Discurso durante a 23ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

COMEMORAÇÃO DO CENTENARIO DE NASCIMENTO DO SOCIOLOGO GILBERTO FREYRE.

Autor
Lúcio Alcântara (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/CE)
Nome completo: Lúcio Gonçalo de Alcântara
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • COMEMORAÇÃO DO CENTENARIO DE NASCIMENTO DO SOCIOLOGO GILBERTO FREYRE.
Publicação
Publicação no DSF de 29/03/2000 - Página 5437
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM, CENTENARIO, NASCIMENTO, GILBERTO FREYRE, SOCIOLOGO, ESCRITOR, ELOGIO, CONTRIBUIÇÃO, ANALISE, HISTORIA, POLITICA, FORMAÇÃO, SOCIEDADE, BRASIL.

O SR. LÚCIO ALCÂNTARA (PSDB - CE. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) – Sr. Presidente, Senador Geraldo Melo; Sr. Vice-Presidente da República, Dr. Marco Maciel; Dr. Fernando Freyre, que representa a família do homenageado; Senador Nabor Júnior, que integra a Mesa que dirige os trabalhos; Dr. Geraldo Brindeiro, Procurador-Geral da República; demais autoridades aqui presentes, ilustres convidados e familiares de Gilberto Freyre, Sr as Senadoras, Srs. Senadores, honrado, junto minha voz às dos demais colegas para prestar justa homenagem à passagem do centenário de nascimento de um dos mais extraordinários pensadores sociais que o Brasil já teve. Sem sombra de dúvida, Gilberto Freyre fundou uma escola de pensamento excepcional, cujo reconhecimento ultrapassou, de muito, as fronteiras do Brasil. Sua imortalidade se ancora em bases que estão, definitivamente, longe da trivialidade intelectual, do mimetismo teórico e das confrarias acadêmicas.  

Vale recordar que o Senado Federal, há exatos vinte anos, por ocasião do aniversário de 80 anos do pensador pernambucano, ainda em pleno gozo da vida, promovera sessão solene em sua homenagem, numa demonstração do então presidente da Casa, Senador Luiz Viana Filho, de sincera admiração pelo trabalho intelectual e político construído.  

A trajetória de vida de Gilberto Freyre seguiu caminhos indiscutivelmente iluminados, irradiando luz e entendimento sobre a genealogia brasileira, projetando esperança e alento no futuro de um povo mais consciente de sua condição cultural. Desde menino, no Recife, Freyre já manifestava inquietação a respeito de temas cujo mote central girasse em torno de nossas tradições e costumes.  

"Em Busca de um Menino Perdido", esse era o título que Gilberto Freyre pretendia dar a um livro no qual recordaria sua infância no Recife, onde nasceu em 15 de março de 1900 - com incursões em casas-grandes dos engenhos de parentes e amigos, e temporadas de veraneio na praia de Boa Viagem.  

Em 1917, o jovem intelectual pernambucano conclui o curso de Bacharel em Ciências e Letras e é escolhido orador de sua turma. Convida o historiador e diplomata Manuel de Oliveira Lima para paraninfo da solenidade. Logo depois, empreende viagem para os Estados Unidos, em busca de adensar seus conhecimentos na área de estudos antropológicos. Foi, com efeito, o período em que esteve na Baylor University, no Texas, na qual conquistou, em 1920, o grau de Bacharel em Artes, e na Columbia University, em Nova York, onde concluiu o curso de mestrado em Ciências Sociais, em 1922.  

Os artigos que então enviava para o Diário de Pernambuco , a partir de 1918, mostram que o aluno de Baylor e de Columbia já era também um mestre, que via o a merican way of life com olhos críticos e transmitia a seus conterrâneos uma visão realista dos Estados Unidos.  

Durante sua estada na América do Norte, conheceu poetas como Lowell, Yeats, Lindsay e Tagore. Visitou o presidente da República, Calvin Coolidge, na Casa Branca e almoçou com os Rockefeller em seu palacete de Nova York. Participou de noitadas boêmias no Greenwich Village. Conversou com escritores como Mencken e Carl van Doren, antropólogos como Franz Boas, sociólogos como Giddings e economistas como Seligman.  

