Discurso durante a 116ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Homenagem ao Círio de Nossa Senhora de Nazaré, que será realizado no segundo domingo de outubro de 2001

Autor
Carlos Patrocínio (S/PARTIDO - Sem Partido/TO)
Nome completo: Carlos do Patrocinio Silveira
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • Homenagem ao Círio de Nossa Senhora de Nazaré, que será realizado no segundo domingo de outubro de 2001
Publicação
Publicação no DSF de 20/09/2001 - Página 22309
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM, FESTA, IGREJA CATOLICA, OCORRENCIA, MUNICIPIO, BELEM (PA), ESTADO DO PARA (PA), IMPORTANCIA, MANIFESTAÇÃO COLETIVA, RELIGIÃO, POVO.

O SR. CARLOS PATROCÍNIO (Sem Partido - TO. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, as grandes manifestações de religiosidade popular, na simplicidade aparente que esconde densa complexidade simbólica, são as melhores vias para o entendimento da alma profunda de um povo.

É nesses lugares e nessas ocasiões que a rotina dos dias comuns é interrompida. Pela repetição de um ritual, transmitido de geração a geração, é restabelecido um elo com o atemporal, elo que dá sentido e significação à própria vida. É nessas ocasiões - eu dizia - que o homem cosmopolita e globalizado pode ter um vislumbre da cosmovisão peculiar à gente do povo, uma visão das pessoas simples e despossuídas, excluídas da pretensa instrução universalista que é a nossa.

No Brasil, País de intensos contrastes socioculturais, esse vislumbre causa sempre uma impressão vívida. Diante das celebrações, nós, brasileiros portadores da citada cultura universal, não somos diferentes dos estrangeiros, que assistem a tudo, tomados de espanto antropológico. Isso é particularmente verdadeiro para os nossos compatriotas oriundos de outras regiões, mais alheados que são às formas específicas que assume, em cada local, a síncrese do catolicismo europeu com costumes ancestrais, indígenas e africanos.

O Círio de Nossa Senhora de Nazaré de Belém do Pará, a maior expressão popular de religiosidade da Amazônia e do Brasil, é um desses momentos e lugares em que podemos sondar a alma do nosso povo. No Círio, revela-se a espontânea manifestação coletiva daquela cosmovisão segundo a qual o mágico e o misterioso são forças vivas, presentes e atuantes. É uma visão tão forte e tão atemporal, que teremos, neste ano de 2001, a sua ducentésima oitava edição, a ocorrer na data que a tradição decidiu consagrar: o segundo domingo de outubro.

Sim, foi no ano remoto de 1793 que o Governador da Província do Grão-Pará, Francisco de Souza Coutinho, resolveu tornar oficiais as procissões à ermida da mata do Utinga, então nas cercanias da Belém. Lá havia uma imagem da Senhora de Nazaré, idêntica àquela existente em Porto de Mós, na Estremadura, já então objeto de devoção por parte dos portugueses, imagem votiva ao milagre ocorrido em setembro de 1182, ao alcaide D. Fuas Roupinho, salvo pela invocação da Virgem de se precipitar, com cavalo e tudo, do penhasco ao mar.

O arrabalde da capital paraense teria sido o sítio de novo milagre: a imagem, encontrada em 1700 pelo caboclo José de Souza Plácido, às margens de um igarapé, retornava inexplicavelmente ao ponto original sempre que dali era levada. Em uma dessas vezes, ainda no século XVIII, teria para lá retornado apesar de cercada por forte guarda no palácio do Governador. Esse milagre do retorno da imagem é repetido todos os anos na celebração do Círio de Nazaré, como símbolo da adesão coletiva à vontade de Maria de ali permanecer.

A Basílica de Nossa Senhora de Nazaré, destino da procissão, atualmente em posição bem central em Belém, encontra-se precisamente no local onde a imagem, segundo a tradição, foi encontrada. O cortejo parte da Sé de Belém, no bairro da Cidade Velha, bem em frente ao forte da fundação da cidade, e segue por cerca de três quilômetros até o Largo de Nazaré, onde fica a Basílica.

