Discurso no Senado Federal

RESPONSABILIDADE DO GOVERNO FEDERAL NO COMBATE A POBREZA E DESIGUALDADES SOCIAIS.

Autor
Marina Silva (PT - Partido dos Trabalhadores/AC)
Nome completo: Maria Osmarina Marina Silva Vaz de Lima
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA SOCIAL.:
  • RESPONSABILIDADE DO GOVERNO FEDERAL NO COMBATE A POBREZA E DESIGUALDADES SOCIAIS.
Aparteantes
Eduardo Suplicy.
Publicação
Publicação no DSF de 01/10/1999 - Página 25926
Assunto
Outros > POLITICA SOCIAL.
Indexação
  • COMENTARIO, CRIAÇÃO, COMISSÃO MISTA, CONGRESSO NACIONAL, OBJETIVO, ERRADICAÇÃO, POBREZA, PRESIDENCIA, MAGUITO VILELA, SENADOR.
  • COMENTARIO, MOBILIZAÇÃO, SOCIEDADE, AUXILIO, POPULAÇÃO CARENTE, INEFICACIA, ATUAÇÃO, INSTITUIÇÃO PUBLICA, GOVERNO FEDERAL, COMBATE, POBREZA.
  • DEFESA, NECESSIDADE, GOVERNO FEDERAL, PRIORIDADE, POLITICA SOCIAL, COMBATE, POBREZA.

A SR.ª MARINA SILVA (Bloco/PT - AC. Como Líder. Sem revisão da oradora.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, estamos vivendo um momento caracterizado por uma situação de emergência, como eu disse num pronunciamento ontem. O Brasil está vivendo um período de emergência no que se refere aos problemas sociais, econômicos e, conseqüentemente, às mazelas advindas de tudo isso. Emergência no sentido de que não é mais possível esperar amanhã ou um dia, quem sabe, para fazermos o que era para ter sido feito ontem. Já que não o fizemos ontem, que o façamos agora. Todos estamos sentindo o quão está difícil viver neste País de riqueza com tanta pobreza. A emergência da situação, pois, exige que o Governo, o Congresso Nacional, a sociedade e a classe empresarial operem como em situação dessa natureza.  

Há também uma outra situação de emergência, que não estamos sendo capazes de perceber e operar, que é a de uma sociedade que, apesar do engessamento da capacidade operativa do seu governante máximo, pode ser criativa, propositiva e operativa, mesmo quando lhe faltam as condições necessárias para tal.  

Para tratar da questão da pobreza social, foi criada a Comissão Mista do Congresso Nacional para Erradicação da Pobreza, presidida pelo Senador Maguito Vilela. Entretanto, percebemos que a sociedade está-se mobilizando. Vemos, por exemplo, que o Raí, jogador de futebol, criou uma instituição para ajudar pessoas carentes; vemos que determinadas pessoas do mundo empresarial se reuniram para ajudar crianças carentes, como é o caso da Abrinq; vemos que os familiares do nosso grande desportista, Ayrton Senna, realizam hoje um grande trabalho com crianças carentes; observamos que pessoas simples, do povo, são capazes de acolher pessoas sofridas das ruas em suas casas, em sinal de solidariedade. Exemplos não nos faltam. Tive a oportunidade de assistir ao programa de Fábio Jr., na TV Record , que mostrou o belíssimo trabalho de uma senhora que conseguiu retirar quase 100 famílias do lixão. Fiquei emocionada com o seu depoimento. Como ela, existem outras tantas, com mais poder e mais condições, e há também mais pessoas simples do povo que trabalham para melhorar a questão social. Quem falta operar com eficiência, competência, capacidade e compromisso político na questão social? São as instituições públicas. O Congresso Nacional, ainda que tardiamente, está tentando operar. Estamos fazendo o nosso mea-culpa. O Governo Federal, com suas políticas pulverizadas e pontuais, sem ter uma política para a área social, pode continuar se enganando se quiser, dizendo que tem uma política social.  

Com todo o respeito que tenho - e carinho, até - pela Drª Ruth Cardoso, conheço seu compromisso pessoal com essas causas. Mas, infelizmente, o programa concebido para que ela dirigisse e que, no início, contou com a participação de pessoas sérias, também comprometidas com a causa, como é o caso da minha querida amiga Ana Maria Peliano, não teve o sucesso necessário, porque não era prioridade no Governo. E esse é um desafio não apenas dos indivíduos, por mais boa vontade que tenham; não apenas de meia dúzia de cidadãos, por mais empenho que tenham, mas uma prioridade do País. Tem que ser prioridade de governo. E, por não ser uma prioridade de governo, não se constitui em uma política social.  

