Discurso durante a 19ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

REFLEXÃO SOBRE AS DESIGUALDADES SOCIAIS NO BRASIL.

Autor
Lúcio Alcântara (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/CE)
Nome completo: Lúcio Gonçalo de Alcântara
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA SOCIAL.:
  • REFLEXÃO SOBRE AS DESIGUALDADES SOCIAIS NO BRASIL.
Publicação
Publicação no DSF de 23/03/2001 - Página 3821
Assunto
Outros > POLITICA SOCIAL.
Indexação
  • GRAVIDADE, CONCENTRAÇÃO DE RENDA, BRASIL, COMENTARIO, DADOS, ESTATISTICA, INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATISTICA (IBGE), OCORRENCIA, DISCRIMINAÇÃO SEXUAL, DISCRIMINAÇÃO RACIAL, DESIGUALDADE REGIONAL, ANALISE, EVOLUÇÃO, AMBITO, PLANO, REAL, CONTINUAÇÃO, DESEQUILIBRIO.
  • ANALISE, OCORRENCIA, CONSCIENTIZAÇÃO, SOCIEDADE, NECESSIDADE, UNIÃO, DESENVOLVIMENTO ECONOMICO, DESENVOLVIMENTO SOCIAL.
  • ELOGIO, ATUAÇÃO, GOVERNO FEDERAL, AREA, EDUCAÇÃO.
  • EXPECTATIVA, AMPLIAÇÃO, PROGRAMA, RENDA MINIMA, VINCULAÇÃO, EDUCAÇÃO.
  • ELOGIO, CONGRESSO NACIONAL, APROVAÇÃO, FUNDO ESPECIAL, COMBATE, POBREZA.

O SR. LÚCIO ALCÂNTARA (PSDB - CE) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, há algum tempo, o Presidente Fernando Henrique Cardoso formulou, em uma única frase, uma descrição bastante aguda da situação socioeconômica de nosso País: “o Brasil não é um país pobre, mas um país desigual”.

A desigualdade social manifesta-se, no Brasil, nas mais diversas dimensões. Há, antes de tudo, uma desigualdade básica entre os brasileiros, que deve ser definida como uma desigualdade de renda. A desigualdade entre pobres e ricos no Brasil é imensa, podendo ser expressa pela seguinte simplificação estatística: a parcela de 1% da população de maior renda ganha apenas um pouco menos que os 50% da população de renda mais baixa.

Não bastasse a grande desigualdade de renda da população em geral, que corresponde também a uma desigualdade de saúde, de educação e de oportunidades, temos outras sérias e inaceitáveis assimetrias na sociedade brasileira. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), realizada pelo IBGE e relativa ao ano de 1999, mostrou que o salário médio das mulheres, apesar das melhoras dos últimos anos, ainda corresponde a 60,7% do salário médio dos homens. Se considerarmos, por outro lado, a cor da pele, tal como é utilizada nas pesquisas do IBGE, veremos diferenças gritantes: 12,1% das famílias com chefes “brancos” estão na faixa de menor renda, que recebem até meio salário mínimo per capita; esta proporção sobe para 24,5% nas famílias chefiadas por “pretos” e para 30,4% nas famílias chefiadas por “pardos”.

Tanto o fator gênero como o fator etnia mostram-se, assim, como componentes importantes da desigualdade social brasileira. Outro aspecto fundamental de nossa assimetria refere-se à desigualdade entre as regiões. Mais de um quinto (ou 21,5%) das famílias residentes no Nordeste tem rendimento de até um salário mínimo, proporção muito superior aos 9,2% das famílias do Centro-Oeste ou 6,2% das famílias do Sudeste na mesma faixa de rendimento. Observamos ainda, pelos dados da PNAD relativos a 1999, que o rendimento médio das pessoas ocupadas no Nordeste correspondeu, grosso modo, à metade do rendimento médio obtido no Sudeste.

Para avaliarmos de modo mais completo a situação brasileira, não basta verificarmos os dados do momento atual - é fundamental percebermos a tendência de evolução desses dados, com base nas séries históricas. Constatamos assim que, na maior parte dos indicadores sociais, há uma tendência de melhora - embora, quase sempre, essa tendência não se mostre acentuada o bastante para representar uma perspectiva nítida de superação de nossos graves problemas.

Assim, no que se refere à concentração de renda, medida pelo índice de Gini em uma variação de 0 a 1, o Brasil apresentou alguma melhora nos últimos 10 anos avaliados, passando de 0,630 em 1989 para 0,567 em 1999. Convenhamos, entretanto, que essa diminuição de 6 centésimos em uma década é muito pequena para um País que apresenta uma das maiores concentrações de renda do mundo. Além do mais, tal melhora reflete também uma diminuição dos rendimentos do trabalhador desde 1996, que teve como uma de suas causas principais as crises internacionais que afetaram o nosso País - e que foi mais acentuada para as parcelas mais bem remuneradas.