O decreto de Souza Coutinho determinava ainda outra das tradições ligadas ao Círio de Nazaré: o estabelecimento de uma feira no largo da ermida. Ainda hoje, o Largo de Nazaré, durante a quadra do Círio, é tomado por barracas, formando um arraial festivo. Ali, o cidadão e o turista podem degustar os pratos da variada e rica culinária típica da região, superior, segundo alguns refinados gourmets, à afamada comida baiana. Ali, o visitante pode conhecer todo tipo de produto do artesanato amazônico. Ali, as crianças podem brincar nos carrosséis e se fartar dos doces e guloseimas também típicos.

Para o belenense, e também para as populações ribeirinhas da região, o Círio de Nazaré é o ponto máximo do calendário, é figura, em importância, acima até mesmo das festas da Páscoa ou do Natal, que, no calendário litúrgico oficial da Igreja Católica, balizam toda a vida espiritual cristã. Este é, de fato, o traço fundamental do Círio: seu caráter de festa do povo. Sua história, de duzentos anos, é marcada por reiteradas e infrutíferas tentativas, da parte do arcebispado, de expurgar a procissão de seus aspectos pagãos, que toldariam, segundo as autoridades, a pureza espiritual da festa.

Nada disso adiantou: o povo venceu todas as disputas, impôs seu modo de ser e de celebrar, sua visão de mundo, sua espiritualidade toda própria - espiritualidade, é certo, sem manual de culto, sem roteiro escrito dos ritos, mas preservada pela tradição do sentir e do fazer.

Tradições como a do carro dos milagres - onde se depositam os ex-votos -, como a do barco da marujada ou como a das crianças vestidas de anjo continuarão a levar, pelos anos e anos a vir, a especial relação de nosso povo com o transcendente. E não é possível deixar de mencionar especialmente a corda, aquela impressionante corda que puxam os promesseiros mais ardorosos, os de devoção mais exaltada. Outros se postam ao longo do percurso, com garrafões de água, para saciar a terrível sede daqueles que seguram a corda, causada pelo esforço e pelo calor úmido do clima equatorial de Belém do Pará.

Para as famílias de todos os níveis sociais, o Círio é a ocasião de reunião diante da mais farta das mesas, coberta de iguarias daquela extraordinária culinária paraense. Nesse dia, as rixas, as intrigas familiares são esquecidas, e todos se reconciliam na alegria que contagia até os turistas, que não conhecem e não apreendem, em sua totalidade, o sentido de tão grande celebração. Temos ali, para empregar outra vez a palavra, um vislumbre da utopia da paz universal, que desejamos para toda a terra e todos os homens e da qual a humanidade se revela tão necessitada.

Este é para mim, para a percepção que tenho do Círio, seu sentido mais profundo: a realização desse sonho de integração que os dias comuns nos negam e que as ações dos violentos e dos terroristas situam cada vez mais distante. Esse sonho, para nosso povo, parece estar sempre ali, bastando dobrar a esquina para encontrá-lo.

Círio de Nossa Senhora de Nazaré, festa do povo! É uma lição que nossa gente simples nos dá, ano após ano. É uma lição de perseverança e fé, de confiança de que o futuro será melhor, lição da qual tanto necessitamos e que se reveste sempre da esperança - sentimento característico não só da população paraense, mas de todo o povo brasileiro.

Sr. Presidente, foi com emoção que me inscrevi para falar deste dia especial em que se comemora, no Senado Federal, o Círio de Nazaré.

Sr. Presidente, mais uma vez recebi um gentil convite da família Coutinho Jorge e, se Deus quiser, no dia 14 próximo, estarei comemorando, juntamente com os paraenses, essa festa, que é uma das mais bonitas do calendário nacional.

Muito obrigado.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 20/09/2001 - Página 22309