Discurso no Senado Federal

CONTRIBUIÇÃO DE DIAS GOMES PARA A CULTURA BRASILEIRA.

Autor
Lúcio Alcântara (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/CE)
Nome completo: Lúcio Gonçalo de Alcântara
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • CONTRIBUIÇÃO DE DIAS GOMES PARA A CULTURA BRASILEIRA.
Publicação
Publicação no DSF de 16/06/1999 - Página 15393
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM POSTUMA, DIAS GOMES, ESCRITOR, ELOGIO, ATUAÇÃO, TEATRO, RADIO, CINEMA, TELEVISÃO, BENEFICIO, CULTURA, BRASIL.

O SR. LÚCIO ALCÂNTARA (PSDB–CE) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, a contribuição de Dias Gomes para a cultura brasileira não se deixa facilmente avaliar. Podemos enumerar as linguagens e meios de comunicação a que se dedicou, destacando logo o teatro, arte que mais amava e na qual deixou a marca definitiva de seu talento; incluindo também a literatura não dramática – romances, contos e a autobiografia –, passando pelos programas de rádio e pelo cinema, até chegar à televisão, veículo que renovou em profundidade, conduzindo o autor, por sua vez, a públicos muito mais amplos do que aqueles que costuma alcançar um intelectual em nosso País. Em todos esses setores da vida cultural e artística brasileira, são notáveis as realizações do baiano Dias Gomes.  

Há algo, no entanto, que transcende o simples inventário de suas realizações; há um fator de mais difícil apreensão, uma "qualidade Dias Gomes", que perpassa o conjunto das suas produções e atividades e lhe concede um inconfundível relevo, uma admirável coerência e um alto significado para todos nós, brasileiros. É isso o que propriamente não pode ser contabilizado, muito embora devamos tentar apreendê-lo.  

O nascimento de Alfredo de Freitas Dias Gomes ocorreu na cidade de Salvador, em 19 de outubro de 1922 – ano esse, como se sabe, de singular importância para a história brasileira, pois assinala a realização da Semana de Arte Moderna em São Paulo, a eclosão do Movimento Tenentista no Rio de Janeiro, além da fundação do Partido Comunista Brasileiro, também na então capital do País. Órfão de pai desde os 3 anos de idade, o menino cresce respirando o ar de liberdade das ruas da Bahia, ao mesmo tempo que desperta precocemente para a vocação literária.  

Aos treze anos, muda-se para o Rio de Janeiro com a mãe e o irmão, dez anos mais velho e arrimo de família, quando este vai servir o Exército como oficial médico. O caçula Alfredo escreve a primeira peça de teatro, A Comédia dos Moralistas , aos quinze anos de idade, sendo ela premiada pelo Serviço Nacional de Teatro e publicada em 1939. A sua estréia no teatro profissional se dá pouco depois, pelas mãos de um dos mais famosos atores brasileiros da época, Procópio Ferreira, que montou, no Rio e em São Paulo, a peça Pé-de-Cabra, de autoria do jovem dramaturgo. Data daí a primeira dificuldade com a censura, representada pelo famigerado Departamento de Imprensa e Propaganda do Estado Novo, que proibiu a peça no dia de estréia, só liberando-a após cortes substanciais, fato que não impediu que a mesma obtivesse grande sucesso de público. Como visse seu texto qualificado de marxista, Dias Gomes passou a preocupar-se em estudar a teoria da qual nada conhecia, processo que termina por levá-lo a se filiar ao Partido Comunista.  

Nessa fase de formação, o jovem autor escreve romances e contos e novas peças para Procópio Ferreira, além de outras peças que jamais serão encenadas. Em 1944, recebe o convite de Oduvaldo Vianna, o pai, para trabalhar na Rádio Pan-Americana , de São Paulo, onde produz adaptações de peça, romances e contos, e outros programas culturais. É no ambiente de trabalho radiofônico que Dias Gomes conhece Janet Emer, que se tornará a grande dama da teledramaturgia brasileira com o nome artístico de Janete Clair. O casamento dos dois escritores é celebrado em 1950, resultando, conforme as palavras de Dias Gomes, em "33 anos de felicidade e três filhos maravilhosos".  

