Discurso durante a 120ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Comemoração ao centenário de nascimento do ex-Senador Alberto Pasqualini.

Autor
Pedro Simon (PMDB - Movimento Democrático Brasileiro/RS)
Nome completo: Pedro Jorge Simon
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM. POLITICA NACIONAL.:
  • Comemoração ao centenário de nascimento do ex-Senador Alberto Pasqualini.
Publicação
Publicação no DSF de 26/09/2001 - Página 22665
Assunto
Outros > HOMENAGEM. POLITICA NACIONAL.
Indexação
  • HOMENAGEM, CENTENARIO, NASCIMENTO, ALBERTO PASQUALINI, EX SENADOR, ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL (RS), PARTIDO POLITICO, PARTIDO TRABALHISTA BRASILEIRO (PTB), ELOGIO, VIDA PUBLICA, DEFESA, JUSTIÇA SOCIAL, ESTADO DEMOCRATICO, ANALISE, ATUAÇÃO, HISTORIA, BRASIL.
  • ANALISE, SITUAÇÃO SOCIAL, SITUAÇÃO ECONOMICA, BRASIL, CORRUPÇÃO, SONEGAÇÃO FISCAL, DESIGUALDADE SOCIAL.
  • REGISTRO, PUBLICAÇÃO, LIVRO, SENADO, REUNIÃO, OBRA INTELECTUAL, ALBERTO PASQUALINI, EX SENADOR.

  SENADO FEDERAL SF -

SECRETARIA-GERAL DA MESA

SUBSECRETARIA DE TAQUIGRAFIA 


            O SR. PEDRO SIMON (PMDB - RS. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srs. Ministros, Srªs e Srs. Senadores, Srs. Deputados, distintas autoridades que nos honram com as suas presenças nesta solenidade, há cem anos, em 23 de setembro de 1901, nascia em Ivorá, no Rio Grande do Sul, aquele que viria a ser, na minha opinião, um dos mais destacados homens públicos do nosso Estado e um dos maiores ideólogos políticos brasileiros, Alberto Pasqualini.

            Adolescente, foi seminarista. Educado nos princípios cristãos, convicto, na pureza de seu coração, da igualdade dos homens perante Deus, empenhou-se em realizar o desejo de São Basílio:

Que eu possa pôr sob vossos olhos toda a miséria do pobre, a fim de que sintais de que lágrimas vós formais o vosso tesouro.

            Transcorrido um século desde o nascimento de Alberto Pasqualini, o Brasil mudou muito. Deixamos de ser um país rural para nos transformarmos na nação mais industrializada da América Latina. Somos hoje o quinto país em extensão territorial e população e nos encontramos entre as dez nações que mais produzem no mundo. Mas, mesmo assim, pode-se dizer que, pelo ponto de vista social, o Brasil de nossos dias pouco difere daquele que viu nascer Alberto Pasqualini. Infelizmente, nossa Nação continua a ser uma das mais injustas da Terra, como provam os números e os levantamentos sérios sobre a distribuição da renda gerada no Brasil.

            Esses últimos cem anos da História do Brasil foram muito conturbados. Quando nasceu Pasqualini, éramos uma jovem República, construída em cima de um golpe de Estado. Ao longo de todo o século XX, vivemos curtos intervalos de democracia, entremeados por extensos períodos de arbitrariedade. Na República Velha, as eleições eram sempre fraudadas. Depois, veio a Revolução de 30, que se pretendia democrática, mas que terminou desembocando no Estado Novo. Em 1954, ocorreu a trágica morte de Vargas. Dez anos mais tarde, veríamos a implantação do regime militar, que se estenderia por duas décadas. Esses foram os “Brasis” em que viveu Pasqualini.

            Alberto Pasqualini passou a infância e a juventude no meio rural até que, em 1915, ingressou no curso ginasial do Seminário Nossa Senhora da Conceição, em São Leopoldo, onde foi colega de dois jovens que viriam a ser grandes prelados brasileiros: Dom Jaime de Barros Câmara, Cardeal Arcebispo do Rio de Janeiro; e Dom Vicente Scherer, Cardeal Arcebispo de Porto Alegre.