A influência de Franz Boas sobre o pensamento de Gilberto Freyre se espelha, no extremo, na formulação do conceito de "meta-raça", por meio do qual o pensador pernambucano visava representar o modelo revolucionário de miscigenação adotado pelo Brasil. Desvencilhado do parâmetro hegemônico da raça como fator explicativo, conforme os ensinamentos de Boas, Freyre pôde refletir sobre a genealogia e a anatomia da sociedade brasileira a partir de seu aspecto eminentemente cultural.  

Ainda em 1922, Gilberto Freyre vai Nova York para a Europa. Passa por Paris, Berlim, Munique, Nuremberg, Londres e Oxford. Em Paris, interessa-se pelos contatos com grupos de vanguarda literária e artística. Em Oxford, envolve-se no ambiente de estudo, desinteressado em diplomas, e na tradição hispânica de Luis Vives, atualizada no Oxford Spanish Club. Ali, Gilberto Freyre foi convidado a discursar, entre goles de vinho-do-porto, sobre o "donjuanismo". E ensaiou, numa de suas exposições, a audaciosa tese de que o intercurso sexual do colonizador português com mulheres nativas era exercido com o objetivo de conquistar novos fiéis.  

Antes de regressar ao Brasil, Gilberto Freyre conhece, por fim, Portugal. Faz, em Lisboa e Coimbra, contatos com João Lúcio de Azevedo, o Conde de Sabugosa, Fidelino de Figueiredo e Antonio Sardinha. Em seu diário, anotou, com orgulho, que conviveu tanto com gente da revista Seara Nova quanto com os monarquistas do Correio da Manhã , jornal do qual se tornou colaborador. Com estes dias em Portugal, encerrou-se o périplo de Gilberto Freyre pelos Estados Unidos e pela Europa. Após cinco anos de ausência, retorna à terra natal, em fins de 1923.  

Em 1924, Gilberto Freyre organiza o Centro Regionalista do Nordeste, reunindo na casa do amigo Odilon Nestor uma equipe pluridisciplinar de advogados, médicos, engenheiros e jornalistas interessados na defesa dos valores regionais ameaçados pelo furor "modernista". Cabe esclarecer que, à intelectualidade nordestina da época, o movimento paulistano da Semana de 22 ainda soava como uma ameaça imperialista aos cânones estéticos e morais em vigor no País. Somente mais tarde, quando Mário Andrade e alguns outros imprimem um tom mais culturalista e brasilianista ao movimento, a resistência e a crítica dos pernambucanos vai fazer pleno sentido.  

Ainda no ano de 24, comemorou-se o centenário do nascimento do Imperador D. Pedro II, sendo Gilberto Freyre o orador oficial. Sua conferência, publicada pela Revista do Norte e posteriormente incluída na obra Perfil de Euclides da Cunha e outros perfis , mostra uma acentuada vocação para a biografia psicológica, continuada nos perfis de Euclides da Cunha, Graça Aranha, Manuel Bandeira e de outros escritores e homens públicos brasileiros.  

Outro grande centenário é em 1925: o do Diário de Pernambuco , o mais antigo jornal em circulação na América Latina. A direção do jornal convida Gilberto Freyre para organizar as comemorações, que alcançam o seu ponto alto na publicação do Livro do Nordeste , primeira obra brasileira de natureza pluridisciplinar e transregional.  

Em seus artigos dessa época de regresso à província, ele exerceu uma atividade de conscientização, procurando "ensinar os brasileiros a vestir, a comer, a ler, a construir as suas casas e os seus jardins, a viver, afinal, dentro das condições de seu clima e das suas cidades", como observou o crítico Álvaro Lins, comparando esses artigos aos de Ramalho Ortigão na campanha lisboeta intitulada As Farpas . 