Continuando esse breve esboço biográfico, o casal muda-se para o Rio, logo após o casamento, passando Dias Gomes a trabalhar na Rádio Clube do Brasil . Dessa emissora, será demitido em 1953, por conta de uma viagem à União Soviética, passando ainda a integrar, durante nove meses, uma lista negra de autores excluídos do rádio e da TV. Em 1956, é contratado pela Rádio Nacional , onde permanecerá por oito anos; paralelamente, adapta peças, romances e contos para a TV Rio , quando a televisão é ainda um meio de comunicação incipiente no País. Além disso, nosso autor dá prosseguimento à sua mais genuína vocação literária, coligindo material a ser dramatizado, refletindo sobre sua arte.  

O resultado não tarda a surgir na peça O Pagador de Promessas , escrita em 1959 e estreada, com grande repercussão, em 1960, constituindo marco decisivo na carreira do escritor. Antes de tudo, assinala o momento de maturidade do dramaturgo, quando ele mostra plena consciência e domínio dos recursos teatrais, mobilizados para a consecução de uma arte estreitamente vinculada à realidade brasileira. Pouco após a montagem do Teatro Brasileiro de Comédia, sob a direção de Flávio Rangel e com Leonardo Villar no papel principal, a peça será transformada em filme, com adaptação do próprio autor e direção de Anselmo Duarte, obtendo a consagração da Palma de Ouro do Festival de Cannes, em 1962. O filme e a premiação que lhe foi concedida constituem marcos para a cinematografia nacional, prenunciando o grande impacto que o Cinema Novo, em gestação, causará em todo o mundo.  

O Pagador de Promessas , ao mostrar com toda a nitidez um conflito dramático insolúvel, exceto pelo desenlace fatal, ao respeitar a unidade de ação, tempo e lugar, e ao conceder ao conflito a dimensão da universalidade, aproxima-se das concepções da tragédia clássica. Seus personagens, no entanto, muito diferem dos deuses e semideuses que povoavam o teatro grego. O protagonista Zé do Burro é um camponês de espírito ingênuo, que pretende cumprir uma promessa a Santa Bárbara por uma graça alcançada. A graça é justamente a cura de um burro de sua extrema afeição; a promessa, a de carregar uma pesada cruz por léguas até depositá-la no interior de uma igreja consagrada a Santa Bárbara; a Santa, é a mesma Iansã de um terreiro de candomblé. Estabelece-se assim o conflito com o poder e as tradições da Igreja Católica, representada principalmente pelo pároco da igreja, que não pode aceitar o sincretismo nem a autêntica e pouco convencional religiosidade de Zé-do-Burro, que inclui o amor franciscano pelos animais e a preocupação com os camponeses sem terra. No dizer de Patrícia Galvão, a Pagu, poeta e musa do Modernismo, a tragédia de Zé-do-Burro, em síntese, "é a tragédia da fé contra as limitações do dogma" – isso, em que pesem as convicções marxistas e agnósticas do autor.  

Mas o conflito é ainda mais abrangente, pois inclui a incompatibilidade entre a consciência íntegra e ingênua do camponês e o jogo de interesses dos vários personagens da cidade grande. Dias Gomes dispõe no espaço da praça um colorido panorama da sociedade de Salvador, abrangendo o repórter, o rufião, os policiais, o galego comerciante, as beatas e a camada mais popular dos capoeiras e da mãe-de-santo, único grupo que mostra uma verdadeira solidariedade com o protagonista e termina por fazê-lo cumprir a promessa, mesmo já morto sobre sua cruz.  

Para o crítico Anatol Rosenfeld, partindo de uma causa menor e aparentemente ridícula, Dias Gomes alça Zé-do-Burro à categoria do herói mítico, definido por Hegel como aquele em que "os valores que defende e a tarefa que pretende executar (...) fundem-se completamente com sua personalidade", o que explica e justifica sua intransigência. Já de acordo com Sábato Magaldi, a peça expõe a "tirania de qualquer sistema organizado contra o indivíduo desprotegido e só".  

