Discurso no Senado Federal

COMEMORAÇÃO DO TRIGESIMO NONO ANIVERSARIO DE BRASILIA.

Autor
Lauro Campos (PT - Partido dos Trabalhadores/DF)
Nome completo: Lauro Álvares da Silva Campos
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • COMEMORAÇÃO DO TRIGESIMO NONO ANIVERSARIO DE BRASILIA.
Publicação
Publicação no DSF de 21/04/1999 - Página 8608
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM, ANIVERSARIO, CAPITAL FEDERAL, ANALISE, HISTORIA, INTEGRAÇÃO, DESENVOLVIMENTO, INTERIOR, BRASIL.
  • COMENTARIO, GRAVIDADE, DESEMPREGO, VIOLENCIA, CAPITAL FEDERAL, DEFESA, PROJETO DE LEI, AUTORIA, ORADOR, CRIAÇÃO, AREA DE LIVRE COMERCIO, DISTRITO FEDERAL (DF), OBJETIVO, COMPLEMENTAÇÃO, CIDADE, DESENVOLVIMENTO, COMERCIO, INDUSTRIALIZAÇÃO.

O SR. LAURO CAMPOS (Bloco/PT-DF. Pronuncia o seguinte discurso.) - Exmº Sr. Antonio Carlos Magalhães, DD. Presidente do Congresso Nacional; Exmº Sr. Vice-Governador de Brasília, Benedito Domingos; Exmº Sr. Representante do Governador Joaquim Roriz, Srªs e Srs. Senadores, eu gostaria de pedir desculpas, de início, pelo meu atraso.  

Hoje, quando se comemora mais um aniversário de Brasília, passei duas horas e meia em pé, falando para os alunos da Universidade de Brasília, num anfiteatro ali localizado. Fiz aquilo que a aposentadoria e a idade me proibiram já há dez anos e, portanto, eu estava fazendo aquilo que sempre fiz.  

Eu costumava dizer aos meus alunos que um professor é um doador de sangue. Aqui cheguei, em Brasília, para ser professor e consegui sê-lo. Como o doador de sangue, eu me encontro, agora, exausto, completamente exaurido e pensei que não conseguisse sequer pronunciar estas palavras.  

Neste 39º aniversário de Brasília, gostaria de fazer uma reflexão sobre a história da cidade que se confunde com a minha história de vida. Vim para Brasília em 1960, quando a população era de apenas cinqüenta mil pessoas. E aqui cheguei como se redescobrisse o nascimento.  

Gostaria, portanto, de falar sobre esta minha cidade para aqueles que querem compreendê-la, compreender a sua essência e o seu significado.  

Aqui presenciei, tal como em Minas Gerais, tal como em Belo Horizonte, a atividade humana, a inquietude humana transformando o nada em cultura, transformando o quase nada em uma comunidade, revolucionando continuamente a urbes e transformando-a em uma polis. 

A modernização urbana talvez tenha-se iniciado em 1703, com Pedro o Grande, que começou na Rússia a construção de uma nova capital, Petersburgo, que para ele significava uma janela aberta para a modernidade, uma janela aberta para o Ocidente, uma janela aberta para as transformações que o capitalismo já imprimia na Europa Ocidental, onde ele foi aprender a construir navios, onde foi absorver a modernidade que queria transplantar para a Rússia - também Juscelino Kubitschek foi cedo estudar na França, onde aprendeu e se inspirou, sem dúvida, para o processo de modernização que sempre foi a marca de seu destino.  

Contudo, ao entrar pela janela, a modernidade, na Rússia, foi como um vendaval que ameaçou destruir toda a estrutura política, social e econômica do feudalismo russo. O despotismo modernizante de Pedro o Grande proibiu a construção em qualquer lugar que não fosse Petersburgo; levou todos os pedreiros da Rússia para aquela cidade, elevando sua população, em poucas décadas, para duzentos mil habitantes; ameaçou a ordem monárquica existente, fazendo pesar sobre a classe dominante o perigo de perder seus títulos de nobreza, caso não mudassem para Petersburgo.  