Era natural – como escreveu ainda Álvaro Lins – que nos anos 20 a figura Gilberto Freyre "se tornasse inaceitável para os conservadores e burgueses, para os literatos acadêmicos, para os políticos verbosos e vazios. Não eram só as suas roupas americanas, o seu chapéu-coco, os seus hábitos anticonvencionais de vida que escandalizavam os homens pacatos e estabilizados. Eram também as suas idéias, o seu estilo, a sua linguagem. Os acadêmicos e os intelectuais da velha guarda pressentiam que através daquele jovem de vinte e poucos anos vinha qualquer coisa de original e de revolucionário que os ultrapassaria para sempre".  

Mas a verdadeira "inteligentzia" brasileira e sobretudo a pernambucana soube compreender o jovem Gilberto Freyre e o acolheu com entusiasmo. Sua influência foi enorme tanto nos intelectuais de sua geração – como José Lins do Rêgo, Olívio Montenegro, Sylvio Rabello, Anibal Fernandes e Luís Jardim, como entre os membros mais ilustres da elite brasileira, tais como o então Vice-Presidente da República e depois Governador de Pernambuco, Estácio de Albuquerque Coimbra, o também senhor de engenho Pedro Luís Paranhos Ferreira, sobrinho do Barão do Rio Branco.  

A redação de Casa Grande & Senzala – primeiro tomo da História da Sociedade Patriarcal no Brasil – foi iniciada em Lisboa, em 1931, e concluída em Recife, em 1933. Durante a redação da obra, houve outra oportuna viagem: a que o autor realizou de Lisboa à Califórnia, demorando-se na Stanford University, onde orientou cursos e seminários sobre a escravidão, regressando pela região sul dos Estados Unidos, área ainda rica em símbolos e signos do regime de monocultura patriarcal e escravocrática.  

Sem qualquer contestação, Casa Grande & Senzala se inscreve dentro do rol das obras primas da sociologia e da antropologia brasileira. Sua tese principal visa resgatar o valor da miscigenação racial como a experiência civilizatória mais essencial para o conhecimento das formas elementares da sociedade brasileira. Considerada revolucionária, reverteu uma concepção bastante hegemônica sobre o Brasil da época, segundo a qual nosso histórico fracasso e o nosso atraso econômico se explicariam, em suma, pela equivocada adoção da reprodução inter-racial entre nossa gente.  

Freyre desmonta, com uma análise fina e muito profunda de nossa gênese cultural, os pilares dos paradigmas que sustentavam a tese da eugenia e da limpeza racial. O patriarcado, a economia açucareira e a miscigenação racial vão compor o forte arcabouço, em cima do qual se erguerá o dinamismo harmônico da cultura brasileira. Legado de uma história cultural igualmente ambivalente, o sistema patriarcal de colonização portuguesa no Brasil se fundou na exploração latifundiária da cana-de-açúcar, configurando forma híbrida e pioneira de domínio lusitano no País. Para que o novo sistema político, econômico e social funcionasse plenamente, a miscigenação que largamente se praticou aqui teve que ser imediatamente acionada com a finalidade de corrigir a distância social, que de outro modo se teria conservado enorme entre a casa grande e a senzala. Por outro lado, não se diga que a sua análise tinha muito de indulgência para com o colonizador, tanto que reproduzo aqui algumas expressões de

Casa Grande & Senzala , que mostram a crueldade da ação do colonizador no Brasil:  

 

"Tendência geral para o sadismo criado no Brasil pela escravidão e pelo abuso do negro". Mulheres "espatifavam a salto de botina dentaduras de escravas; ou mandavam-lhes cortar os peitos, arrancar as unhas, queimar a cara ou as orelhas".  

"As crianças inventavam brincadeiras em que galhos de goiabeira atuavam como chicotes: "Os muleques serviam para tudo: eram bois de carro, eram cavalos de montaria, eram burros de liteiras e de cargas as mais pesadas".  

"Contra os índios, os portugueses também não foram menos cruéis: mandavam "amarrá-los à boca de peças de artilharia que, disparando, ‘semeavam a grande distância os membros dilacerados’ ou infligiam-lhes "suplícios adaptados dos clássicos às condições agrestes da América".  

