Discurso durante a 23ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

ELOGIOS A SOCIEDADE BRASILEIRA, AO GOVERNO E AO CORPO DE TECNICOS RESPONSAVEIS PELA PREVENÇÃO E COMBATE A AIDS, PELAS VITORIAS CONQUISTADAS.

Autor
Lúcio Alcântara (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/CE)
Nome completo: Lúcio Gonçalo de Alcântara
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
SAUDE. PROPRIEDADE INDUSTRIAL.:
  • ELOGIOS A SOCIEDADE BRASILEIRA, AO GOVERNO E AO CORPO DE TECNICOS RESPONSAVEIS PELA PREVENÇÃO E COMBATE A AIDS, PELAS VITORIAS CONQUISTADAS.
Publicação
Publicação no DSF de 29/03/2001 - Página 4352
Assunto
Outros > SAUDE. PROPRIEDADE INDUSTRIAL.
Indexação
  • COMENTARIO, ELOGIO, IMPRENSA, AMBITO NACIONAL, AMBITO INTERNACIONAL, PROGRAMA, COMBATE, SINDROME DE IMUNODEFICIENCIA ADQUIRIDA (AIDS), BRASIL, REGISTRO, DADOS, CONTROLE, DOENÇA, FLEXIBILIDADE, LEGISLAÇÃO, PATENTE DE REGISTRO, CONFLITO, INDUSTRIA FARMACEUTICA, PRODUÇÃO, MEDICAMENTOS, DISTRIBUIÇÃO GRATUITA.
  • GRAVIDADE, SITUAÇÃO, SINDROME DE IMUNODEFICIENCIA ADQUIRIDA (AIDS), TERCEIRO MUNDO.
  • QUESTIONAMENTO, ETICA, PROPRIEDADE INDUSTRIAL, PATENTE DE REGISTRO, MEDICAMENTOS, SINDROME DE IMUNODEFICIENCIA ADQUIRIDA (AIDS), MALARIA, NECESSIDADE, INCENTIVO, PESQUISA, LABORATORIO FARMACEUTICO, EXPECTATIVA, ATUAÇÃO, ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU), ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DO COMERCIO (OMC), SOLUÇÃO, CONFLITO.

O SR. LÚCIO ALCÂNTARA (PSDB - CE) - Sr. Presidente, Srªs. e Srs. Senadores, a revista VEJA, em seu número de 28 de fevereiro próximo passado, publicou matéria sobre a batalha vitoriosa que o Brasil vem travando contra a epidemia da Aids, doença terrível que ataca, nas últimas duas décadas, todo o Planeta.

O programa brasileiro de combate à Aids tem sido objeto de elogios em nível internacional. Sem dúvida, ele reflete um notável sucesso de nosso País. Antes de ser uma vitória de governos, ou de um grupo de técnicos competentes, essa conquista reflete uma vitória da sociedade brasileira. Desde o início da epidemia soubemos reagir com energia, e a tempo, com as medidas corretas, superando resistências equivocadas.

Se nossas mazelas sociais, se as falhas de nossa cultura cívica devem ser confessadas, analisadas e corrigidas, é justo também que analisemos e descrevamos nossos sucesso, que entendamos porque deu certo o que vem dando certo.

O único risco que se corre aí, a única restrição a um certo orgulho comemorativo publicamente manifestado, é que o sentimento de que vamos vencendo a epidemia possa levar a uma atitude de “baixar a guarda”, de tornar o público menos atento aos perigos da doença. Ora, na verdade, no caso de uma ameaça mortal como a Aids, o que deveríamos divulgar, cada vez mais, é a mensagem que vem se impondo nos últimos anos: há que se prevenir, há que se cuidar, há que ser prudente.

Esse fenômeno de “baixar a guarda” foi, infelizmente, constatado em pesquisa recente realizada na cidade de São Francisco, Estados Unidos. Lá, verificou-se que a excessiva confiança na defesa fornecida pelo conhecido coquetel de medicamentos anti-retrovírus, tem levado alguns grupos de risco a uma certa dose de negligência no que se refere às tradicionais medidas de prevenção.

