Discurso no Senado Federal

NECESSIDADE DE REGULAMENTAÇÃO E CONTROLE DO MERCADO DAS DROGAS, TAIS COMO O XENICAL, VIAGRA, VALIUM E PROZAC.

Autor
Lúcio Alcântara (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/CE)
Nome completo: Lúcio Gonçalo de Alcântara
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
SAUDE.:
  • NECESSIDADE DE REGULAMENTAÇÃO E CONTROLE DO MERCADO DAS DROGAS, TAIS COMO O XENICAL, VIAGRA, VALIUM E PROZAC.
Publicação
Publicação no DSF de 16/04/1999 - Página 8305
Assunto
Outros > SAUDE.
Indexação
  • CRITICA, INDUSTRIA FARMACEUTICA, IMPRENSA, EXCESSO, PROPAGANDA, MEDICAMENTOS, REDUÇÃO, PESO, CORPO HUMANO, CONTRADIÇÃO, FALTA, ATENÇÃO, DESNUTRIÇÃO, MORTALIDADE INFANTIL, BRASIL.
  • DENUNCIA, ILEGALIDADE, CONTRABANDO, DIFUSÃO, MEDICAMENTOS, SAUDE MENTAL, NECESSIDADE, INFORMAÇÃO, SOCIEDADE, GOVERNO, OBJETIVO, REGULAMENTAÇÃO, CONTROLE.

O SR. LÚCIO ALCÂNTARA (PSDB-CE) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, há algumas semanas, televisão, jornais e revistas vêm inundando os lares brasileiros com reportagens e anúncios sobre o ingresso do Xenical em território nacional. Para quem ainda não tomou conhecimento, Xenical é a denominação do mais novo lançamento farmacêutico no mercado dietético. Como todos os outros produtos dessa linhagem, promete emagrecimento instantâneo sob a lei do menor esforço possível, isentando o cliente de qualquer sacrifício doloroso. Isso, certamente, não causaria qualquer espanto se não estivéssemos a comentar a nova coqueluche medicinal dentro das fronteiras miseráveis do Brasil, um país cuja taxa de inanição se destaca como uma das mais altas do mundo.  

Sob a lógica aparente e perversa da euforia mercadológica, tudo funciona como se o País pudesse dar-se o luxo de mobilizar a atenção de um povo inteiro em torno do problema exclusivo da obesidade, que, no final das contas, afeta faixa timidamente expressiva das camadas médias. Em contraste, os organismos nacionais e internacionais não se cansam de nos recordar que nosso País ostenta hoje um dos mais vergonhosos índices de desnutrição do planeta. Só para rememorar, a mortalidade infantil no Brasil ainda se aloja na faixa de 35%!  

É provável que a onda do Xenical não dure muito, mas, ao que tudo indica, a indústria farmacêutica descobriu no mercado de emagrecimento um rentável filão. Investe cada vez mais num segmento da população que se incomoda, e é incomodado, mais pela força da vaidade que por motivos sérios de conservação da saúde. Com certeza, quando o fetiche do Xenical esgotar seu poder de fascínio e de consumo, o mercado logo providenciará um substituto à altura. Da mesma maneira, no ano passado, o mercado não poupou qualquer prurido ético para promover a venda do Viagra.  

Desprovido de todo esclarecimento público acerca dos efeitos colaterais e dos riscos de vida, quando não acompanhado de prescrição médica, a promoção comercial do Viagra instaurou de vez a natureza absolutamente "comodificada" e, portanto, socialmente descartável das drogas medicinais. Em vez da seriedade com que deveria ser abordada a patologia da impotência masculina, a indústria farmacêutica, aliada aos meios de comunicação de massa, logo se apressou em transformá-la em mal menor, como se a expectativa terapêutica do Viagra pudesse num passe de mágica corresponder à da Aspirina no imaginário popular. A fórmula não poderia ser mais lucrativa para os bolsos do capitalismo da indústria química.  

Por tudo isso, a indústria das fast-drugs não vai abandonar seus "clientes" por nada desse mundo. Na verdade, a segunda metade dos anos 90 se caracteriza pela introdução maciça de produtos farmacológicos comercialmente eleitos para iludir e satisfazer caprichos de um classe média sonolenta, fútil e obsessiva por tratamentos físicos e superficiais contra a melancolia e outros males do espírito humano. Se, de um lado, a indústria tem apelado para os revigoradores sexuais e para os reguladores de apetite como carros-chefe de venda, de outro, tem incentivado o consumo desenfreado de psicotrópicos, como calmantes e antidepressivos, para acompanhar o que tem sido chamado de "cesta básica química" da vida urbana.  