Agora estamos observando um fenômeno interessante, que talvez esteja ocorrendo em função da passagem do milênio. Estamos sepultando este milênio para nascer em outro que, espero, seja bem melhor do que este que se encerra. E talvez por ser a passagem do milênio, estamos vivendo um fenômeno denominado "síndrome do jubileu". O que é a síndrome do jubileu, Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores? O povo hebreu tinha uma lei que determinava, a cada 50 anos, o perdão de todas as dívidas; os escravos eram alforreados; quem havia perdido uma propriedade para pagamento de dívida, recebia a propriedade de volta; quem tinha sido separado da família, era retornado ao seio da mesma.  

Estamos vivendo o Ano do Jubileu. O Papa, juntamente com a CNBB, está propondo que os países ricos perdoem as dívidas dos países pobres. Mas eu não sabia que a síndrome do jubileu atingiria também as agências multilaterais e o FMI, que acabam de fazer uma severa autocrítica. Argumentam que os países que implementaram suas políticas econômicas, que compraram seus pacotes para sair da crise, adentraram na mesma e tiveram seus problemas sociais agravados. E hoje é fundamental que se pense em investimento social para os programas econômicos.  

Mas, quem não entrou ainda na síndrome do jubileu? Foram exatamente o Ministro Pedro Malan e o Governo brasileiro. Como pode alguém fazer questão de ser tão mais real do que o rei, como é o caso do nosso Ministro? É claro que já houve um pequeno aceno para a possibilidade de se dar prioridade à questão social. Eu não diria apenas prioridade social de palavras; precisamos ter uma prioridade social de fato, Sr. Ministro, porque estamos vivendo uma situação de emergência. E a prioridade social de fato, para mim, só pode ser traduzida em uma coisa: que o Congresso Nacional, a Presidência da República, todos nós, que estamos comprometidos em dar uma resposta ao problema social, e até mesmo o Banco Mundial e o FMI, possamos ser um exemplo, um exemplo duplo, no qual, em primeiro lugar, o Brasil tenha coragem de carimbar um orçamento social.  

O ex-Governador Cristovam Buarque apresentou uma proposta para discussão. A Comissão, por meio do Relator, está aproveitando as sugestões recebidas da sociedade, por intermédio da comunidade científica, dos institutos de pesquisa e de personalidades. Agora estamos entrando em uma fase muito rica, que é a de ouvirmos os representantes da sociedade que lidaram com a pobreza, como é o caso de Dom Mauro Morelli, que estará, daqui a pouco, na reunião da Comissão Mista do Congresso Nacional para Erradicação da Pobreza, para a qual convido todos os Srs. Senadores, independentemente de fazerem parte dela.  

Acredito que estamos vivendo um novo momento. É o momento de fazermos com que essa nossa unanimidade de vontades de resolver o problema da pobreza possa se traduzir em ações concretas, como a sociedade já está fazendo, cada um à sua maneira, cada um buscando ser parceiro de alguém. A sociedade só não está conseguindo ser parceira do Governo, porque o Governo não pode buscar parceria se não sabe para onde vai com sua política social, se não conhece o terreno. Se não tem o mapa para se guiar, fica muito difícil, porque vamos ficar dando tiros no escuro.  

Fico muito feliz por estar vivendo este momento, Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores. E tenho certeza de que, se o Congresso Nacional tiver consciência da dimensão da oportunidade que está tendo para registrar, na história deste País, a erradicação da pobreza, acabando com a chaga de sermos um dos países mais desiguais do mundo, poderemos oferecer um grande resultado a partir dessa sugestão de discussão. Não é nem o produto que será gerado pelos Srs. Senadores e os Srs. Deputados, não é isso. É o conteúdo político, a substância da vontade que será gerada com os mais diferentes atores: Governo, sociedade, Congresso Nacional. Como muito bem falou o Governador Cristovam Buarque, há séculos, parecia impossível acabar com o regime escravocrata. Era impossível! As forças conservadoras não queriam nem pensar, mas, mesmo sem a unanimidade, este País foi capaz de acabar com a escravidão. Agora, em um tema a que todos somos favoráveis — o Congresso, o Governo, a sociedade —, por que não conseguimos acabar com a miséria? O que nos impede de acabar com a miséria se todos temos o desejo? As pessoas poderão alegar falta de recursos. No entanto, se viabilizarmos os recursos e não soubermos como aplicá-los; se os viabilizarmos e até soubermos como aplicá-los, mas não operarmos democraticamente, junto com os mais diversos segmentos da sociedade, também não haverá resultado, porque essa obra não pode ser de um, também não pode ser de poucos nem de milhares; ela tem que ser dos milhões de brasileiros que hoje pedem à minoria dirigente, que se diz elite, que faça a sua parte.  

