Discurso no Senado Federal

HOMENAGEM A MEMORIA DO DRAMATURGO DIAS GOMES, FALECIDO NESTA MADRUGADA EM SÃO PAULO.

Autor
Artur da Tavola (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/RJ)
Nome completo: Paulo Alberto Artur da Tavola Moretzsonh Monteiro de Barros
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • HOMENAGEM A MEMORIA DO DRAMATURGO DIAS GOMES, FALECIDO NESTA MADRUGADA EM SÃO PAULO.
Aparteantes
Jefferson Peres, Roberto Freire.
Publicação
Publicação no DSF de 19/05/1999 - Página 11965
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM POSTUMA, DIAS GOMES, ESCRITOR, ESTADO DA BAHIA (BA), ELOGIO, ATUAÇÃO, TEATRO, RADIO, TELEVISÃO, BRASIL.

O SR. ARTUR DA TÁVOLA (PSDB-RJ. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, trago uma palavra de amigo, de político e de observador das nossas artes e comunicações, sobre Dias Gomes, falecido de modo tão súbito e brutal, por imprudência de um motorista, na noite de São Paulo, aos 77 anos.  

Dias Gomes pode ser observado na História da Dramaturgia e da Literatura Brasileira, na qual entra agora de modo definitivo, por várias incursões e por vários gêneros. Basicamente, um dramaturgo, e, basicamente, o teatro. Porém, ao lado do que foi básico em sua preocupação intelectual, ele foi radialista e importante autor de radionovelas. E o digo porque considero que a literatura oral tinha na radionovela uma especialidade que, infelizmente, desapareceu. A radionovela de qualidade é literatura.  

Pode ser considerado como homem de televisão, pode ser considerado como escritor - ainda há pouco tempo fez um livro de memórias, As Memórias de um Subversivo -, e pode, ademais, ser considerado como um autor adaptado para o cinema, adaptação da qual O Pagador de Promessas , filme de 1959, baseado em peça dele, do mesmo ano, é o marco, porque àquela época recebeu láurea tão importante quanto a de Central do Brasil recentemente.  

Dias Gomes costumava dizer que "pobre daquele que não veio ao mundo para incomodar". A sua vida foi realmente dividida entre o permanente incômodo que trouxe aos poderosos de qualquer estirpe e, ao mesmo tempo, a sorte que sempre o bafejou e o levou para diante, somados esses dois fatores a um terceiro, que é o da sua capacidade de luta, capacidade permanente de luta, e a um quarto, indispensável ao analisá-lo, a sua visão de mundo, a visão de mundo de um homem acordado para a realidade social brasileira, com propostas para ela, engajado politicamente. E aqui temos, desde logo, o primeiro elemento a se observar na obra de Dias Gomes: ele pertence à geração do pós-guerra no Brasil - começa a escrever peças de teatro na década de 40 -, que tinha, no engajamento da obra, a razão de ser da mesma. Ele é, portanto, um típico representante de uma corrente que permeou a literatura e a dramaturgia: a do autor participante. No caso dele, politicamente participante.  

Pertencia aos que crêem que a obra de arte deva estar permanentemente a serviço de alguma causa prévia a ela. É lógico que toda obra de arte está a serviço de alguma causa, direta ou indiretamente. A obra de arte promove um movimento dialético na sociedade, entre ela e os receptores da comunicação, e este movimento tem, evidentemente, um grau de participação. Porém, no caso, a participação da preocupação de Dias Gomes era político-ideológica, e não político-partidária. Não fazia, portanto, uma obra de proselitismo da sua ideologia, porém fazia uma obra na qual a luta de classes estava no centro das suas preocupações.  

Ao lado da luta de classes, como constatação de sua força, de sua evidência, de sua verdade, em um Brasil injusto socialmente, o universo de Dias Gomes alarga-se na direção de alguns temas que lhe são constantes ao longo da obra. O primeiro desses temas é a capacidade de operar em microrregiões brasileiras, ou seja, situar as suas obras num microssistema que reproduz o macrossistema. Assim, em O Pagador de Promessas; assim, na obra de teatro A Invasão; assim, nas obras de televisão como O Bem-Amado; assim, em Saramandaia; assim, naquela que se refere ao jogo do bicho no Rio de Janeiro, Bandeira 2; assim, em Sinal de Alerta , outra obra importante da sua lavra. E podemos tomar o caso de O Bem-Amado como exemplificação de tudo que pretendo dizer e até como síntese expressiva da obra do Dias Gomes.  