Podemos dizer que se tem mantido, desde a implantação do Plano Real, uma tendência a que a renda dos mais ricos caia proporcionalmente mais ou suba proporcionalmente menos do que a dos mais pobres, conforme a flutuação geral da renda para baixo ou para cima. Tal tendência, entretanto, mostra-se muito tênue e fica muito aquém do necessário para que o País altere, de modo consistente, sua acentuada desigualdade.

Quanto às disparidades regionais, constatamos que, nas últimas décadas, diversos Estados situados fora das regiões mais desenvolvidas apresentaram um crescimento econômico superior ao índice nacional. Em julho de 1999, no entanto, editorial da própria Folha de S. Paulo assinalava que “parece agora retroceder a tendência de alta relativa do PIB per capita das regiões mais pobres”. As razões que motivaram o retrocesso da tendência de desconcentração, segundo o editorialista, relacionam-se “ao aumento da importância econômica de setores como o de serviços e à produção de bens de alta tecnologia, concentrados em Estados como São Paulo, e também ao esgotamento da capacidade de investimento público, que privilegiara regiões mais atrasadas”.

A pesquisa Contas Regionais, realizada pelo IBGE, mostrou que, em 1998, os Estados do Nordeste apresentaram os piores resultados no que se refere ao crescimento do Produto Interno Bruto (PIB). A causa mais ostensiva da redução de crescimento, ou mesmo de queda na produção, foram os rigores da seca que assolou a região. Considerando-se a evolução da renda per capita - obtida com a divisão do PIB pelo número de habitantes - no período de 1994 a 1998, é difícil delinearmos claramente uma tendência à concentração ou desconcentração econômica entre as regiões e Estados brasileiros. Para citarmos um só exemplo de crescimento da concentração, a diferença da renda per capita entre São Paulo e Maranhão aumentou, nesse período, em 7,1%. São Paulo e Maranhão contam, respectivamente, com o maior PIB e com a menor renda per capita da Federação. Este resultado mostra sua face dramática quando cotejamos alguns dados relativos à situação socioeconômica dos dois Estados: enquanto, em São Paulo, segundo estatísticas da Síntese de Indicadores Sociais de 1999, 10% das famílias com crianças de até 6 anos têm renda de até meio salário mínimo per capita, essa proporção chega a 67% das famílias com crianças pequenas no Maranhão!

Em suma, Srªs e Srs. Senadores, se é difícil afirmarmos simplesmente que o abismo social no Brasil está crescendo, não há a menor dúvida de que ele permanece imenso. Hoje, em um mundo globalizado, são talvez mais do que nunca necessários e imprescindíveis os esforços para eliminarmos o enorme fosso que divide a Nação brasileira - basicamente, em uma parte rica e uma parte pobre.

Que direção e sentido devem tomar os esforços de superação da desigualdade no Brasil? A resposta é, certamente, complexa. Mas acreditamos que talvez o fator mais importante para que isso ocorra já tenha sido ativado. Esse fator que nos parece decisivo é a tomada de consciência quanto à necessidade, imprescindibilidade e urgência dessa transformação na estrutura da sociedade brasileira. Conscientização que deve ser - e já começa a ser - da própria sociedade, de um modo amplo. Com base nessa conscientização, da sociedade civil organizada ou da não organizada, deve haver novas priorizações nos objetivos e metas das políticas públicas.

Hoje assistimos a uma reversão do ponto de vista de que o desenvolvimento econômico vem trazer, com o decorrer do tempo, uma maior eqüidade de renda em dada sociedade. É possível que o crescimento econômico traga, de fato, um aumento da renda dos mais pobres. Mas é fundamental perceber que o próprio desenvolvimento econômico seria muito maior em um ambiente mais igualitário, em que fossem bem distribuídas a renda, a educação e as oportunidades. Afinal - e cito aqui um artigo do Professor Ricardo Abramovay, publicado na Gazeta Mercantil de 21 de junho de 2000 -, “o que caracteriza o subdesenvolvimento é um conjunto de instituições (...) que dissociam o trabalho do conhecimento, que dificultam o acesso à terra e que bloqueiam a inovação. As organizações que emergem desse quadro institucional são altamente eficientes em sua capacidade de inibir o aparecimento dos potenciais produtivos da sociedade e de dificultar as formas não hierárquicas de cooperação em que se pode fundamentar o próprio crescimento. A pobreza, nesse sentido, é um freio para o crescimento.” Analisando as novas tendências do pensamento econômico, Abramovay refere-se ao economista indiano que talvez melhor as represente. Para Amartya Sen, que recebeu o Prêmio Nobel de 1998 por suas contribuições teóricas, “o desenvolvimento (...) é definido como o processo que permite a ampliação das possibilidades que os indivíduos têm de fazer escolhas”. Essas escolhas não devem ser entendidas em um sentido abstrato, correspondendo antes a formas de participação ativa na vida econômica e social.