 

O que ele fez foi uma interpretação das relações que decorreram do processo de colonização no Brasil.  

Para o sociólogo pernambucano, a escassez de mulheres brancas criou zonas de confraternização entre vencedores e vencidos, entre senhores e escravos. Nessa linha, a democratização social e racial do Brasil se deveu pelo papel imprescindível da mulher negra, índia, mulata, cabocla, ocupando posições de concubinas ou mesmo de esposas legítimas dos senhores brancos.  

De acordo com as idéias de Freyre, para além da pressão econômica acentuada pelos teóricos marxistas, forças psicofisiológicas exerceriam papel crucial no processo de desenvolvimento de uma sociedade. Para tanto, lançou mão do método etnográfico da antropologia de Boas, que lhe garantiu uma perspectiva mais intimista dos costumes brasileiros. Sob a inspiração de Proust, para pensar a intimidade doce da casa grande, Gilberto Freyre mergulhou nos relatos mais triviais do cotidiano e nas estórias mais misteriosas de um povo, tentando esboçar a expressão mais autêntica do caráter brasileiro. O desafio em jogo consistia, de fato, na busca do conhecimento da história social do Brasil, seus costumes, sua cozinha, seus hábitos, suas crenças, seus medos, sua arquitetura, seu sexo, seus ideais, sua moral, suas condutas.  

O resultado foi uma explosiva catarse coletiva. Foi a exposição nua e crua da alma brasileira à sua gente e ao mundo. Tal qual uma terapia analítica, Casa Grande & Senzala proporcionou-nos o encontro com nossa mais autêntica identidade, seja pela conscientização de nossas virtudes, seja pela exposição aberta dos nossos vícios. Nunca dantes um pensador brasileiro mergulhara tão fundo em águas tão turvas e turbulentas. Adormecida em sono plácido no inconsciente nacional, a cara do Brasil veio à tona como um choque eletrizante.  

De qualquer forma, muito extensa para caber num só livro, a História da Sociedade Patriarcal no Brasil foi continuada, em 1936, com Sobrados e Mucambos , obra que mostra a decadência do patriarcado rural e o desenvolvimento do urbano. O plano de Gilberto Freyre era mais ambicioso: era preciso mostrar como se fez o Brasil moderno. Para tanto, ele realizou uma pesquisa entre brasileiros que alcançaram o advento da Abolição e da República. E com base na história de vida, pela primeira vez intentada no Brasil escreveu o livro Ordem e Progresso , editado em 1959.  

A fortuna crítica da obra de Gilberto Freyre foi imediata e duradoura. Casa Grande & Senzala foi recebida com entusiasmo tanto por críticos brasileiros mais velhos, como João Ribeiro, Roquete-Pinto, Agripino Grieco, quanto pelos mais novos do calibre de Afonso Arinos de Mello Franco, Pedro Dantas e Manuel Bandeira, que resumiu todo o livro imortalizando-o num antológico poema.  

A crítica estrangeira não foi menos entusiástica quando a obra apareceu em castelhano, inglês, francês, alemão, italiano, polonês e húngaro. Apreciada na revista Le Lettres Nouvelles , a edição francesa de Casa Grande & Senzala , intitulada Maîtres et Esclaves acolheu a resenha do grande renovador da crítica e dos estudos semióticos, Roland Barthes. Segundo suas impressões, "há em Freyre um sentido obsessional da substância, da matéria palpável, do objeto [...] que é, afinal, a qualidade específica de todos os grandes historiadores [...] se pensarmos na espantosa mistificação em que se constitui o conceito de raça, nas mentiras e nos crimes em que esta palavra, cá e lá, ainda não cessou de contestar, reconheceremos que este livro de ciência e de inteligência é também um livro de coragem e de combate. Introduzir a explicação no mito é, para o intelectual, a única maneira eficaz de militar".  