Não obstante esse necessário acautelamento, foi muito oportuna a reportagem da VEJA. Temos que tomar conhecimento do andamento dessa batalha. Batalha que envolve decisivas medidas médicas preventivas e assistenciais; mas que tem a ver também com a controvertida e complexa questão da rigidez ou flexibilização das leis de patente que protegem os laboratórios farmacêuticos que criaram os dispendiosos medicamentos usados na luta contra a Aids.

Sr. Presidente, o fato é que, no início da década passada, a epidemia, no Brasil, como em muitos outros países, estava em franca expansão. Morriam de Aids cerca de 7.000 brasileiros por ano, e esse número continuava crescendo. Morte muito sofrida, que se seguia a episódios dolorosos de doenças oportunistas, já que a própria definição da Aids é a perda dos mecanismos imunizantes naturais do organismo. Estávamos lidando desesperadamente com doenças e estados terminais que sobrecarregavam insuportavelmente os serviços hospitalares.

O número de mortes continuou a aumentar ao longo da década: entre 1992 e 1996 situou-se num patamar de 9.000 a 11.000 óbitos por anos. Mas nossa reação já estava a caminho. Em 97 morreram 7.468 aidéticos; em 98, 6.254; em 99, 4.033; e no ano 2000, estima-se que o número tenha caído para 1.200.

Há 8 anos, o Banco Mundial fazia uma previsão de que, hoje, o Brasil teria 1 milhão e 200 mil infectados pelo HIV, sem chance de salvação ou tratamento. Mas conseguimos conter a epidemia: os contaminados são cerca de 500.000, e esse número mantém-se estável. Deles, 100.000 já chegaram ao ponto da infecção que exige o tratamento com o coquetel anti-Aids. E desses, a maioria vive e trabalha em relativa normalidade. Em suma, um panorama muito diferente das previsões sombrias, e certamente diverso do que ocorre nos países que, como o Brasil, não são ricos.

Estará contida e controlada a epidemia no Brasil? É claro que ainda há muito por fazer, mas segundo a definição técnica do que seja uma epidemia sob controle, a Aids, entre nós, está, sim, sob controle, pois se enquadra nas três condições que definem tal situação: há 3 anos o número de casos notificados continua o mesmo; o risco estatístico que alguém corre de ser infectado se estabilizou; e, decisivamente, a mortalidade caiu.

É curioso que o conhecimento desse caso único de controle dessa doença em país pobre ou emergente é maior lá fora do que entre nós. O programa brasileiro de combate à Aids tem sido considerado o melhor do mundo pela comunidade internacional. A ONU recomenda o modelo adotado entre nós. Grandes reportagens sobre o programa brasileiro saíram na BBC, na CNN, nas TVs francesa e suíça e nos principais jornais americanos.

A reportagem publicada pelo New York Times, em 28 de janeiro, em seu suplemento dominical chamado Magazine, é não só elogiosa, mas até mesmo reveladora na própria disposição gráfica do título da matéria. Primeiro, no topo da página, surgem 4 subtítulos: Leis de patentes são flexibilizáveis; Os pacientes podem ser educados; As empresas farmacêuticas podem ser derrotadas; A crise mundial da Aids tem solução. Só então vem o título da reportagem: Look at Brazil, que pode ser entendido como Vejam o Brasil, mas também como Espelhem-se no Brasil.

A referência ao fato de pacientes poderem ser educados relaciona-se com uma dúvida existente na comunidade internacional de especialistas sobre se portadores de HIV de baixo nível cultural conseguiriam seguir o complicado regime de ingestão dos 12 diferentes remédios do coquetel, em horários rígidos. A experiência brasileira mostrou que sim, desde que os ambulatórios especializados sejam bem organizados e treinados. Como conseqüência dessa particular característica evidenciada pelo programa brasileiro, o Governo americano, recentemente, divulgou sua nova regulamentação para o tratamento da Aids, que segue a diretriz brasileira. O medo que as autoridades médicas americana tinham anteriormente era que, se tomado de maneira incompleta, o complexo coquetel anti-Aids poderia contribuir para o surgimento de variedades de vírus mais resistentes às drogas.