O investimento no desenvolvimento humano é fundamental para impulsionar o crescimento econômico. Já há algum tempo sabemos que a educação, sobretudo a educação fundamental disponibilizada para toda a população, é uma alavanca extremamente eficaz para o desenvolvimento econômico e social. É inegável que o Governo Fernando Henrique apresenta consistentes realizações no setor educacional. Uma delas é o continuado crescimento da taxa de escolarização das crianças de 7 a 14 anos de idade, que passou de 90,2% em 1995 para 95,7% em 1999 (conforme os dados do IBGE). O analfabetismo na população em geral recuou de 18,2% em 1989 para 12,3% em 1999. Para a população de 10 a 14 anos, o decréscimo do analfabetismo foi ainda mais expressivo, passando de 14% de analfabetos em 1995 para 5,5% em 1999. No mesmo intervalo de cinco anos, a proporção de brasileiros com o 2º grau completo saltou de 15,5 para 19%.

Não temos dúvida de que a priorização de esforços e investimentos no ensino fundamental e médio terá grande impacto no sentido da diminuição das desigualdades sociais de nosso País, a curto, a médio e a longo prazos. O casamento do incentivo à escolarização com a garantia de uma renda mínima para as famílias mais pobres, por sua vez, constitui um mecanismo de notória eficácia para o combate, tanto imediato como profundo, à desigualdade. Tendo mostrado ótimos resultados nos lugares onde foi aplicado pioneiramente, a garantia de renda mínima associada à exigência de freqüência escolar ganhou dimensão nacional com a aprovação da Lei nº 9.533/97. No presente ano, temos a expectativa de que haverá uma grande ampliação do universo de seus beneficiários, ao longo de todo o território nacional.

O Brasil destina um montante significativo aos gastos sociais, proporcionalmente maior do que de qualquer outro país da América Latina. O grande problema é fazer com que esses recursos cheguem de fato àqueles que deles mais necessitam - ou seja, àquelas pessoas classificadas como pobres e miseráveis, e que constituem, de acordo com os critérios de recente pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), cerca de 35% da população brasileira. Devemos assinalar as inovações implementadas pelo Programa Comunidade Solidária em seus projetos, preocupados não apenas em focalizar sobre os mais necessitados os recursos disponíveis, como em superar uma mera atuação assistencialista, estimulando a capacitação e as iniciativas econômicas das próprias comunidades.

Também o Congresso Nacional tem demonstrado sensibilidade para buscar corresponder aos anseios profundos da população pela superação de nossa extrema desigualdade. Podemos ressaltar, além da Lei nº 9.533 já referida, a aprovação do Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza, bem como os esforços, no âmbito da Comissão Mista de Orçamento, no sentido de elevar o salário mínimo para R$ 180 e aumentar o montante de investimentos sociais no Orçamento de 2001, reforçando a tendência já estampada na proposta do Executivo.

Constatamos, além disso, que a maior parte dos investimentos sociais e de infra-estrutura constantes da Lei orçamentária para 2001, tanto na proposta inicial como no substitutivo aprovado, beneficiam as regiões mais pobres. Devemos preocupar-nos, entretanto, quanto a que os recursos federais para investimentos econômicos não sejam simplesmente pulverizados nas regiões menos desenvolvidas, atendendo a pressões e a interesses imediatistas. É fundamental avançar na linha de ação que pressupõe a identificação das potencialidades econômicas das regiões e localidades, concentrando os recursos em torno de eixos de desenvolvimento.

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, as importantes iniciativas que estão em curso devem ter continuidade, devem atingir uma maior profundidade e abrangência e devem somar-se a outras, que também atuem no sentido de promover a eqüidade em nosso País. Não podemos, entretanto, deixar de reconhecer que elas já refletem um novo estágio de consciência da sociedade brasileira sobre seus próprios problemas - assim como um questionamento, em nível mundial, do receituário neoliberal, que predominava há uma década.

Se soubermos conciliar o crescimento econômico com uma ampla e urgente promoção social e humana, fazendo com que ambas as vertentes se estimulem e se reforcem mutuamente, poderemos, pela primeira vez na história deste País, superar a extrema desigualdade que caracteriza nossa formação. Acreditamos que, neste século que se inicia, valha a pena eleger este objetivo como prioritário.

Muito obrigado.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 23/03/2001 - Página 3821