O Bem-Amado nasceu de uma idéia inicial de Dias Gomes em oposição ao então Governador Carlos Lacerda, quando ele pretendeu fazer, no Rio de Janeiro, um cemitério vertical, aí pelos anos 60. A idéia foi abandonada e a ela voltou quando, já em plenos anos do regime de exceção, vai buscar na figura de um prefeito do interior e no envoltório dessa pequena cidade, desse microcosmo, uma expressão do macrocosmo brasileiro. Era, portanto, ali, o uso de uma alegoria riquíssima para expressar, através do humor, da sátira, de diálogos e de conflitos presentes na obra, a sociedade brasileira nos seus grandes conflitos.  

Ali estava a sátira, por exemplo, à grande eloqüência brasileira, ao nosso hábito de tudo resolver com palavras. Dei-me ao trabalho, aliás muito agradável, de selecionar algumas das palavras que Dias Gomes trouxe nas chamadas falações do Odorico Paraguaçu, o seu prefeito. É verdade que ele não foi pioneiro nisso. O escritor José Cândido de Carvalho em O Coronel e o Lobisomem já apresenta esse modo de falar. Dias Gomes ajusta-o à linguagem específica da televisão. Não sei se todos vão se lembrar - imagino que sim - de expressões como "os badernistas", que é uma corruptela da expressão baderneiro, tão usada para se caracterizar os movimentos populares de oposição ao regime. Não sei se se recordam das expressões "ladroísmo", a significar roubalheira; "calunista", que era a forma empolada de o Prefeito Odorico Paraguaçu referir-se aos caluniadores; "trintaoitice", essa palavra tão engraçada nada mais queria dizer do que as ameaças com um revólver 38 na frente dos adversários; "cachacistas"; "desmiolamento", para significar a falta de juízo; e, até uma, um tanto grosseira, se me permite a vetustez deste Senado, o uso da palavra "supositórios" quando queria dizer suposições.  

Esse humor, de certa maneira, causticava a verborragia brasileira, e aqui, baixinho, entre nós - que não nos ouçam senão os Srs. e as Srªs Senadoras e os telespectadores da TV Senado - , um pouco vício nosso, político, que temos o verbo como única forma de expressar as nossas realidades e nem sempre somos felizes no seu uso. Mas ali estava, principalmente, uma crítica, primeiro, à centralização ditatorial, típica da política brasileira: uma oligarquia absolutamente única de um prefeito que se prorrogava no poder; não havia propriamente oposição; a oposição era caricata, era esmagada pelo prefeito, que tinha como única preocupação divertir-se sensualmente com os membros do seu gabinete, por sinal três senhoras extremamente pudicas na aparência, as irmãs Cajazeiras - não sei se se recordam delas -, e o seu sonho de inaugurar o cemitério, cemitério que, ao longo de toda a obra, não se inaugura. Dão-se, então, ali, todos os problemas vivenciais de uma macrossociedade, num Brasil sem democracia, expresso pelo veículo televisão, num momento muito especial da televisão brasileira.  

Aqui cabe fazer, no tempo que me cabe, um tempo reduzido para uma obra tão importante e tão vasta, uma outra observação que me parece curiosa. A meu pobre juízo, a televisão brasileira obteve até hoje o seu auge entre os anos 70 e a metade da década de 80, aproximadamente 1985. De 1970 a 1985, a televisão brasileira consegue momentos nunca mais conseguidos, nem na programação infantil, nem nas telenovelas, nem na qualidade do telejornalismo, nem, enfim, nos programas de auditório e nos programas de shows para o puro entretenimento da população.  

Fiquemos no capítulo telenovela. O que acontecia nessa fase? Primeiro, alguns de nossos principais autores estavam proibidos nos teatros, estavam sem mercado de trabalho, sem ter onde apresentar suas obras, mercê da censura. Alguns de nossos principais atores, em conseqüência, não estavam a trabalhar. Houve, nesse momento, um paradoxo extremamente curioso e desafiador: a televisão, aparelho ideológico do sistema, interessado na manutenção do status quo , tendo porém um problema de audiência - e, no caso, a meu juízo, o descortino de figuras como o Boni, José Bonifácio de Oliveira, e o Daniel Filho -, contrata essas pessoas banidas de seu mercado habitual de trabalho. E a televisão vive, em função disso, um momento autoral excepcional. É o tempo de Dias Gomes, Jorge Andrade, grande dramaturgo, Lauro César Muniz e Bráulio Pedroso. E, possivelmente, 90% dos principais atores brasileiros que, até então, resistiam à televisão, com o gradativo domínio da técnica, vêm também para a televisão, gerando um momento importante da telenovela.  