Sr. Presidente, desde o início dessa terrível epidemia, nos anos 80, o Brasil agiu certo. Entendendo, corretamente, que a cura da doença tardaria muito a surgir, nosso setor de saúde promoveu uma política baseada em dois pilares: por um lado, ação preventiva, por meio de campanhas de esclarecimento e da promoção do sexo seguro; por outro lado, ação médica social, de assistência aos doentes sem condições de arcar com os custos do tratamento.

Em 1985, começaram os testes compulsórios nos bancos de sangue e a rede pública de saúde passou a oferecer testes gratuitos de HIV. Em 1991, iniciou-se a distribuição gratuita de AZT, o primeiro medicamento que se revelou capaz de retardar a evolução mortal da condição de soropositivo para a condição de aidético. Em 1993, iniciou-se a distribuição gratuita de preservativos. O uso de preservativos vem crescendo 30% ao ano, e hoje o consumo anual está na casa de 320 milhões de unidades. Seringas descartáveis são facilmente obtidas por viciados.

Em 1994, laboratórios do Governo passaram a produzir medicamentos contra a Aids. Em 1996, foram lançados, mundialmente, os medicamentos mais modernos, que inibem a multiplicação do vírus no organismo do soropositivo. O Brasil começou a oferecer gratuitamente a medicação. O sucesso do programa tem sido tal, que se estima que, desde 1997, 146 mil hospitalizações tenham sido evitadas, bem como os enormes custos correspondentes, de tratamento médico e de aposentadorias por invalidez. Com o coquetel, a Aids tornou-se como que uma doença crônica, controlável. Conseguimos isso, no Brasil, seguindo um caminho correto e persistindo nesse caminho.

A experiência pioneira brasileira ensinou a nossos médicos o momento certo de começar a administrar o coquetel, nem cedo demais, nem tarde demais. Retardar corretamente o início do tratamento significa poupar o paciente de um tratamento agressivo e também reduzir despesas.

Mas, sem dúvida, a principal característica do programa brasileiro é seu custo razoável, e o fator decisivo que permitiu manter esse custo a níveis suportáveis para nossos limitados orçamentos de saúde, foi a ousadia de produzir aqui mesmo os medicamentos anti-retrovírus, a preços muitíssimo inferiores aos que seriam cobrados pelos laboratórios estrangeiros. Para isso, tivemos que interpretar com flexibilidade a legislação sobre patentes. O que, de resto, tem amparo legal: nossa lei de patentes, alinhada com princípios jurídicos internacionais, reconhece, em seu art. 68, o direito de nos opor ao abuso do poder econômico e à prática de preços excessivos; e seu art. 71 permite ignorar direitos de patente em situações de emergência. Uma epidemia de Aids, o sofrimento em massa que ela acarreta, certamente é uma situação de emergência.

Naturalmente, tal postura suscita um conflito com os laboratórios detentores das patentes. O Brasil ainda importa 4 dos 12 remédios do coquetel. Só com dois desses medicamentos, o Governo gasta 36% do orçamento dedicado à distribuição do coquetel. O Ministério da Saúde ameaça, agora, produzi-los aqui, se os laboratórios que os vendem não baixarem substancialmente seus preços. Um dos laboratórios é o Merck, americano, que acena com direito de patente, e o Governo dos Estados Unidos já nos ameaça com um processo na Organização Mundial do Comércio.

Antes de seguir comentando a questão das patentes, vale acrescentar mais algumas observações sobre o programa brasileiro, tão bem sucedido. O programa gasta com medicamentos cerca de 600 milhões de reais por ano. Esse custo é cadente, já que com o mesmo valor forneceu-se o coquetel, e respectiva orientação, a 75.000 pacientes, em 1999, e a 100.000 pacientes, em 2000. Vale notar que os medicamentos constituem 60% dos gastos do programa. O resto corresponde às equipes que atendem nos 650 ambulatórios especializados espalhados pelo País e aos exames clínicos de acompanhamento.

