Discurso no Senado Federal

HOMENAGEM AOS 20 ANOS DA LEI DE ANISTIA.

Autor
Lúcio Alcântara (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/CE)
Nome completo: Lúcio Gonçalo de Alcântara
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • HOMENAGEM AOS 20 ANOS DA LEI DE ANISTIA.
Publicação
Publicação no DSF de 21/08/1999 - Página 21785
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM, ANIVERSARIO, CRIAÇÃO, LEI DE ANISTIA.
  • COMENTARIO, ARTIGO DE IMPRENSA, JORNAL, FOLHA DE S.PAULO, ESTADO DE SÃO PAULO (SP), AUTORIA, ELIO GASPARI, JORNALISTA, PROPOSIÇÃO, ATO, JUSTIÇA, RECONHECIMENTO, RESPONSABILIDADE, JOÃO FIGUEIREDO, EX PRESIDENTE DA REPUBLICA, SANÇÃO, LEI DE ANISTIA.

O SR. LÚCIO ALCÂNTARA (PSDB-CE.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, costumamos dizer, com certa autocomplacência, que o brasileiro não tem memória. De fato, somos contaminados, desde a infância, pela ideologia segundo a qual este seria o "país do futuro". Comodamente, pensamos que a História, para valer, está toda a nossa frente; a mesma fuga faz com que, em berço esplêndido, descansemos as consciências repetindo o bordão "o que passou, passou".  

Por outro lado, é preciso lembrar que uma parcela substancial de nossa população, mergulhada na pobreza e na miséria, sobrevive no imediatismo absoluto, precisando obter, a cada dia, o mínimo prato de comida que lhe permita subsistir, quem sabe, até o dia seguinte. Vive-se, assim — se é que se pode chamar a isso vida —, um dia por vez. Para esses, os conceitos de futuro e de passado carecem de qualquer sentido.  

Desse modo, entre os que sonham com um amanhã menos áspero, muitas vezes sem se preocupar em construí-lo, por o considerarem um dom certo e gratuito de Deus, e os que são prisioneiros do instante, por precisarem lutar pela sobrevivência, poucos de nós se ocupam da tarefa de refletir sobre o ontem. Nesse quadro, não é somente a epopéia de nossa formação histórica que é obnubilada: até mesmo o passado recente, senão recentíssimo, aquele que decorreu no tempo breve da existência dos que estamos vivos aqui, parece-nos remoto e irrelevante para nossas vidas.  

Trata-se, é evidente, de um engano. É sobejamente conhecida a máxima filosófica segundo a qual quem ignora os erros do passado está condenado a repeti-los. Tristemente, esse aparenta ser o caso de nossa cultura, de nosso povo. Entretanto, é verdade que a lembrança dos grandes momentos da História de um país, o festejo dos aniversários dos feitos notáveis dos homens e mulheres que antecederam os viventes do momento, tudo isso constitui os ritos do que se pode chamar "religião cívica". É o cimento que, acima das diferenças individuais e políticas, une as pessoas como integrantes de uma mesma Nação.  

Os norte-americanos, por exemplo, apesar das muitas divisões de uma sociedade tão multirracial e multicultural quanto a nossa, têm plena consciência disso. Feriados como o dia da Independência, o dia de Ação de Graças ou os aniversários de George Washington, Abraham Lincoln e Martin Luther King são datas nacionais guardadas com sincero zelo por todos os cidadãos dos Estados Unidos. Todos conhecem o significado desses homens e dessas datas para a unidade nacional.  

Para além dos ufanismos e das patriotadas vazias, portanto, relembrar os grandes momentos e os grandes vultos da História de uma nação é dever de todo cidadão consciente e bem informado. Por essa razão é que subo, hoje, a esta tribuna, para trazer aos Senhores Senadores a lembrança de um desses momentos em que a História de nosso País deu um passo fundamental à frente. De um momento em que foi virada uma página triste dessa História.  

Estou a falar, os Senhores já devem intuir, do aniversário de vinte anos da Lei da Anistia. Pois foi em 28 de agosto de 1979 — justamente neste mês tão caluniado pelos supersticiosos de todo tipo, que o proclamam aziago —, que o Presidente João Figueiredo sancionou a Lei de Anistia, pondo fim a quinze anos de exceção e arbítrio.  

O fato de que o Presidente Figueiredo fosse um dos generais da ditadura, e, mais ainda, que houvesse servido na chefia do Serviço Nacional de Informações — SNI durante o período da chamada "guerra suja", não pode eclipsar esta verdade: foi ele quem assinou a Lei, contrariando a disposição de muitos dos integrantes de seu Governo e de sua corporação — as Forças Armadas. Devemos esse reconhecimento a um homem que deixou o Palácio do Planalto pedindo que o esquecêssemos.  