A telenovela viria a ser um marco na audiência, o fator determinante na audiência, como até os dias de hoje o é. Com uma diferença: a partir de meados da década de oitenta, uma vez consolidado o gênero, graças ao trabalho dessa geração, a televisão passa a fazer telenovelas aproximadamente com o mesmo teor, variando os personagens e uma ou outra situação, mas, digamos assim, totalmente comandada pelas pesquisas de opinião e não mais pelo caráter autoral.  

Aqui, um ponto: enquanto a telenovela brasileira foi autoral, ela chegou ao auge do gênero. A partir do momento em que tem um autor e vários colaboradores, ela pode crescer em ludismo, pode ser muito prática, etc.; porém, ela perdeu autoria. E verifiquem que Jorge Andrade morreu, Lauro César Muniz, de certa forma, se afastou - voltou com Chiquinha Gonzaga e mostrou que a presença de um dramaturgo é importante -, Dias Gomes se afastou, morreu Janete Clair. É claro que a nova geração tem figuras como Gilberto Braga e outros que levam adiante esse pendão - não há dúvida, importantes dramaturgos. Porém, desapareceu a obra autoral, como desapareceu a obra autoral na direção.  

Havia uma preocupação de cada diretor em dar um estilo. E mais ainda, era um momento em que as câmeras deixavam de ser pesadas, passavam a ser portáteis e, portanto, podiam sair do estúdio e ganhar a realidade brasileira, essa realidade rica, variada, geograficamente deslumbrante, socialmente diversificada, paradoxal, "a jovem índia", como alguém já chamou certa vez.  

Aí, Dias Gomes refulgiu. Podendo usar o externo, a gravação externa, trouxe o Brasil de volta. A sua primeira novela, Verão Vermelho, é passada no interior da Bahia; O Bem Amado , igualmente; O Espigão é uma novela que condena violenta e claramente a especulação imobiliária que destruiu as grandes cidades brasileiras;

Sinal de Alerta foi, adiante no tempo, um grito ecológico, tudo isso como uma dramaturgia popular, graças a essa fusão curiosa. O sistema produtor precisava chegar às pessoas; tinha os instrumentos, os dramaturgos. Ao mesmo tempo, o sistema produtor, arauto da ideologia do sistema, muitas vezes era prejudicado pelo próprio sistema, que, a esse tempo, possuía a censura pela polícia. Nesse entrechoque, ainda com dificuldade, foi possível viger, em plena ditadura - a palavra é essa -, pedaços de liberdade, por meio de uma dramaturgia popular que, infelizmente, não se repetiu ao longo dos demais anos na televisão brasileira.  

Nesse sentido, Dias Gomes foi um brilhante guerreiro: um brilhante guerreiro com a palavra, um brilhante guerreiro com as idéias, sempre sabendo fazer o humor, o ludismo, o espetáculo visual, o espetáculo teatral. Isso sem deixar de lado a sua atividade teatral básica, a sua militância política nos movimentos de redenção, nos movimentos de busca da democracia.  

Ao saudar a figura de Dias Gomes, não apenas como quem com ele durante algum tempo conviveu - foi, é e será seu amigo -, mas alguém que, sobretudo, sempre o admirou. Neste dia em que o perdemos, não posso deixar de usar o tempo, que, aliás, estava destinado a outro discurso, para lembrá-lo.  

O Sr. Roberto Freire (Bloco/PPS-PE) - V. Exª me permite um aparte?  

O SR. ARTUR DA TÁVOLA (PSDB-RJ) - Não posso também, evidentemente, deixar de conceder o aparte ao Senador Roberto Freire.  