Está claro, hoje, que o sucesso das medidas preventivas, isto é, uso de camisinha e agulha descartável, é maior na medida do melhor nível cultural do público destinatário da propaganda de prevenção. Mas o sucesso do tratamento com o coquetel, conforme comprovado por pesquisa recente, depende, fundamentalmente, não do padrão do paciente, mas da qualidade do serviço oferecido pelo ambulatório. São indicações, essas, úteis para o aperfeiçoamento do programa.

Outro dado notável é a transformação, ao longo do tempo, geográfica e demográfica, do universo das vítimas da contaminação com o HIV. A doença difundiu-se por todos os Estados, havendo registro de casos em quase 60 por cento dos municípios brasileiros. Por outro lado, diferentemente da década de 80 e início da de 90, há uma incidência progressiva entre mulheres e pessoas de baixa escolaridade. Esses, hoje, são os segmentos mais fragilizados. E, somadas a eles, as crianças infectadas por mães grávidas soropositivas, ou, simplesmente, as 30.000 crianças órfãs de mães que morreram de Aids.

Se a nossa situação é a de estar dando combate eficaz a uma doença terrível, um olhar sobre o que se passa em outros países, excluídos os mais ricos, revela uma paisagem de horror e devastação. A África tem dezenas de milhões de soropositivos ou aidéticos. No Sudeste da Ásia, a mortandade pela doença é enorme. No Caribe, ela ataca ferozmente: lá, há países em que 13% das mulheres grávidas estão infectadas com o HIV. Na Rússia, o número de soropositivos dobrou em um ano.

Para todas essas situações trágicas, o exemplo do Brasil é uma esperança concreta, um modelo testado e pronto para ser adaptado e seguido.

É útil olhar também para o que se passa nos países ricos. Lá, o coquetel anti-retrovírus é usado extensamente, a um custo alto, que a maioria da população, ou os programas públicos de saúde, podem suportar. Como eles começaram um pouco antes de nós, acumulam experiência médica valiosa. Já existe, nesses países, preocupação com os longos períodos de tratamento que muitos pacientes vão acumulando. Afinal, o coquetel não deixa de ser uma quimioterapia agressiva, que desgasta o organismo, que traz seqüelas e efeitos colaterais. Essas questões já são vistas como ameaças a serem levadas em conta. Evidentemente, as pesquisas e descobertas de novos medicamentos, mais aperfeiçoados, devem continuar, para dar solução a essas situações.

Isso nos traz de volta à questão dos direitos de patente. Os laboratórios precisam, para investirem pesadamente em suas pesquisas, do incentivo do retorno financeiro desses investimentos. Os direitos de patente são, em princípio, um mecanismo justo. Mas é preciso conciliar esse direito com a obrigação ética de não deixar milhões sofrerem e morrerem apenas por serem pobres. E a questão não se resume à Aids. A Aids é apenas uma epidemia com maior visibilidade do que outras. A malária, por exemplo, que vitima principalmente populações pobres, também precisa de mais atenção dos grandes laboratórios farmacêuticos.

É evidente que, nesse impasse de direitos conflitantes, o mundo necessita de uma repactuação de toda a questão que envolve direitos de patentes farmacêuticas e doenças que atingem grandes massas, bem como as epidemias que incorporam aspectos de urgência ou mesmo de tragédia extrema. É preciso que organismos internacionais como a ONU e a OMC sejam criativos e proponham soluções inovadoras que superem conflitos como os que o Brasil agora enfrenta.

Sr. Presidente, alonguei-me um tanto nesse assunto fascinante, mas não quero que se perca a mensagem central deste meu pronunciamento. O programa anti-Aids brasileiro é um sucesso; ele deve ser creditado à sociedade brasileira com um todo, à sua criatividade, adaptabilidade, talento, enfim. Temos, sim, talento coletivo. É preciso saber desenvolvê-lo e aplicá-lo às miríades de outros grandes e pequenos problemas que nos assolam.

Muito obrigado.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 29/03/2001 - Página 4352