            Em 1919, Alberto Pasqualini deixou o seminário e iniciou o curso de magistério no Colégio Anchieta, em Porto Alegre, onde veio a se destacar como aluno brilhante. Em 1929, formou-se em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Aluno brilhante, embora tivesse que trabalhar paralelamente aos estudos, foi orador de sua turma. Em seu discurso de formatura, já se destacam os temas que iriam basear sua vida política e intelectual: a busca de justiça e a discussão de doutrinas sociais.

            Em 1932, Alberto Pasqualini instalou banca de advogado no centro de Porto Alegre, onde pôde, desde logo, mostrar a sua competência profissional, o seu conhecimento profundo da Ciência Jurídica.

            Em 1934, concorreu à Câmara dos Deputados, ficando na décima primeira suplência, com 77 mil votos. Durante a campanha eleitoral, criticava duramente o interventor no Estado, General Flores da Cunha. Num célebre discurso que fez em Pelotas, Pasqualini disse:

Os verdadeiros estadistas, os que têm a consciência tranqüila, não receiam a discussão dos seus atos e a análise da sua conduta, pois fácil será confundir os que criticam se estiverem errados e, se tiverem razão, felicidade deverá ser para o governante, digno desse nome, descobrir os seus erros e ter a oportunidade de corrigi-los.

            Durante 1934 e 1935, confirmando uma vocação para o magistério, que manifestará desde cedo, lecionou Introdução à Ciência do Direito e Direito Civil, na Faculdade de Direito de Porto Alegre.

            Ainda em 1935, Alberto Pasqualini elegeu-se Vereador em Porto Alegre, na Frente Única, que englobava, entre outros, o Partido Libertador. Foi o segundo melhor votado. Na Câmara Municipal da capital gaúcha, destacou-se pelos seus pareceres brilhantes e pela profundidade que dedicava ao estudo de toda e qualquer questão municipal.

            Em 1939, convidado pelo General Cordeiro de Farias, então interventor federal no Rio Grande do Sul, Alberto Pasqualini passou a integrar o Departamento Administrativo do Rio Grande do Sul, organismo criado pelo Governo Central para fazer as vezes de Assembléia Legislativa, desativada desde a implantação do Estado Novo. Ali, manteve a mesma postura de sempre, baseada no primado da justiça.

            Durante uma visita de Getúlio Vargas ao Departamento Administrativo, coube a Alberto Pasqualini fazer um discurso. Foi, então, num trecho em que se referia indiretamente ao General Flores da Cunha, ex-interventor, que Pasqualini produziu uma das suas análises mais famosas. Atacou o caudilhismo, dizendo, na frente do próprio Getúlio Vargas:

Extirpado o caudilhismo, que menos nos oprimia do que nos desagradava, transformou-se o potencial de nossas energias polêmicas em energias orgânicas de trabalho e de construção. O Rio Grande do Sul transfigurou-se. O Rio Grande das turmas rodoviárias, da fanfarronice e das ameaças ridículas, o Rio Grande caudilhesco -- revivescência anacrônica e caricatural de tempos heróicos -, esse Rio Grande desapareceu para sempre e jamais reviverá, porque o Rio Grande, sem deixar de ser heróico, quer ser aquilo a que o votou a sua destinação histórica: uma expressão racional de trabalho, de cultura, de civilização.

            Em setembro de 1943, Alberto Pasqualini tomou posse como Secretário do Interior, pasta à qual eram entregues os assuntos de segurança pública e de justiça. Ao assumir o cargo em pleno Estado Novo - no qual permaneceu até julho de 1944 --, chegou a dizer que o Departamento de Imprensa e Propaganda, o famigerado DIP do governo central não entraria no Rio Grande do Sul. Com isso, ele fez com que o Rio Grande do Sul escapasse do rígido controle político que era exercido, no resto do País, pelo regime. Pasqualini permitiu, por exemplo, que fosse vendido no Rio Grande do Sul o livro Fronteira Agreste, de Círio Martins, que estava proibido no resto do País.

            Em 1945, Alberto Pasqualini recusou a indicação para Ministro do Supremo Tribunal Federal. Em novembro de 1946, candidatou-se ao Governo do Estado. Perdeu a disputa, em janeiro do ano seguinte, por uma margem de apenas 20 mil votos, para Valter Jobim. Durante a campanha, seus adversários distribuíram panfletos nas zonas de colonização alemã e italiana advertindo contra Pasqualini, “um candidato ateu e comunista”. Se Vargas o tivesse apoiado claramente, o que não se deu, Pasqualini teria vencido. Embora Pasqualini tenha sido derrotado, o PTB saiu fortalecido. Venceu a disputa para o Senado e conseguiu 23 das 55 cadeiras da Assembléia Legislativa (o PSD ficou com 16). Pasqualini venceu em Porto Alegre: teve 55% dos votos válidos na Capital.

