Discurso no Senado Federal

COMEMORAÇÃO DO DIA DO FLOCORE, EM 22 DE AGOSTO ULTIMO.

Autor
Lúcio Alcântara (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/CE)
Nome completo: Lúcio Gonçalo de Alcântara
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • COMEMORAÇÃO DO DIA DO FLOCORE, EM 22 DE AGOSTO ULTIMO.
Publicação
Publicação no DSF de 26/08/1999 - Página 22163
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM, DIA NACIONAL, FOLCLORE.
  • RECONHECIMENTO, IMPORTANCIA, ATUAÇÃO, LUIZ DA CAMARA CASCUDO, ESCRITOR, ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE (RN), ESTUDO, HISTORIA, FOLCLORE, BRASIL.

O SR. LÚCIO ALCÂNTARA (PSDB-CE) - Sr. Presidente, Srªs. e Srs. Senadores, há data para todos e para tudo nesse mundo pós-moderno em que vivemos. Mas estou convencido de que há algumas que merecem ser, de fato, comemoradas enquanto exercício coletivo de memorização. Nessa linha, no último dia 22 de agosto, comemoramos o Dia do Folclore, que, para nós brasileiros, deve adquirir sentido especial. Isso porque nos remete para uma reflexão ampla e comunitária sobre nosso patrimônio maior: nossa identidade nacional.  

Portanto, peço-lhes licença e reservo-me, hoje, espaço para discorrer sobre o folclore e sua influência na construção da memória cultural no Brasil. Mais detalhadamente, presto homenagem a todos os folcloristas e, em especial, ao inestimável Luís da Câmara Cascudo. Folclore, aqui, então, receberá tratamento menos como manifestação concreta da cultura nacional, mas sim como disciplina do conhecimento, formalmente destinada a valorizar o patrimônio da cultura popular.  

Antes, porém, convém alertar para o fato de que folclore, na atualidade acadêmica, não goza mais do prestígio de que era objeto até o fim da primeira metade deste século. Historicamente, os estudos de folclore vieram a ganhar destaque na intelectualidade brasileira somente nos meados do século 19, a partir dos quais o impacto da filosofia e do conhecimento germânicos em nossos pensadores se configurava de modo muito acentuado.  

Basta dizer que as primeiras incursões teóricas e sistematicamente empíricas sobre folclore derivam da filosofia alemã, numa combinação metodológica que traduz bem apropriadamente as idéias e as teses de Gottfried von Herder sobre povo, língua, pensamento, ecologia e nação. Termo criado em 1846 por um arqueólogo inglês, "folclore" morfologicamente corresponde a "ciência ou sabedoria do povo. Mais precisamente, consistiria no conjunto das tradições, conhecimentos ou crenças populares expressos em forma de provérbios, contos ou canções."  

Nos dias atuais, em vez de "folclore", tem-se preferencialmente adotado conceito de "cultura" como expressão legítima da arte e do pensamento de um determinado povo. Mas, independentemente do rótulo conceitual que se lhe aplique, seja folclore seja cultura, tal conteúdo, resgata a associação quase imanente entre produção simbólica, identidade nacional e geração de poder por parte de um povo. Vamos agora aos argumentos, porque a relação é complexa.  

Em primeiro lugar, se bem aprendemos a lição transmitida por nossos mestres da antropologia sócio-cultural, identidade nacional somente pode ser compreendida como processo, como construção social ininterrupta. Mais do que isso, deve ocupar o imaginário da população, exercendo função de elo comum que nos reúne e nos projeta numa solidariedade infinita. A teoria do contrato social, da qual tanto e pertinentemente Rousseau nos falou, transcende o âmbito do pacto político e vai atravessar um território de aliança, calcado na cultura popular, na sabedoria do povo. Para tanto, o pressuposto do consenso social sobre a classificação das coisas e a constelação dos valores a viger deve ser, incondicionalmente, bem assegurado.  

O quadro acima poderia ser considerado largamente romântico, mas retrata, com fidelidade, o predomínio da confluência da identidade sobre as divergências da alteridade nas relações humanas. Seguindo o raciocínio básico de uma filosofia antropológica, por mais diferentes que sejamos uns dos outros, guardamos, entre nós, uma predisposição inefável ao entendimento, à fratenidade, ao pacto coletivo. Ou seja, o mundo de Rousseau e da antropologia representa, no mínimo, a vocação natural das sociedades para a comunhão, para a coesão universal, a despeito de todos os conflitos que possam eclodir.  