Os sucessores de Pedro o Grande, no entanto, perceberam que aquela modernização iria abalar os alicerces apoiados na servidão, as bases do poder, as bases econômicas em que o sistema se apoiava. Portanto, uma reação contra a modernização logo se fez, de forma igualmente violenta, culminando esse processo de convulsão não apenas na abolição da servidão, mas também na própria Revolução de 1905.  

Uma outra cidade moderna, cuja modernização tem um caráter nitidamente reacionário, como consegue conciliar esses dois conteúdos com maestria, com elegância, com disfarce, com o sistema capitalista. Foi a grande modernização que Napoleão III, convocando Haussmann, em 1845, impôs a Paris. Antes da era do automóvel, os Champs Elysées foram abertos, uma rua com mais de cem metros aberta sobre as casas pequenas, as vielas, onde os camponeses expulsos da terra vinham trazer a sua agitação.  

A reforma de Paris, a construção dos boulevards, teve um sentido nitidamente reacionário. Queria Napoleão III usar a moderna arquitetura das grandes avenidas que se cruzam no Étoile para desalojar os trabalhadores, para facilitar o caminho da polícia, para impedir que a escuridão das vielas permitisse o conluio; para impedir que os trabalhadores urbanos começassem a se organizar. E o processo de reconstrução e modernização de Paris, a destruição do antigo e perigoso, sobre o qual se erguia o novo, o moderno, utilizou 25% da mão-de-obra existente na capital francesa.  

Belo Horizonte e Goiânia são cidades copiadas da modernização francesa de 1845. São cidades que repetem o traçado de Paris, com ruas largas; cidades que, tendo sido feitas antes da era e do século do automóvel, já anteviam a movimentação que as ruas, que os passeios, que a atividade social urbana iria, a partir de então, imprimir à nossa vida, determinar ao nosso comportamento, influir de maneira profunda em todos os nossos gestos.  

Em 1925, ocorre uma nova onda de modernização, também reacionária, dessa vez chefiada por Le Corbusier, o inspirador dos urbanistas de Brasília e que tanto influiu na arquitetura moderna do Brasil. Ele dizia que era preciso matar as cidades - cidades constituem um perigo. Ele queria afastar as indústrias para 100 km do perímetro urbano. Prestou suas homenagens a Hitler e quis servir a Mussolini, mas serviu ao governo de Pétain.  

É preciso matar as cidades; é preciso construir cidades que sejam estradas, cidades rodoviárias. E Brasília é isto: uma cidade rodoviária, com 8 km de rodovia no Eixo Norte e no Eixo Sul, com as rodovias auxiliares L e W. É uma cidade rodoviária, como passam a ser todas as cidades a partir da era do carro.  

Brasília não precisou destruir coisa alguma; ela foi edificada no Planalto Central, em pleno cerrado, ao contrário das outras cidades, cuja modernização foi destruidora e paralisante. Brasília não veio resolver os problemas dela própria, os problemas da capital em construção - o nada não tem problema: ela veio tentar resolver os problemas do Rio de Janeiro, onde havia os "calabouços", onde os estudantes já agitavam as suas bandeiras, onde os sindicatos se organizavam, onde as baixadas fluminenses já começavam a ameaçar a ordem e a calma do velho Rio de Janeiro.  

Os argumentos levantados por ocasião da mudança de Brasília são todos reacionários; inclusive, foi cogitado o perigo de uma invasão, pela Argentina, do porto do Rio de Janeiro. Era preciso interiorizar a capital para evitar ataques também externos, não apenas os internos, da população brasileira, que se transformava numa ameaça ao poder e ao seu exercício.  

O processo de modernização, de rodoviarização da cidade, quando é feito numa urbe já edificada, como aconteceu, por exemplo, em Nova Iorque ou em Miami, tem que destruir violentamente a cidade antiga para erguer as vias suspensas, a rodoviarização sobre a antiga cidade não preparada para a era automobilística, não preparada para ser uma cidade rodoviária.  