Quero fazer um pequeno parêntese, Sr. Presidente. Repito isso, e, às vezes, alguns colegas não entendem bem. Costumamos dizer que o problema da desgraça do País é a nossa elite. Concordo em parte, porque coloco a palavra elite entre aspas. O problema do Brasil é o de que aqui não existe elite. O que há é uma oligarquia tacanha, que não pensa estrategicamente, nem é capaz de conceder um milímetro sequer pelo benefício do País.  

No meu conceito, a elite pensa estrategicamente, concede, domina o conhecimento, tem cultura e generosidade. Para ser elite, é preciso ter ética — afinal de contas, seria o refinamento da sociedade. Para ser elite, não necessariamente se deveria ser rico em dinheiro. Há que ser rico em idéias, em ética, em moral e até mesmo em dinheiro, pois muita gente o tem, juntamente com todas essas qualidades — mas, infelizmente, sob a égide da oligarquia brasileira, que vive com os pés na senzala, usufruindo, na casa grande, o sangue, o suor e a lágrima desse povo sofrido, não é capaz de pensar estrategicamente.  

Chegou a hora de começarmos a construir uma nova forma de lidar com os problemas do nosso País. Quem pode dar a sua contribuição e de que modo cada um o fará? O Congresso, o Governo e a sociedade, à sua maneira. No entanto, vamos decidir que maneira é essa. Isso só é possível em um amplo processo de discussão, que não pode ocorrer indefinidamente, Sr. Presidente, porque as pessoas estão passando fome, não têm terra, nem casa nem trabalho. Precisamos fazer as duas coisas concomitantemente.  

Acredito que, agora, todos estão com muita boa vontade de ajudar os pobres — até o FMI. O Presidente Bill Clinton acabou de dizer, pelo que vi na imprensa, que se sente um enviado de Deus e até está dispondo-se a perdoar a dívida de alguns países pobres. Poderia ser feita uma pequena emenda, estabelecendo-se que seria também perdoada parte da dívida dos países de pobres. O Brasil não é um país pobre, é rico. Porém, mesmo assim, é um país de pobres. Queremos que sejam também perdoados aqueles que têm pobres em condições exageradas, como é o caso do Brasil.

 

Minha sugestão é a que já explicitei anteriormente. Se o nosso orçamento social, para acabar com a miséria e a pobreza, for em torno de R$36 bilhões, nas condições que o Brasil tem, por que não recebemos o equivalente da nossa dívida externa para esse investimento social? Por que os países ricos não nos perdoam, para que esse montante se destine ao nosso orçamento social? Nesse caso, o Brasil estaria realmente mudando a sua condição de um país rico de pobres para tornar-se um país rico também em dignidade no que tange às pessoas que nele vivem.  

O Sr. Eduardo Suplicy (Bloco/PT - SP) - Permite-me V. Exª um aparte?  

A SRª MARINA SILVA (Bloco/PT - AC) - Ouço V. Exª, com prazer.  

O Sr. Eduardo Suplicy (Bloco/PT - SP) - Senadora Marina Silva, é muito importante a ênfase de V. Exª à necessidade de combatermos, com muito maior energia, vigor e criatividade, a pobreza. O Presidente Bill Clinton resolveu atender aos apelos de João Paulo II, que há alguns anos vem proclamando que, no ano do jubileu — no ano 2000 —, haja o perdão da dívida dos países pobres por parte dos ricos: anunciou ontem que perdoará a dívida dos 34 países mais pobres do mundo — na América Latina serão apenas três países. Trata-se de um passo importante que corresponderá, segundo as estimativas, ao perdão de aproximadamente meio bilhão de dólares. Como os títulos desses países estão sofrendo um deságio muito grande e valem algo em torno de US$127 milhões, esse será o valor efetivo do perdão. No entanto, é preciso considerar que, se, em cada país, o que for feito do perdão for a destinação de recursos para as mãos daqueles que detêm mais — sobretudo porque nesses países a desigualdade é uma característica, como acontece no Brasil —, é muito provável que não se consiga atingir a meta de erradicação da pobreza. Da mesma maneira, se nós, no Brasil, ao utilizarmos os recursos arrecadados de toda a população, encaminharmos às mãos daqueles que detêm mais, não conseguiremos atingir o objetivo da erradicação da pobreza. Economistas do IPEA, como Rodolfo Hoffmann, apresentaram-nos informações segundo as quais 29% da população brasileira, aproximadamente, recebem um rendimento menor que meio salário mínimo per capita . Segundo os cálculos que elaboraram, para cobrir o hiato, seria necessário o equivalente a 3,2% do valor do nosso PIB — que, no ano 2000, estará próximo de R$1,078 trilhão —, algo como R$34 bilhões. Isso está ao nosso alcance. Precisaríamos, então, desenhar a melhor maneira de cobrir esse hiato. Se for vontade do Congresso Nacional, se houver a determinação, teremos que cobri-lo. Gostaria de salientar que, até agora, em que pese ao porta-voz do Presidente Fernando Henrique Cardoso ter declarado, ontem, simpatia pelas recomendações do FMI e do Banco Mundial, como as políticas adotadas pelos países seguidores da receita do FMI muitas vezes têm sido desastrosas, também a atual política do Governo tem estado muito distante do objetivo de rapidamente erradicar a pobreza no Brasil.  

