiras da Europa, indiferente ao mapa da geografia humana. O que estamos assistindo agora, depois da reunificação alemã, é uma ironia da História. Os conflitos nacionais que explodem na Europa na década de 1990 são "as galinhas velhas do Tratado de Versalhes voltando mais uma vez para o choco", na expressão do historiador inglês Eric Hobsbawm.  

A guerra civil iugoslava, a secessão na Eslováquia, a independência dos estados bálticos da antiga URSS, os conflitos entre húngaros e romenos na Transilvânia, o separatismo da Moldávia, o nacionalismo transcaucasiano, surgidos com a Primeira Guerra Mundial, apenas hibernaram durante a "guerra fria". Durante 50 anos, o mundo assistiu a um frágil equilíbrio estratégico-militar entre os Estados Unidos e a antiga União Soviética, protagonistas da mais estúpida corrida armamentista de que se tem conhecimento. Com a guerra, brutalizam-se a diplomacia e a política. É o que está acontecendo, por exemplo, na Organização das Nações Unidas (ONU). O general prussiano Carl von Clausewitz dizia que "a guerra é um ato de violência planejado com o objetivo de forçar o adversário a submeter-se à nossa vontade". A lógica da guerra é o uso ilimitado da força para suplantar a extensão dos meios de resistência do adversário e a firmeza de sua vontade. Ocorre, porém, que as guerras reais diferem dos planos de estado-maior porque as condições idealizadas nunca se verificam. Foi assim com a Alemanha nas guerras mundiais, e com os Estados Unidos na Coréia, no Vietnã e no Iraque. Não está dado que será diferente na Iugoslávia. O analista francês Raymond Aron sempre sustentou que as nações modernas nasceram na violência, relacionam-se umas com as outras através da violência e continuarão a fazê-lo num mundo previsível. Para ele, o conselho daqueles que não aceitam essa verdade básica é inútil e perigoso.  

Minuciosos e calculistas, os estrategistas norte-americanos vêem a política internacional como um grande jogo, em que a logística e a tecnologia, com a disponibilidade de recursos financeiros e humanos, são o bastante para vencer, desde que se disponham ao uso da violência necessária para submeter seus opositores. Hoje em dia, por causa da opinião pública mundial, nenhum chefe de Estado ousa justificar abertamente uma guerra segundo o princípio de Clausewitz. Todas as guerras agora são "defensivas" e representam um "flagelo para a humanidade". Entretanto, a velha racionalidade do general prussiano continua sendo adotada nas chancelarias e estados-maiores: o mundo é um conjunto de Estados, cada qual com suas leis; o objetivo da política internacional é o poder, obtido e conservado por meio da violência. É o que está acontecendo agora. Os Estados Unidos e a Inglaterra pretendem manter sua hegemonia na Europa, no momento em que a União Européia se consolida com o sucesso do euro — esta sim, a maior e mais bem sucedida operação político-diplomática do século —, e coloca em xeque esse predomínio. A escalada do conflito na Iugoslávia é um evidente retrocesso para a União Européia. Adia para o novo milênio o sonho de uma casa comum européia, edificada através da democracia e da paz. Quanto aos sérvios e albaneses, certamente continuarão mantendo suas velhas diferenças étnicas, que sobreviveram a mais de 500 anos de dominação turco-otomana. Poderiam mantê-las tranqüilamente nos campos de futebol, mas ainda preferem a guerra. No Velho Continente, por experiência própria, todos sabem que não existe solução militar para as rivalidades da região.  

Nesta guerra, potências mundiais se unem como "polícia do mundo" para dar um castigo aos sérvios, por que eles maltratam albaneses. É a questionável doutrina da intervenção humanitária na qual alguns casos serão sempre considerados mais humanitários que outros. Se passarmos os olhos pelas inúmeras atrocidades cometidas pelo mundo afora, não temos dúvidas que foi feita uma escolha. Por que intervir neste conflito e não na barbárie da próxima esquina? É claro que choca aos homens e mulheres do mundo, comprometidos com a democracia e com os direitos humanos, atos praticados pelo governo de Milosevic em Kosovo. São atos por todos nós condenados. Mas, ao invés da utilização da força militar, colocando em risco milhares de vidas, seria correto e menos trágico usar a diplomacia. Não é possível acreditar que no coração do velho mundo o diálogo seja substituído pelas armas. O que muita gente se pergunta é se questões complexas como esta são passíveis de serem resolvidas com uso de bombas lançadas, muitas vezes, sobre a população que se diz querer proteger. Desta vez, a escolhida foi a Iugoslávia e ninguém sabe onde esse conflito vai parar. A Europa está em guerra e o pior de tudo, não sabe o que fazer com ela. Uma coisa é certa, se as lideranças mundiais não encontrarem uma saída diplomática para o conflito, o sofrimento estará longe de acabar.

 

 

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Este texto não substitui o publicado no DSF de 14/04/1999 - Página 8044