No entanto, há quem argumente que a essencialização da identidade nacional guarda profundas relações com manobras ideológicas de Estado. Isso se explicaria na medida em que a construção dos estados nacionais exigiria a implementação de uma política de unificação de diferentes comunidades culturais, sob uma nova aliança de fronteiras. Naturalmente, a história tem demonstrado que raramente processos de unificação nacional não se reduzem a hediondas guerras de conquista, lideradas pela cultura hegemônica de um determinado território, em detrimento de outras menos resistentes. Nesse contexto, enquanto instrumento de dominação cultural e ideológica, as tradições e os costumes de uma nação teriam pouco a ver com as manifestações espontâneas de literatura e de arte popular.  

Cumpre esclarecer que, não obstante todo suposto caráter totalitarista, a identidade nacional pode ser associada, também, à imagem expressiva de uma sociedade, à qual seus indivíduos devem lançar mão, como recurso de liberdade, de consciência de libertação e, portanto, de garantia de poder. Por isso mesmo, não é de todo descabido levar em consideração as distinções que se traçam entre cultura e folclore, de sorte a quase se estabelecer uma relação antagônica.  

Se, de um lado, o conceito de cultura se aproximaria mais de um ethos oficialmente adotado pelas elites de uma nação, de outro, o conceito de folclore expressaria a etnologia mais autêntica de um povo. Embora tal distinção seja objeto de intensa divergência entre os intelectuais, fica a impressão de que folclore se enquadra melhor como verdadeiro espelho de pensamento, mitos, valores, crenças e costumes de uma determinada comunidade.  

Do ponto de vista da legitimação epistemológica, é sabido que, no Brasil, folclore não se confundia com literatura, tampouco com ciência. Ao contrário do que se processava na Europa, os estudos dos costumes no Brasil sofriam amarga discriminação política e intelectual, se não fossem necessariamente associados a uma crítica violenta ao modo de vida primitivo das camadas populares, bem como uma exaltação exacerbada da mímese cultural da elite brasileira em relação à européia.  

No caso brasileiro, enquanto prática cultural, a existência da literatura e da sabedoria populares, seja na oralidade, seja na escrita, somente assumiu estatuto de valor nacional quando se transformou em objeto de curiosidade exótica por parte da intelectualidade local. Aqui, o estudo do folclore teve, oficialmente, início com Amadeu Amaral, poeta e destacado pesquisador das coisas nacionais, que viveu, no final do século passado, em São Paulo. Mas, na verdade, quando pensamos no folclore brasileiro, não há como nos furtarmos a reconhecer o papel que o brilhante Câmara Cascudo veio a, posteriormente, exercer junto aos estudos minuciosos do tema e à sua historicidade no Brasil.  

Aliás, para lhe render justa deferência, parte de sua genialidade reside, exatamente, no pioneirismo com que caracterizou seu trabalho de coleta etnológica sobre a diversidade cultural, e outra parte na perseverança em recuperar historicamente nossa tradição na investigação do tema. Suas incursões no universo das lendas, contos, fábulas e outros gêneros de nossa expressão artística configuraram marco indelével na construção de um folclore genuinamente brasileiro, mas sem destituí-lo de suas bases regionais. Ao revisitar as narrativas populares de Norte a Sul, se incumbiu de bem registrá-las, para que o Brasil não apagasse de sua memória seus verdadeiros mitos de origem e de existência.  

Do Nordeste, rastreou imenso território imagético escondido no sertão. Aos cantadores e violeiros, analfabetos e geniais, às velhas amas cantadeiras de estórias maravilhosas, Câmara Cascudo dedicou uma de suas obras mais preciosas, Antologia do Folclore Brasileiro , de 1943. Nessa obra, de uma perspectiva histórica, levanta nosso inventário folclórico, desde o século 16 até os meados do século 20. Aqui, também, identifica e documenta os cronistas coloniais, os viajantes estrangeiros e os estudiosos do Brasil.  