Na categoria dos calmantes, o Valium se converteu em outro grande fetiche, contra o abuso do qual as autoridades sanitárias pouco ou nada fazem. Pelo menos, é assim que percebemos a rápida popularização do consumo desse calmante em todos os cantos do mundo, mediante farta distribuição nos balcões de drogarias e farmácias. Por isso, com ou sem receita médica, de tão banal, a aquisição deste comprimido ganhou, sarcasticamente, acesso ao seleto grupo dos produtos que compõem a "cesta básica" brasileira. Paralelamente, o descaso se verifica na mesma proporção, quando se trata dos antidepressivos, cujo maior representante nas prateleiras do consumo fácil é hoje o Prozac. Sua procura tem sido muito incentivada graças à promessa química de transformação de humor no paciente. Por isso mesmo, adolescentes têm, com freqüência, se servido do Prozac para fins de entorpecimento e alucinação.  

Sr. Presidente, nessas circunstâncias, como poderemos, de fato, distinguir o uso de medicamentos supostamente terapêuticos, como Valium e Prozac, de narcóticos criminosamente contrabandeados como o ecstasy e a maconha? Se levarmos a ferro e fogo o conteúdo das publicidades que veiculam o uso de Valium e Prozac, chegaremos à triste conclusão de que o verdadeiro público alvo desses medicamentos radica entre os consumidores de drogas ilegais nas camadas média e alta de nossa sociedade. A impressão que se tem é de que a indústria farmacêutica cansou de esperar pela erradicação completa do tráfico e, em decorrência, pede licença moral para disputar um mercado tão consolidadamente monopolizado pelas máfias globalizadas.  

Ora, a lógica de consumo de massa que subjaz no comércio de psicotrópicos se aplica com a mesma eficácia ao mercado dos medicamentos dietéticos. O Xenical promete, antes de tudo, estado permanente de euforia e felicidade instantânea a seus consumidores, ostentando como pano-de-fundo a ideologia cultural de um hedonismo predatório. Não que o hedonismo em si carregue traço necessariamente ligado à barbárie, ao caos, à tragédia social, mas seu excesso indubitavelmente induz a ação coletiva à histeria irresponsável.  

Para agravar o quadro social em que se insere o Xenical, pesquisadores alertam para o condicionamento vicioso, e – por que não? – paranóico, a que ficam sujeitas as pessoas que se vêem discriminadamente enquadradas no rótulo das "gordinhas". A cada anúncio na mídia, a cada campanha publicitária que se lança, a população obesa se sente pressionada a consumir a droga da moda para se ajustar aos padrões dominantes de estética corporal. Não é à toa, portanto, que patologias absolutamente inusitadas surgem como epidemias entre jovens dos grandes centros urbanos. Refiro-me à crescente incidência da anorexia entre moças e mulheres das camadas médias brasileiras.  

Reflexo de exagerada preocupação com as linhas do corpo e, portanto, de eventuais deformações anatômicas provocadas pela ingestão de alimentos, a anorexia acomete organismos e mentes que, apavorados com a ameaça da obesidade, inibem a forme e reprimem o apetite, a ponto de perderem insanamente o prazer de saborear o que seja. Seguindo o parâmetro de modelos internacionalmente bem sucedidas, milhares de adolescentes adotam como ideal de corpo a estética das formas extremamente delgadas, sem que se levem em conta quaisquer conseqüências para sua saúde.  

Eis o paradoxo da modernidade, Sr. Presidente: impõe-se um modelo único e hegemônico de beleza corporal, com o qual o capitalismo farmacêutico e o mundo da publicidade operam para maximizar ao extremo a escala de produção e de consumo, na medida inversa em que a ideologia da democracia política prega o respeito às diferenças, às diversidades de costumes, ao pluralismo dos sentidos. Diante dessas contradições, resta ao indivíduo moderno o enquadramento nos padrões ditados pela estética do consumo, ou a marginalidade discriminatória dos padrões alternativos de cultura. Para o sujeito que arrisca optar pela marginalidade cultural, os desafios são tão incomensuráveis quanto exigem dose colossal de tolerância e resistência. Desencadeiam daí efeitos os mais deletérios sobre ele, como o acirramento da depressão psicológica, que se alastra como um novo mal do século.  

Enfim, embora a perspectiva no horizonte de curto prazo não enseje expectativas alvissareiras, é preciso que sociedade e autoridades públicas se inteirem do problema em tempo breve, para que o mercado das fast-drugs possa ser devidamente regulamentado e controlado. No fundo, em vez de proporcionar transformações positivas no estado d’alma de nossa modernidade, a enxurrada de Xernicais, Viagras, Valiuns e Prozacs nas prateleiras de nossas farmácias suscita, sim, desconfiança na mente de quem ainda crê num mundo e num Brasil mais sadio e menos perturbado.  

Era o que eu tinha a dizer.  

Muito obrigado.  

 


Este texto não substitui o publicado no DSF de 16/04/1999 - Página 8305