A SRª MARINA SILVA (Bloco/PT - AC) - Senador Eduardo Suplicy, incorporo o aparte de V. Exª ao meu discurso.  

Sr. Presidente, gostaria de citar alguns trechos da nota do Presidente Fernando Henrique Cardoso referente à posição do FMI. O Governo diz que não tem a pretensão de aumentar os investimentos sociais, os gastos com o social. Afirma também que seu objetivo é dar uma melhor qualidade a esses investimentos sociais, que o Brasil tem metas próprias referentes à questão social e que, até esteja indo mais além das metas, em 15 anos, do FMI.  

Se pensarmos em um orçamento social para o nosso País, estaremos, inclusive, sendo coerentes com o que o Governo declarou durante sua campanha. Durante a campanha, o Governo disse que, em seus primeiros quatro anos, faria com que o País obtivesse estabilidade econômica. Nos quatro anos seguintes, em seu segundo mandato, realizaria os investimentos não realizados no primeiro período, quando foi necessário obter a estabilidade econômica.  

Não preciso repetir a história. Praticamente um mês após a eleição do Presidente, todo o discurso já havia mudado. Não porque resolveram, mas porque assim a realidade impôs, mostrando o que de fato estava ocorrendo não apenas na área social mas na política econômica, que a Oposição já criticava ao dizer que aquele caminho não era adequado.  

Lembro-me, Sr. Presidente, que há bem pouco tempo, quando falávamos sobre a questão social desta tribuna, quando falávamos de que mudanças deveriam ocorrer na política econômica do Governo, ouvíamos, em resposta, que se tratava de um discurso atrasado, que moderno era privatizar tudo, que moderno era abrir a nossa economia, mesmo sem condições de competitividade.  

O jornal Folha de S.Paulo de hoje traz um artigo belíssimo: os que eram ricos continuam mais ricos, os que tinham competitividade, continuam com mais condições de competitividade no processo de globalização subordinada a que o País se submeteu através dessa política perversa.  

Durante todo esse tempo fomos considerados atrasados. Ainda bem que estávamos apenas antecipando aquilo que, depois, seria um consenso até mesmo por parte daqueles que deram a cartilha para que o Governo a repetisse, como se fosse o que de mais moderno existia no planeta.  

Foi tão decepcionante ouvir dos mentores que tudo estava errado, que alguns até continuaram insistindo na tecla: "Não tem condição, mestre! Está certo, o caminho é este, deve continuar sendo este". Mas, ainda bem que apenas antecipamos. Não ainda bem pelo mal que tem causado ao nosso País, mas pelo fato de a advertência ter sido feita e, de forma desrespeitosa, diria até desleal, foi desqualificada pelos nossos adversários como neo-bobos, cassandras, retrógrados, como prontossauros, os que são mais aquinhoados - como é o caso do Senador Eduardo Suplicy -, e aqueles mais fraquinhos, no mínimo, um calangossauro. Era assim que éramos tachados.  

Que a autocrítica seja feita também por aqueles que aplicaram a receita, que sejam coerentes com o que pregaram para o segundo mandato, o mandato da prioridade social. Então, que seja estabelecida a prioridade da criação de um orçamento social dentro do Orçamento da União. Para tanto, o Congresso está se aplicando, há vontade política de todos os segmentos.  

Mas nessa discussão, não deve haver paternidade. Ela é uma discussão do Brasil, de todos aqueles que querem diminuir o sofrimento de 78 milhões de brasileiros. Esses brasileiros estão numa situação de extrema pobreza, e é para eles que vale a pena estarmos juntos, todos, os que estiveram sempre, os que chegaram depois e os que ainda terão oportunidade de vir.  

O convite está feito ao Governo brasileiro.  

 

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Este texto não substitui o publicado no DSF de 01/10/1999 - Página 25926