O Sr. Roberto Freire (Bloco/PPS-PE) - Mesmo que tivesse pensado em outro discurso não podia, porque não estou inscrito. Então, vou ter que me associar a V. Exª, evidentemente, com a dupla perda. Todo o Brasil sente essa perda, e V.Exª, talvez em rápidas, mas muito pertinentes palavras, está dando um certo sumário do que foi ele na cultura brasileira. A outra perda é pessoal. Militante que foi do nosso Partido, militante em tantas lutas políticas, tive a honra de conviver com Dias Gomes e conviver mais estreitamente em um momento que para mim foi muito marcante: quando candidato a Presidente da República pelo então Partido Comunista Brasileiro, ele foi presença ativa na campanha junto conosco, trazendo exatamente aquilo que ele tinha e que era bem brasileiro: a idéia de que, mesmo não se podendo mudar o mundo com a obra, seja dele, seja de um indivíduo ou de um partido na política, de qualquer forma cada um de nós tem que fazer aquilo que sua consciência manda. E ele o fazia mesmo nos períodos mais duros e difíceis. Alguns exemplos aí foram dados, e aqui elenco outros. Queria pedir licença, nesta homenagem, solidarizando-me, para dizer que vou encaminhar discurso à Mesa, até porque, não estando inscrito, só poderia fazê-lo em uma comunicação inadiável.  

O SR. ARTUR DA TÁVOLA (PSDB-RJ) - Senador Roberto Freire, se V. Exª desejar, pode usar o tempo que quiser do meu discurso. Será o maior prazer para mim.  

O Sr. Roberto Freire (Bloco/PPS-PE) - Posso encaminhá-lo por escrito, até porque, agora neste final, tendo tido conhecimento, escrevi alguma coisa, até para não dizer apenas da emoção, da solidariedade; não dizer apenas - como aqui eu digo - que o imortal Dias Gomes está presente conosco.  

O SR. ARTUR DA TÁVOLA (PSDB-RJ) - Muito obrigado, Senador.  

O Sr. Jefferson Péres (Bloco/PDT-AM) - Permite-me V. Exª um aparte?  

O SR. ARTUR DA TÁVOLA (PSDB-RJ) - Com prazer, ouço o aparte do nobre Senador Jefferson Péres.  

O Sr. Jefferson Péres (Bloco/PDT-AM) - Senador Artur da Távola, ouço, com a atenção de sempre, V. Exª, que faz um excelente análise da obra de Dias Gomes, hoje desaparecido dessa forma brutal. Dias Gomes foi um crítico de costumes e um crítico social dos mais percucientes que este País já teve. E, para ser sintético, Senador, ainda hoje de manhã na CPI do Judiciário, ouvi depoimentos e assisti a uma fita de vídeo que me fizeram lembrar Dias Gomes. Eram cenas, Senador, que mostravam como ele caricaturou o Brasil. Eu disse: "Isso aí me parece uma ‘Sucupira’!", coincidindo com a morte do Dias Gomes. Infelizmente, a dramaturgia brasileira sofreu um desfalque enorme, mas felizmente ainda existem Senadores do seu porte para fazer o resgate da obra desse grande vulto da literatura brasileira que foi Dias Gomes. Portanto, meu parabéns, Senador Artur da Távola!  

O SR. ARTUR DA TÁVOLA (PSDB-RJ) - Obrigado, Senador. V. Exª, como sempre, preciso.  

Srª Presidente - neste instante estamos sendo presididos por uma mulher, o que muito nos honra -, Srªs Senadoras e Srs. Senadores, esses foram, como tantos outros, os luminares da grande resistência brasileira. Se hoje temos esta Casa aberta, se hoje falamos o que falamos, se hoje convivemos nas divergências peculiares à democracia, se hoje o País consegue ter uma política de direitos humanos em ascensão, em crescimento - criticada, valorizada, mas em crescimento, em expansão -, não parece, mas foi da obra de pessoas como Dias Gomes que se alimentou essa possibilidade de democracia - democracia que, felizmente, ele chegou a ver.  

Felizmente, o próprio establishment brasileiro o reconhece quando a Academia Brasileira de Letras o tem como um de seus imortais; alguém por haver sido talentoso, alguém por haver sido um autor de profundo amor pelo povo do Brasil, alguém por haver sido um arauto da liberdade, alguém por haver sido coerente com sua visão de mundo, alguém que sonhou e transformou seu sonho na realidade de uma grande obra literária.  

Muito obrigado, Srª Presidente. Muito obrigado, Srs. Senadores, pela atenção.  

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Este texto não substitui o publicado no DSF de 19/05/1999 - Página 11965