Portanto, vemos na época de Roosevelt grande parte dos recursos púlbicos serem aplicados, inclusive sob o impulso e inspiração de um outro judeu, Robert Moses, o grande destruidor e reconstrutor de Nova Iorque.  

Em Brasília não havia o que ser destruído. Nesse sentido, ela pôde ser, desde o nascimento, uma cidade positiva. para resolver os problemas do Rio de Janeiro e para auxiliar, para alavancar a economia de São Paulo - muito ingrata com Brasília, como sempre foi. Como alegrou as indústrias de Ermírio de Moraes, com as grandes encomendas de cimento, pois houve grande consumo de materiais de construção; como ficaram alegres e satisfeitas as siderurgias de São Paulo, quando as encomendas de ferro para a construção rápida da nova cidade constituíram um novo mercado para a economia paulistana!  

Portanto, pensar que Brasília é uma grande cidade-problema e tentar, como se tentou, desde o tempo de Jânio Quadros, retirar dela a condição de Capital Federal é não ter uma visão do contexto em que estava inserida a sua construção, que era o de tentar resolver os problemas do Brasil. Obviamente, houve muita má vontade em relação a esta cidade, que tem se manifestado desde a época de Jânio Quadros, na tentativa de retornar a Capital para o Rio de Janeiro. Era uma ideologia centrada em São Paulo, nos interesses da indústria, da tecnologia, da produtividade física, do desprezo pela cultura imaterial, pelo processo administrativo, pelas relações que não eram materiais, objetivadas na produtividade física e no ganho centrado em torno da exploração do trabalho urbano assalariado.  

Essa produção do pensamento, ligada à produção material centrada em São Paulo, constituiu-se, desde o princípio, em ingrediente que se opõe, que não compreende e que quer destruir a nova Capital. Proibiram os militares que as indústrias se constituíssem em Brasília. Entendiam que, se isso fosse feito, Brasília repetiria, num processo de sindicalização e de reivindicações, as perturbações que já ocorriam nas grandes capitais do Brasil e, em especial, no Rio de Janeiro.  

Os alunos foram afastados para uma universidade, para uma muralha despótica, erguida no campus isolado. Assim, livrava-se a comunidade de mais esse perigo, do perigo dos estudantes. Mas, apesar dessa tentativa, foi o campus universitário o pretexto para a deflagração do AI-5; a provocação contra os estudantes, a morte de um aluno, que se tornou imortal na memória daqueles que viveram na Universidade de Brasília, Honestino.  

A invasão da universidade, como ato preparatório para o AI-5, mostra que a vida é muito mais rica do que a prancheta; a atividade humana é muito mais transformadora do que os planos feitos pelos tecnocratas. Assim, o povo de Brasília, que não se devia sindicalizar, transformou professores, que antigamente usavam beca, em trabalhadores do ensino, sindicalizados, reivindicativos, tal como os médicos e as outras categorias profissionais que constituíam uma classe privilegiada e que não se imiscuíam nesses movimentos, tidos como espúrios, da base dos trabalhadores.  

Aqui se aplicam as medidas ditadas pelo FMI: demissão de funcionários, enxugamento da máquina, retirada das garantias dos servidores públicos. O desemprego aumenta, e o desemprego de Brasília transforma-se em um dos maiores do Brasil, ultrapassando 20%. Enxuga-se também para imitar, aqui, no Distrito Federal, o processo realizado em escala e em dose nacional: desempregar trabalhadores, funcionários públicos, sucateando-se os serviços sociais, a saúde e a educação, reduzindo-se os salários, os vencimentos dos funcionários, levando portanto os comerciantes a uma onda de falências, a uma crise agravada pelas taxas de juros exacerbadas. Assim fica realmente difícil a sobrevida em Brasília.