Não podemos, enfim, deixar de ressaltar o passo grandioso que foi dado, com O Pagador de Promessas , na direção de um teatro que adota uma linguagem de autêntica brasilidade, revelando, ao mesmo tempo, com argúcia, nossos problemas sociais e políticos. O próprio autor será um dos que seguirão pelo caminho desde então aberto: através dos "saltos e mutações", que, de acordo ainda com Anatol Rosenfeld, caracterizam sua produção teatral, Dias Gomes permanecerá comprometido com o propósito de abordar e denunciar aquelas estruturas da sociedade brasileira que negam a dignidade do ser humano; afirmando, em contraposição, o esforço, mesmo que pragmaticamente ineficaz, de superação dessas limitações. Na impossibilidade de analisar todas as suas peças de interesse, mencionemos apenas algumas, que atestam a coerência de desenvolvimento de uma das obras fundamentais do teatro brasileiro.  

A Invasão , de 1960, parte do episódio verídico de ocupação de um edifício abandonado pelos sem-teto, no Rio de Janeiro, para compor um painel da vida dos segmentos excluídos da sociedade, com seus sofrimentos e lutas, com a presença constante da opressão e o difícil processo de tomada de consciência de suas próprias condições. O Bem-Amado , publicada em 1962, deixa transparecer em todo o vigor a veia cômica e satírica de Dias Gomes, já presente de modo difuso na maioria de suas peças, utilizada agora para caracterizar a conduta de um líder político interiorano. O Berço do Herói é uma tragicomédia que, assim como O Bem-Amado , age no sentido de desmascarar os falsos mitos; no caso, o de um pretenso herói falecido na guerra, que volta a sua cidade natal ignorante do engrandecimento a que fora submetido o seu nome. Ao contrário de O Pagador de Promessas , que, juntamente com a obra de 1964, O Santo Inquérito , aponta para a possibilidade de heroísmo do indivíduo incompreendido pela sociedade, em O Berço do Herói constatamos antes a dificuldade da noção de herói em um mundo dessacralizado, que pode ser destruído por um simples apertar de botão. Se as mortes de Zé-do-Burro e de Branca Dias, a moça pura martirizada pelos tribunais da inquisição em O Santo Inquérito , elevam suas vítimas para muito acima do alcance de seus oponentes e algozes, a morte do Cabo Roque – o homem comum feito herói compulsoriamente, para servir a interesses alheios – não redime nem adquire qualquer transcendência.  

Dr. Getúlio, Sua Vida e Sua Glória é uma peça musical, escrita em 1968 em parceria com o poeta Ferreira Gullar, que incorpora elementos do samba-enredo e do desfile de escola-de-samba, tecendo sua trama com duas linhas paralelas: uma é a peça dentro da peça, relatando o período do último mandato de Getúlio Vargas; outra é a história que se passa na escola-de-samba que adotou aquele enredo. Para o erudito crítico Anatol Rosenfeld, a peça, que será reformulada e rebatizada de

Vargas, constitui, "em escala internacional, uma das mais brilhantes peças políticas da atualidade". Ao mesmo tempo que procura "apresentar uma imagem objetiva e crítica do estadista Getúlio e da sua política contraditória, sem omitir quer os lados negativos, quer positivos da sua conduta nos últimos anos de seu regime", a peça busca refletir sobre a relação do povo com o mito e com a figura política de Vargas. Temos, uma vez mais, a questão do heroísmo e do mito, assim como a oposição entre os indivíduos singulares – bem ou mal intencionados, mas antes de tudo humanos – e a sociedade – em seu desenvolvimento histórico, que segue forças nem sempre compreensíveis ou justificáveis em uma escala individual. Persiste, no entanto, aquilo que podemos chamar, junto com o filósofo alemão Ernst Bloch, de "princípio esperança", que afirma a capacidade humana de reinventar a história, dando um sentido positivo ao sofrimento pretérito.  

Dias Gomes continuará escrevendo peças de grande qualidade, como Amor em Campo Minado , As Primícias e Campeões do Mundo , mas seus caminhos vão levá-lo cada vez mais rumo à televisão. Provavelmente contribuíram para isso os muitos revezes que seu teatro sofreu da censura nos anos da ditadura militar: A Revolução dos Beatos , que estréia em 1963, é proibida no ano seguinte; O Berço do Herói é proibida na noite de estréia, em 1965; A Invasão , que estreara anos antes, é proibida em 1969. Some-se a isso que o dramaturgo foi demitido de seu emprego de Diretor Artístico da Rádio Nacional , já pelo Ato Institucional nº 1 do regime instalado em abril de 1964.  