A perspectiva histórica, entretanto, vai conferindo aos homens e a seus atos sua verdadeira significação. Vinte anos constituem tempo suficiente para a dissipação das paixões mais ardentes do momento e permitem até, por exemplo, a reabertura de um caso como o do atentado do Rio-Centro, cujo acobertamento foi um dos piores erros do governo do próprio general Figueiredo, senão de toda a ditadura militar. O jornalista Elio Gaspari, em sua página na Folha de S. Paulo do dia 8 do corrente mês, ao relembrar a conjuntura política da época, nos propõe esse ato de justiça histórica, que endosso com este pronunciamento.  

Peço, portanto, a licença aos Senhores Senadores para reproduzir aqui algumas das informações contidas nessa coluna, que todos temos na conta de uma das melhores da imprensa.  

Antes da Lei da Anistia, havia brasileiros de segunda categoria, aos quais eram negados direitos fundamentais da cidadania. Havia aqueles que, tendo tido cassados seus direitos políticos, estavam compulsoriamente afastados de suas vocações de parlamentares e administradores públicos, caso do atual Governador paulista Mário Covas; havia os que, banidos do País, estavam proibidos de regressar e, se o tentassem, podiam ser capturados e mortos pelo aparato repressivo; havia, enfim, os exilados, privados até do direito de registrar nas repartições consulares brasileiras seus filhos nascidos no exterior.  

A luta pela anistia, que começou pela ação da Sra. Terezinha de Jesus Zerbini, esposa de um general cassado, e do marechal, também cassado, Pery Beviláqua, encontrou seu grande articulador político no Senador Petrônio Portella. Nas negociações com os militares destacaram-se também os Deputados Thales Ramalho e Ulysses Guimarães, que, em 1975, momento ainda tenso do regime de exceção, encontraram-se secretamente com o estrategista do regime, general Golbery do Couto e Silva.  

O jornalista Elio Gaspari lembra, também, a carta enviada ao Presidente Figueiredo pela Sra. Edila Mangabeira Unger, mãe de uma militante do PCBR mantida no cárcere, instando o general a fazer uma anistia ampla, e não o arremedo de anistia que os falcões do regime desejavam. Um argumento que deve ter pesado no coração e na mente do Presidente foi a lembrança de seu pai, Euclides Figueiredo, citado na carta da Sra. Edila como um preso que seria excluído da anistia pretendida pelos setores mais duros do regime, se suas ações contra o Governo, cometidas durante a ditadura Vargas, houvessem ocorrido nos anos sessenta e setenta.  

A distância que nos separa dos acontecimentos confere perspectiva, também, a atos de bravura como o do Capitão Sérgio Miranda de Carvalho, o Sérgio Macaco , que se recusou a obedecer a ordem de um superior seu, o Brigadeiro João Penido Burnier, de dinamitar o gasômetro da cidade do Rio de Janeiro, atentado planejado para causar centenas de mortes e cuja responsabilidade seria atribuída aos grupos de resistência armada ao regime. Carvalho, no comando do Parasar, grupo de elite de pára-quedistas especializados no resgate de vítimas de inundações e outras catástrofes naturais, declarou ao brigadeiro ter sido treinado para salvar vidas, e não para matar, pelo que foi destituído e expulso com desonra das Forças Armadas.  

Para esse homem, hoje infelizmente falecido, a anistia, a reintegração e a indenização não bastam. A Nação deve-lhe a inserção na galeria dos grandes heróis nacionais, como exemplo de dignidade e senso do dever colocado acima dos interesses pessoais e corporativos. Ainda veremos seu nome nos livros escolares de História, nos quais as crianças brasileiras aprenderão a amar nosso País por aquilo que ele é, não por aquilo que os ideólogos sonham, e, principalmente, por nossos vultos verdadeiramente grandes.  

Se hoje, por infelicidade ou por incompetência nossa, o Brasil continua a ser um país socialmente injusto, e se a violência nas cadeias e prisões continua a nos envergonhar, a verdade é que podemos nos orgulhar de uma conquista de nossa democracia: o fato de não existirem mais presos políticos nos subterrâneos do Estado. Isso não é coisa pouca: basta considerarmos países de nível semelhante de desenvolvimento, tanto na Ásia como em nossa América Latina, para vermos como, em muitos deles, discordar da voz oficial ainda é crime.  

O vigésimo aniversário da sanção, pelo Presidente Figueiredo, da Lei da Anistia é uma data que não pode passar sem a devida comemoração por parte dos democratas, independentemente de suas diversas orientações político-partidárias. Foi um momento de virada da História talvez tão importante quanto a Abolição da Escravatura ou a Proclamação da República.  

Não deixa de ser irônico, e de nos conclamar à reflexão, o fato de que muitos dos que, hoje, ocupam posições-chave na estrutura de comando do Governo fossem, vinte anos atrás, cidadãos de segunda categoria, presos, exilados ou cassados. Talvez não haja prova maior de que esta seja uma data a relembrar.  

Muito obrigado.  

 

losã )


Este texto não substitui o publicado no DSF de 21/08/1999 - Página 21785