 

Não se percebe que Brasília, além de ser o centro das decisões políticas do País, constitui um grande mercado que viabiliza e sustenta a indústria montada no triângulo Rio-São Paulo-Belo Horizonte. Retirar o papel desempenhado por Brasília dentro do contexto nacional e esquecer esse conteúdo reacionário contra o qual a população lúcida de Brasília soube lutar, soube se organizar é viver em Brasília sem compreendê-la.  

É preciso compreender que Brasília, infelizmente, foi tolhida de outros tipos de atividades industriais e que, portanto, precisa continuar a se reconstruir; do contrário, teremos o agravamento de uma realidade que já vivemos: o desemprego leva ao desespero e à agressividade cega, não dirigida pela bússola da ideologia.  

Está pronto para inclusão na Ordem do Dia na Comissão de Assuntos Econômicos o Projeto nº 258/96, de minha autoria, que cria a área de livre comércio do Distrito Federal.  

São conhecidos os efeitos que as áreas de livre comércio exercem sobre as regiões onde são instaladas. Antes de serem objeto de favorecimento fiscal, essas áreas, sob regime aduaneiro especial, se constituem em importantes instrumentos de indução de desenvolvimento econômico, proporcionando, então, a abertura de grande número de novos postos de trabalho.  

Brasília surgiu sob a égide do pensamento tecnocrático. Criada para abrigar administradores assépticos, Brasília excluiu o povo de seu cenário político. Em nome do desenvolvimento e da segurança nacional todos os sacrifícios eram exigidos da população brasileira para concretização da nova Capital. A almejada segurança justificou a mudança da Capital para um cenário tranqüilo, calmo e silencioso. O desenvolvimento, no entanto, se transformou em crise e a segurança em insegurança, agora apelidada estabilidade, dando lugar à mais bárbara agressividade social, alimentada pelo desemprego.  

Já nos referimos ao fato de que a industrialização em Brasília foi evitada, a fim de que os sindicatos não agitassem a paz do laboratório político que aqui seria criado. Os estudantes, segundo o projeto original, ficariam no cerrado, na Fazenda Cabeça do Veado, onde seria localizada a UnB. A população seria então limitada, até o ano 2000, a 500 mil pessoas.  

Ora, é desnecessário lembrar aqui o quanto Brasília extrapolou as limitações contidas em seu projeto original. A realidade, todos sabemos, transcende os limites frios dos projetos. Assim, temos um Distrito Federal que cresce em ritmo acelerado e cuja população sofre hoje os efeitos de uma concepção artificial de cidade. Em virtude das limitações impostas na sua gênese, o Distrito Federal tem atualmente uma das maiores taxas de desemprego do Brasil. Cumpre rever a identidade de Brasília e, ao menos, reconhecer a situação já existente que requer todos os esforços possíveis no sentido de romper a inércia que caracteriza a atual conjuntura econômica.  

Acreditamos que a criação de um pólo de atividades comerciais, industriais e, conseqüentemente, financeiras no Distrito Federal gerará novas oportunidades de emprego, dinamizando a economia local e regional.  

Brasília, na qualidade de Capital Federal, oferece um expressivo mercado, representado pela Administração Federal, representações e organismos internacionais e embaixadas estrangeiras, sem falar na crescente atuação de agências governamentais e não-governamentais.  

Cidades como Salvador, Rio de janeiro, São Paulo, Belo Horizonte e Goiânia surgiram também como capitais administrativas e se completaram também ao longo de sua história. Esta é a oportunidade que pretendemos dar a Brasília: a de se tornar uma cidade mais completa a partir de um maior desenvolvimento comercial, industrial e financeiro.  

Brasília não é mais uma urbis desumana, fria e bela. Ela se transformou em polis humana, vibrante e inteligente. Foram os estudantes, os artistas, os trabalhadores e funcionários que salvaram Brasília, ao soprar no cimento a alma e o ânimo da vida. (Palmas)  

 

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Este texto não substitui o publicado no DSF de 21/04/1999 - Página 8608