O teatro, de algum modo, exigia uma abordagem mais profunda e mais direta dos problemas, até por contar com um público mais exigente e informado. Já a televisão apresentava outros desafios: era necessário falar para um público grande e heterogêneo; era impraticável, naquele momento, pensar em expor uma mensagem política direta; era possível, no entanto, fazer o público pensar, levando-lhe os problemas da realidade brasileira; era possível, ainda, empregar a arma do riso, aparentemente inocente mas, em verdade, dotada de grande poder desmascarador e desmistificador.  

Dias Gomes estréia na Rede Globo , onde, a partir de então, fará toda a sua carreira televisiva, com uma novela conforme os padrões da época, utilizando para tanto um pseudônimo. Logo em seguida, escreve Verão Vermelho , conseguindo a proeza de abordar na televisão um tema como a reforma agrária – isso em 1970, auge da repressão do regime militar. A realidade brasileira, em seus aspectos problemáticos, continuou a ser exposta com realismo e coragem nas novelas Assim na Terra como no Céu e Bandeira 2 . Uma nova revolução na teledramaturgia brasileira virá com O Bem-Amado , adaptação da peça escrita uma década antes, misturando de modo perfeito o humor e a cor regional, a caracterização de tipos inesquecíveis e a crítica social e política. Dias Gomes começa aí outra vertente de sua novelística, afastando-se de uma abordagem realista para dar maior espaço ao vôo livre da imaginação; sem perder, contudo, a visada crítica sobre a realidade. Esta tendência será aprofundada em Saramandaia, original apropriação do realismo fantástico da literatura latino-americana. Um dos maiores sucessos da televisão brasileira foi a novela Roque Santeiro , que reunia várias tendências de sua produção anterior e foi levada ao ar em 1985, dez anos após a censura da primeira versão televisiva – tratando-se, em verdade, de uma recriação do tema da peça O Berço do Herói .  

De acordo com Maria Aparecido de Aquino, historiadora da Universidade de São Paulo, "a importância de Dias Gomes foi pôr a inteligência a serviço da televisão". Já o roteirista Doc Comparato afirma que Dias Gomes, na televisão, "inovou no conteúdo, na forma e no gênero. (...) Nunca temeu buscar uma linguagem nova, jamais deixou de arriscar. Ele recusava a se repetir." Precisamos, de fato, de dar continuidade a essa tradição inaugurada por Dias Gomes, criando obras para a televisão que tenham apelo popular, e que, ao mesmo tempo, façam refletir; que aprimorem a sensibilidade e que ampliem o campo de percepção dos espectadores. Esse desafio permanece para nossos intelectuais e artistas, mas sobretudo para as redes de televisão, que não dão àqueles oportunidades suficientes para explorar seus talentos, para sair das fórmulas fáceis, para ousar.  

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, constatamos, com tristeza mas também com admiração, que Alfredo de Freitas Dias Gomes morreu jovem, após 76 anos de vida bem vivida. Ele, que tinha inúmeros motivos para se acomodar, inclusive o ingresso na Academia Brasileira de Letras, permaneceu um inquieto até o fim, produzindo e alimentando novos projetos; ele, que podia descansar, satisfeito de sua glória, dizia que, se tivesse a oportunidade, faria de modo diferente muitas das coisas que fez, tanto na vida como na arte. Em uma entrevista concedida por ocasião do lançamento de sua autobiografia Apenas Um Subversivo , há um ano, Dias Gomes afirmava que já não pertencia a um partido, mas continuava "com aquele sonho fora de moda de uma sociedade mais justa". Pelo direito de livre expressão e pelo direito de sonhar; pelo direito de pensar e de arriscar, bem como pelo direito de uma sociedade mais justa, devemos cultivar sempre a memória de Dias Gomes e de sua obra.  

Muito obrigado.  

 

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Este texto não substitui o publicado no DSF de 16/06/1999 - Página 15393