Prefaciando a edição italiana de Casa-Grande & Senzala, intitulada Padroni e Schiavi , o grande historiador Fernand Braudel escreveu: "percorrer os livros de Gilberto Freyre é um prazer concreto, físico, como quem viaja num sonho pelos países tropicais e luxuriosos de Rousseau. Mas é também um prazer intelectual de qualidade excepcionalmente rara [ ... ] mais que uma obra de arte, o livro de Freyre é uma revolução, é uma vitória do amor dos homens aos seus semelhantes".  

Nos anos 40, foram editadas várias obras de sua autoria: Um Engenheiro Francês no Brasil (1940), O Mundo que o Português Criou (1940), Região e Tradição (1941), Ingleses (1942), Problemas Brasileiros de Antropologia (1943), Perfil de Euclydes e Outros Perfis (1944), Brasil, an Interpretation (1945), Sociologia: Introdução ao estudo dos seus princípios (1945) e Ingleses no Brasil (1948). 

Coincidência ou não, foi também na década de 40 que Gilberto Freyre elegeu-se Deputado Federal por Pernambuco, escolhido pelos estudantes pernambucanos para representá-los na Assembléia Constituinte de 1946 e na Câmara Federal.  

Os discursos de Gilberto Freyre na Constituinte de 1946 e na primeira legislatura concluída em 1951, que se encontram reunidos no livro Quase Política , editado em 1950, são de uma preciosidade incontestável. A respeito desses, escreveu o também Deputado Bento Munhoz da Rocha – professor de História da América na Universidade Federal do Paraná e Governador de seu Estado – que eram "discursos escutados em silêncio, com atenção unânime por todo o plenário", acrescentando: "Gilberto na tribuna significa silêncio no plenário, de onde sumia o zunzum das conversas de grupo".  

Em verdade, Gilberto Freyre tinha consciência desse sentido metapolítico da obra que estava escrevendo. Nunca se conformou em ser um intelectual dos chamados "puros", trancado em seu gabinete e olhando a vida com distanciamento pedagógico. Tanto foi assim, que procurou completar sua obra de escritor, antropólogo e historiador social, promovendo atividades que evidenciaram como a Ciência pode servir de base a uma ação política adequada às necessidades regionais.  

Sua primeira iniciativa nesse sentido foi a criação, em 1924, do Centro Regionalista do Nordeste e a realização, em 1926, do Congresso Regionalista. Ainda nos anos 20, sua atuação como diretor do jornal A Província foi a de articular as diferentes Unidades da Federação numa política transregional de cultura.  

No Congresso de Estudos Afro-Brasileiros, que organizou em 1934, o objetivo era o estudo científico das minorias africanas até então consideradas como "caso de polícia". Desse estudo, surgiu a escola de psiquiatria social, orientada por seu primo e amigo Ulysses Pernambucano.  

Pois bem, eleito Deputado Federal por Pernambuco, primeiro na Constituinte de 1946 e, depois, na primeira legislatura concluída em 1951, sua participação torna-se fundamental para o aperfeiçoamento do projeto da Constituição. Por duas vezes, a Organização das Nações Unidas solicitou a Gilberto Freyre pareceres sobre os conflitos raciais na União Sul-Africana: em 1954, quando a Assembléia-Geral discutiu seu relatório "Elimination des conflits; et tensions entre les races" e, em 1966, quando seu trabalho de base "Race mixture and cultural interpenetration" foi discutido no seminário sobre Direitos Humanos e Apartheid, realizado em Brasília de 23 de agosto a 5 de setembro daquele ano.  

Nos conturbados anos 60, embora Freyre não escondesse sua simpatia pelo golpe militar, não transigiu em defender novo processo de redemocratização do País. Suas posições políticas, naquele momento crítico da história brasileira, renderam-lhe inúmeros desafetos no círculo intelectual e adjacências. Mesmo assim, sua reputação acadêmica permaneceu preservada e inabalavelmente respeitada por grandes personalidades nacionais que dele divergiam, tais como Florestan Fernandes e Antônio Cândido.  

