Discurso durante a 12ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

REFLEXÕES SOBRE A PARTICIPAÇÃO DA MULHER NO MUNDO DO TRABALHO E NA VIDA PUBLICA E CULTURAL DO PAIS, NO BOJO DA COMEMORAÇÃO DO DIA INTERNACIONAL DA MULHER.

Autor
Lúcio Alcântara (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/CE)
Nome completo: Lúcio Gonçalo de Alcântara
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • REFLEXÕES SOBRE A PARTICIPAÇÃO DA MULHER NO MUNDO DO TRABALHO E NA VIDA PUBLICA E CULTURAL DO PAIS, NO BOJO DA COMEMORAÇÃO DO DIA INTERNACIONAL DA MULHER.
Publicação
Republicação no DSF de 20/04/2000 - Página 7804
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • ANALISE, EVOLUÇÃO, PARTICIPAÇÃO, MULHER, TRABALHO, VIDA PUBLICA, ATIVIDADE CULTURAL, OPORTUNIDADE, COMEMORAÇÃO, DIA INTERNACIONAL.

O SR. LÚCIO ALCÂNTARA (PSDB - CE) – Sr. Presidente, Srªs. e Srs. Senadores, nem mesmo o 8 de março, Dia Internacional da Mulher, escapou ao furor revisionista de nossos tempos. Segundo a professora Naumi A. de Vasconcelos, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, a história, segundo a qual, em um remoto e frio 8 de março de 1908, várias operárias da indústria têxtil de Nova Iorque morreram queimadas, em incêndio provocado na fábrica onde se reuniam em greve contra as más condições de trabalho, não passaria de lenda sem qualquer comprovação.  

De qualquer forma, essa "fogueira de bruxas" do início do século guarda um forte simbolismo em relação à condição feminina, apesar de não assinalar, propriamente, o início da luta da mulher, a qual tem suas origens em tempos mais remotos.  

Nas culturas mais primitivas, chamadas "de coleta", as condições ambientais eram tão favoráveis que as populações podiam viver daquilo que a natureza oferecia. Os fenômenos da guerra e da caça eram muito raros ou até inexistentes. Homens e mulheres viviam em sociedades não competitivas, embora houvesse divisão sexual de trabalho. Havia uma espécie de igualdade entre mulher e homem. As mulheres eram consideradas como seres mais próximos do sagrado por gerarem e manterem a vida biológica e, portanto, possuíam alguns privilégios.  

Mais tarde – por volta de 10.000 a 8.000 a.C. – quando se descobriram as técnicas de arar a terra, instalaram-se as sociedades agrárias – e com elas a história como a conhecemos – e a situação da mulher passa por uma transformação radical. Até a instalação dessas sociedades, o princípio masculino e feminino, juntos, governavam o mundo.  

Agora, já não é mais assim. Devido à necessidade de fixar-se à terra e dividi-la entre os clãs para cultivá-la, a mulher passa a atuar apenas na esfera do privado. A ela passam a competir a geração e a criação dos filhos, enquanto ao homem competem o trabalho de arar a terra e de defendê-la contra os possíveis competidores. Já não é mais o princípio feminino junto com o masculino que dominam o mundo e, sim, a lei do mais forte.  

Assim, sustentados em razões econômicas e ideológicas, os homens impõem a lei à mulher. Ela passa a sair das mãos do pai para as do marido. O adultério feminino é punido com a morte, ao passo que os homens, senhores do desejo, criam um mundo para si, em que a figura da mulher é irremediavelmente dividida: de um lado, a mãe, pura, intocável e privada, e do outro, a prostituta, mulher pública e usada por todos.  

Enquanto as condições tecnológicas o permitem, essa situação permanece inalterada. Mas, no século XVIII, com a invenção do tear mecânico e todas as tecnologias correlatas, instaura-se o modo de produção capitalista, com a conseqüente industrialização.  

A situação da mulher sofre nova transformação. Em termos muito gerais, com a concentração urbana, não é mais preciso produzir mão-de-obra barata para arar a terra. Ao contrário, são grandes os excedentes da força de trabalho. A mulher começa, pois, a limitar a natalidade. Entra, também, para o mundo do trabalho, sempre com salários inferiores aos do homem, devido à carga de estereótipos e preconceitos sobre sua condição, causados por milênios de opressão sexual e exploração econômica.  

A mulher começa a lutar por melhor educação, melhores condições de higiene, direito à cidadania política, ao voto, etc. É nesse contexto que surgem os primeiros movimentos feministas nos países europeus e nos EUA, reclamando o direito à educação e ao voto.  