Tal qual um riquíssimo dicionário biográfico, a Antologia, de Cascudo, se organiza internamente de sorte a reconhecer a contribuição, por vezes subestimada, de personagens do jaez de Frei Gaspar de Carvajal, Hans Stadens, Frei Jaboatão, André Thevet, Jean de Léry, Fernão Cardim, Nina Rodrigues, Mário de Andrade e do até desconhecido Antonil, nascido na Itália em 1650, a quem se atribui, curiosamente, a seguinte pérola: "No Brasil costumam dizer, que para o escravo são necessários três P. P. P. a saber, pão, pau e pano".  

Do século 19, realça o trabalho de Couto de Magalhães, que já sugere o aspecto educacional no uso das lendas, modinhas, parábolas e fábulas pelas sociedades primitivas, como mecanismo de afinação da inteligência e do pensamento.  

No mesmo diapasão, como não poderia deixar de ser, Câmara Cascudo presta homenagem a Sílvio Romero, reconhecendo sua função de precursor dos estudos sistêmicos sobre o folclore brasileiro. Recorrendo a uma vista sintética sobre nosso folclore, Sílvio Romero privilegiou a tradição flutuante e indecisa de nossas origens, e seu posterior desenvolvimento. Concentrou-se na busca e na identificação de nossos primeiros cantos indígenas e africanos assimilados por nossas populações mestiças.  

Na mestiçagem, explorou a criatividade das crenças populares, dentre as quais gostava de mencionar uma em especial, segundo a qual contava-se que no Ceará se costumava tirar a prova de Santa Luzia para saber se haveria ano chuvoso ou não. Pois bem, a prova consistia em colocar-se um bocado de sal em uma vasilha, na véspera do dia da santa, em lugar enxuto e coberto. Se o sal amanhecesse molhado, choveria; caso contrário, não. Então, certa vez, fizeram tal experiência diante de um naturalista inglês que visitava Fortaleza, mas o sábio, fazendo observações meteorológicas e chegando a um resultado diferente do atestado pela santa, exclamou em seu português atravessado: "Non, non, Luzi mentiu...".  

Com essa mesma graça narrativa, Romero vai colher inúmeros contos populares, dos mais distintos rincões do País: de Sergipe, detectou na serra de Itabaiana a lenda do carneirinho de ouro; da Bahia, coletou adivinhações bem picarescas, como "caixinha de bem querer, todos os carapinas não sabem fazer"; de Parati, no Rio de Janeiro, identificou a instituição popular do Imperador da Festa do Espírito Santo, aquele que faz as despesas da folgança; do Ceará, extraiu a devoção ritualística da "lamentação das almas", que consiste na saída de penitentes, de matracas em punho, a cantar, em tom lúgubre, composições adequadas; de Pernambuco, capturou o auto popular do "Cavalo Marinho", pelo qual pôde observar a fusão já adiantada dos costumes das 3 raças de que é composta nossa população.

 

Sem dúvida, Câmara Cascudo ocupa lugar de extremo destaque no panteão de nossa ciência social, por razões que se estendem desde a metodologia investigativa empregada, até o rigor e a sofisticação dos trabalhos realizados. Embora sua formação acadêmica não lhe conferisse, formalmente, a chancela de antropólogo, não se lhe nega, em absoluto, sua excepcional lucidez e erudição para o exercício da ciência etnográfica e etnológica.  

Por isso, não nos espanta a pertinência com que define folclore em um de seus prefácios: "Não consiste o Folclore na obediência ao pinturesco, ao sertanejismo anedótico, ao amadorismo do caricatural e do cômico, num caçada monótona ao pseudo-típico, industrializando o popular. É uma ciência da psicologia coletiva, com seus processos de pesquisa, seus métodos de classificação, sua finalidade em psiquiatria, educação, história, sociologia, antropologia, administração, política e religião."  

Concluindo, reitero a idéia de que, não importando o nome a que delegue a função intelectual de estudar as manifestações autênticas de um povo, o dia do folclore deve ser duplamente saudado e festejado no Brasil. Deve ser saudado como uma data que rememora a legitimidade de todas as manifestações culturais locais de que se compõe o grande mosaico da identidade nacional. Mas, igualmente, deve ser festejado como uma data que rende homenagem a todos aqueles intelectuais e acadêmicos que fizeram, e ainda fazem, do folclore e da cultura objeto de viva paixão pelas coisas brasileiras.  

Era o que tinha a dizer. Muito obrigado.  

 

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Este texto não substitui o publicado no DSF de 26/08/1999 - Página 22163