Consciente das contradições que abrigava em seu espírito, Freyre assim descreveu sua personalidade: "Se me perguntarem quem sou, direi que não sei classificar-me. Não sei definir-me. Sei que sou um eu muito consciente de si próprio. Mas esse eu não é um só. Esse eu é um conjunto de eus. Uns que se harmonizam, outros que se contradizem. Por exemplo, eu sou, numas coisas, muito conservador e, noutras, muito revolucionário".  

Aos 70 anos, indagado sobre sua fama, às vezes de conservador, outras de vanguardista, ele respondeu: "Ora uma tendência, ora a outra, sobressaindo. A tendência para a renovação ou a inovação, o ânimo experimental, o gosto da aventura e do risco têm sido, em mim - creio eu -, predominantes. Predominantes, mas não exclusivos. Dos seus excessos me tem resguardado o gosto pela tradição, pela continuidade, pela própria rotina. É outra das minhas contradições".  

E noutra ocasião, como em muitas outras, instado a definir-se, ele o fez gilbertianamente: "Eu sou um sensual e sou um místico. Eu sou um indivíduo muito voltado para o passado, muito interessado no presente e muito preocupado com o futuro. Não sei qual dessas preocupações é maior em mim. Mas todas elas como que coexistem e até me levaram a conceber uma idéia de tempo, porventura nova: a do tempo tríbio. A de que o tempo nunca é só passado, nem só presente, nem só futuro, mas os três simultaneamente. Vivo nesses três tempos simultaneamente".  

Sr. Presidente, em 1973, ele publicava um livro com o provocativo nome de Além do Apenas Moderno , com "sugestões em torno de possíveis futuros do homem em geral e do homem brasileiro em particular", como quem antecipava a idéia de pós-modernismo de Lyotard e outros pensadores. Tornava-se, assim, pioneiro nesse conceito de pós-modernidade. Dez anos depois, retomou o assunto com o livro

Insurgências e Ressurgências Atuais, no qual debate "cruzamento de sins e nãos num mundo em transição". Não por acaso, octogenário, Gilberto Freyre continuava a definir-se como um insurgente, paradoxalmente ao lado de um amoroso de "ressurgências", quer nativas, quer não.  

Não plenamente satisfeito com o desenvolvimento de sua vocação científica, estendeu seus potenciais aos domínios do romance, da prosa e da pintura. O grande escritor e político paraibano José Américo de Almeida refere-se à influência de Gilberto Freyre na gênese do romance nordestino, afirmando que ele "possui a vocação de romancista que também será quando quiser". Palavras proféticas. A obra ficcional de Gilberto Freyre abrangeu três contos escritos para uma revista feminina, a novela Dona Sinhá e o Filho Padre e o romance O Outro Amor do Dr. Paulo . 

Em janeiro de 1974, regressando ao Recife depois de longa hospitalização em São Paulo, escreveu uma crônica em que manifestava sua alegria em rever Apipucos, sua residência, com as formas e as cores de suas casas e de seu arvoredo, o canto de seus pássaros, o aroma do sítio ecológico, o ruído pequeno da cadeira de balanço. No entanto, em 18 de julho de 1987, ele voltava à velha e querida casa de Apipucos, sem poder ouvir nem ver nada. Seu coração havia parado às 4 horas da manhã daquele sábado, no Real Hospital Português do Recife, onde fora internado semanas antes.  

Para concluir, há treze anos, portanto, o Brasil e o mundo perdiam a insubstituível companhia de Gilberto Freyre. Disso só temos que lamentar. Mas, por outro lado, o que nos consola é saber que sua obra, suas idéias, seus métodos, seus conceitos, seu espírito epistemologicamente pioneiro se propagam em ondas infindáveis, fundando na alma brasileira a certeza de que nossa cultura, longe de ser o obstáculo de nosso progresso, é a única solução para o alcance de nossa verdadeira independência.  

Muito obrigado.  

(Palmas.) 

 


Este texto não substitui o publicado no DSF de 29/03/2000 - Página 5437