O primeiro a ser conquistado foi o direito à instrução. O ensino secundário e superior, antes exclusivamente destinado aos homens, foi finalmente aberto às mulheres, que assim tiveram oportunidade de partilhar os benefícios da instrução com os homens, e preparar-se para exercer funções que até então lhes estavam vedadas. O mito da inferioridade feminina começa a cair por terra. Em 1920, 52 mulheres doutoraram-se pela Universidade de Oxford, um dos mais difíceis baluartes a serem vencidos.  

A luta pela conquista dos direitos da mulher não foi, no entanto, uma luta pacífica. A campanha agitou em muitos países, com os argumentos os mais vigorosos "pró" e "contra". A participação das mulheres na vida política não se desenrola num domínio neutro, objetivo; ao contrário, põe em jogo crença sociais profundas, muitas vezes inconscientes, muitas vezes repelidas, mas sempre presentes, que lhe dá uma coloração passional mais ou menos acentuada.  

Essa participação choca-se visivelmente com uma tradição anti-feminista que, embora se enfraqueça desde o princípio do século, permanece, entretanto, assaz forte até os nossos dias. Trata-se de substituir um sistema social que considera a atividade feminina como essencialmente familiar e privada, por um sistema novo, admitindo a plena igualdade dos sexos em todos domínios.  

No Brasil, Senhoras e Senhores Senadores, embora a luta seja mais tardia, a trajetória das mulheres reproduz, em grande medida, os movimentos internacionais. Assim como em outras nações, podemos falar, também, de dois movimentos distintos. Um deles é o projeto organizado de participação feminina na vida pública e outro é a evolução que se processa por meio da contribuição revolucionária e pioneira de algumas mulheres.  

Podemos situar, com bastante recuo no tempo, a longa jornada da mulher brasileira por conquistas de direitos. Já em 1534, temos a atuação quase desconhecida de Anna Pimentel, esposa de Martin Afonso de Souza, frente à Capitania de São Vicente, que iniciou o cultivo da laranja, do arroz, do trigo e a criação de gado na região. Ana Pimentel não foi a única. Duas outras esposas de donatários estiveram à frente dos territórios concedidos a seus esposos: Brites Mendes de Albuquerque, esposa de Duarte Coelho Pereira, em Pernambuco, e Luiza Grimaldi, mulher de Vasco Fernandes Coutinho, no Espírito Santo.  

Em 1752, foi lançado o primeiro livro de mulher no Brasil, escrito em português. Tratava-se das Máximas da Virtude e da Formosura, da brasileira Teresa Margarida da Silva Orta. Quanto a uma publicação essencialmente feminista, em 1852 foi lançado o Jornal das Senhoras , no qual as mulheres exigiam acesso à educação.  

Em 1881, pela primeira vez, as moças conquistaram o direito de entrar nas faculdades de Medicina. Em 1910, sob o comando da professora Deolinda de Figueiredo Daltro, foi organizado o Partido Republicano Feminino. Sob a batuta de Bertha Lutz, realizou-se, em 1922, no Rio de Janeiro, o primeiro Congresso Feminino Brasileiro. Em 1929, a capixaba Emiliana Viana Emery conquista, na Justiça, o registro eleitoral e o direito ao voto. Como a Constituição de 1891 era omissa, algumas mulheres recorreram ao Judiciário.  

Finalmente, em 1932, lei do Presidente Getúlio Vargas concede às mulheres alfabetizadas o direito de voto. Depois do Equador, o Brasil foi segundo País da América Latina a outorgar-lhes esse direito. Em 1934, a Constituição Federal inaugura uma nova era ao assegurar a igualdade sem distinção de sexo, conquista excluída da Carta de 1937. Em 1962, com a mudança no Estatuto da Mulher Casada, a esposa deixa de ser tutelada pelo marido e pode decidir sobre a própria vida.  

Finalmente, em 1988, a enérgica atuação da bancada feminina garantiu uma Carta que assegura igualdade para homens e mulheres na chefia das famílias. Os principais direitos passam a integrar a letra da lei.  

Dito assim, sumariamente, pode parecer que essa evolução foi serena e indolor, o que não é verdade. Nenhuma transformação social foi tão intensa e sem retorno como chamada "revolução feminina". Prisioneiras do espartilho em 1900, sem direito a voto e dependentes do "senhor meu marido", as mulheres viam suas vidas serem comandadas e seus anseios reprimidos. Mas nem todas aceitaram. Corajosas pioneiras, celebridades ou mulheres anônimas, seja nas grandes causas ou em pequenos detalhes cotidianos, rebelaram-se e decidiram mudar a própria história.  

Desse universo fazem parte guerreiras como Inês de Souza, mulher do Governador Salvador Correia de Sá, que impediu uma invasão de franceses no Rio de Janeiro; Chica Homem e Quitéria Lopes Moreira, que lutaram na Guerra do Paraguai; a charuteira Adelina, informante dos abolicionistas em São Luís do Maranhão e Maria Quitéria de Jesus, hoje reconhecida como patrona do quadro complementar do exército.  

Contribuíram, também, esportistas e artistas como Anésia Pinheiro, heroína da aviação brasileira; Maria Lenk, primeira mulher a representar nosso País em uma Olimpíada; Carmen Santos, primeira cineasta brasileira; Chiquinha Gonzaga, compositora e maestrina; Nair de Teffé, primeira-dama e caricaturista e Eugênia Moreira, primeira repórter do Brasil.  

Em quase todos os campos da atividade humana e da história brasileira, tivemos a participação de mulheres notáveis. Desde Nísia Floresta, a feminista que se tornou um marco na luta pelos direitos da mulher e que foi uma das intelectuais brasileiras que mais se destacaram, na época, defendendo as causas da Abolição e da República, até artistas como Tarsila do Amaral, Anita Maffalti e Patricia Galvão – a Pagu –, cuja contribuição foi definitiva para o Movimento Modernista de 1922. Desde Nise da Silveira, a psiquiatra revolucionária, responsável pela criação do Museu do Inconsciente e pela revelação de artistas como Arthur Bispo do Rosário, até Clarice Lispector, que inaugurou um discurso feminino em nossas letras. E mais uma multidão de mulheres, que, se não deixaram uma obra, contribuíram para a mudança do comportamento. É um universo heterogêneo, no qual se abrigam vedetes e atrizes como "Luz del Fuego" e Leila Diniz, cronistas como Marina Colasanti e Carmem da Silva, ativistas como Rose Marie Muraro e Heloneida Studart.  

Hoje, como sabemos, Senhoras e Senhores Senadores, a participação da mulher no mundo do trabalho e na vida política e cultural do País já está estabelecida, mesmo que ainda não encontre expressividade numérica à altura. "Elas" já estão em toda parte. No comando de grandes empresas, como Maria Sylvia Bastos Marques, frente à Companhia Siderúrgica Nacional, Marluce Dias, frente a toda poderosa Rede Globo. Nas cadeiras outrora "machistas" da Academia Brasileira de Letras, como Raquel de Queiroz, Nélida Piñon e Lygia Fagundes Telles. Estão galgando os mais altos postos da magistratura e há muito conquistaram os do magistério universitário. Estão na vanguarda de movimentos culturais, na direção de aeronaves e de empilhadeiras. Estão cada vez mais presentes no mundo da ciência, conforme comprova o título de doutora

Honoris Causa da Universidade de Reims Champagne Ardenne – uma das mais importantes da França – concedido à jovem doutora Lúcia Willadino Braga, do Hospital Sarah Kubitschek.  

Eu diria, Senhoras e Senhores Senadores, que, em termos de evolução do feminismo, já superamos a fase "heróica". As mulheres não precisam provar mais nada. Se a sociedade não lhes concedeu uma visibilidade maior, em termos quantitativos, é porque as estruturas sociais se movem lentamente e ainda não absorveram as alterações sofridas. É claro que isso só se faz juntamente com o desenvolvimento global.  

Em alguns países, as mulheres conseguiram uma boa participação no poder político. Na Escandinávia, são cerca de 40% do parlamento; na Finlândia, 38%; nos EUA, cerca de 25%, além de 11 governadoras de Estado, 17 secretárias da Fazenda. Elas são, também, 41% de todos os empresários norte-americanos! No Brasil, entretanto, a bancada feminina no Congresso Nacional conta apenas com 28 Deputadas e 5 Senadoras, no total de 513 parlamentares na Câmara e 81 no Senado Federal, representando somente 5,5% dos mandatos.  

Ainda é pouco, Senhoras e Senhores Senadores. Mas é um número que progredirá à medida que outras questões também progridam na sociedade: a democratização do ensino e da saúde, a melhoria das condições de vida e de trabalho, a melhor distribuição da renda...  

A participação da mulher não é uma questão isolada. É um indicador seguro de transformações em toda a sociedade. Significa que as oportunidades foram igualitariamente distribuídas e que o mérito foi o principal critério de acesso. Na verdade, chegará o tempo em que não haverá mais sentido em se falar na "questão da mulher". Ou na " questão da criança". Ou na "questão do negro". Chegará o tempo em que a única questão será a questão da democracia.  

Poder-se-á, então, esquecer o dia 8 de março, tenha ou não existido.  

Muito obrigado pela atenção.  

 


Este texto não substitui o publicado no DSF de 20/04/2000 - Página 7804