            Foi em 1948 que conheci Alberto Pasqualini, quando ele fazia uma palestra na Faculdade de Direito. Eu estava junto com um grupo de estudantes secundaristas. Fiquei fascinado com a clareza dos ensinamentos, com a lucidez do seu raciocínio, com o conteúdo moral das suas afirmações. Terminada a conferência, falamos com ele. Queríamos ouvi-lo mais vezes, outras vezes. Ele disse que sim. Foi ali, naquela oportunidade, há 53 anos, que começou a nascer o meu interesse pela vida pública brasileira. A partir daquele dia, Alberto Pasqualini passou a ser uma espécie de nosso orientador, de nosso mestre. Duas vezes por semana, ele nos reunia no prédio da antiga Assembléia Legislativa para debatermos questões políticas e ideológicas. Às vezes nos encontrávamos na casa do seu irmão, Arlindo Pasqualini, que era diretor da Folha da Tarde. Ele não expunha apenas as suas idéias. Principalmente, queria ouvir as nossas opiniões, incentivava-nos ao debate. Era um verdadeiro mestre. Com sabedoria, fazia com que chegássemos a uma conclusão própria. Prezava, mais do que tudo, a liberdade intelectual.

            Pronunciei as seguintes frases, e um brilhante jornalista as gravou. Estão publicadas num livro sobre a minha biografia. Faço questão de dizê-las aqui porque as gravei espontaneamente, do fundo do meu coração:

Sou porta-voz de uma utopia maior do que eu. Quem me vê falando percebe que não sou um filho do vento. Os que me ouvem com atenção, raramente com indiferença, freqüentemente com respeito - modéstia à parte, pois me esforço para comunicar - não colhem improvisos, mas idéias inspiradas no credo de um profeta da democracia.

Creio firmemente em Alberto Pasqualini, na sua avaliação humanista do mundo, na certeza de que o destino do homem é a felicidade e que só a alcançaremos pela liberdade, pela justiça e pela educação.

Pretendo ser reconhecido, nas palavras e ações, como seu testemunho, um pouco além do que seria um pregador das suas idéias ou um mero devoto do seu culto.

Alberto Pasqualini me ensinou desde o bê-á-bá da filosofia de Aristóteles, o grego, e me ensinou a pensar. Fez-me desafiar com idéias a realidade, como quer que ela se apresente. Libertou-me de sectarismos (na época, a tentação comunista parecia destinada a dominar o mundo) e de ilusões (como o capitalismo, cuja prática pareceu esmagar os dogmas esquerdistas).

Também me ensinou a nunca escamotear a verdade, antes expô-la com destemor e clareza, como ele mesmo fez quando, vivendo no país dos gaúchos e fazendo política no Rio Grande do Sul, proclamou, sem meias palavras: “O caudilhismo, na América Latina, é a forma organizada da criminalidade política.

            Esse julgamento condenatório dos caudilhos contribuiu muito para as suas gloriosas derrotas, de 1947 e de 1954, como candidato a Governador do Rio Grande do Sul. Mas não se arrependeu ou penitenciou. Inimaginável sua reação se algum estrategista eleitoral pragmático - como certamente fariam, hoje, os marqueteiros - lhe propusesse explicar-se, ou retratar-se, para ganhar votos dos chefes políticos na época ainda dominantes no Rio Grande do Sul e no Brasil.

            Pelos critérios que sempre seguiu rigidamente, mas sem fanfarronices ou moralismos, seria melhor a derrota. A vencer sem a verdade (ou, no caso, com os caudilhos), melhor perder. É o que tenho demonstrado quando me aconselham o silêncio de conveniência ou quando marqueteiros, usando sofismas e exemplos bem-sucedidos de vendedores de eletrodomésticos ou títulos de capitalização, sugerem-me evitar temas, sopitar críticas ou adiar denúncias. Aí é que procuro ser agressivo e inconveniente, criticando e denunciando.

            Nos anos 60, quando Pasqualini já havia morrido, o “movimento das reformas”, que empolgou as esquerdas e se tornou a grande bandeira do PTB, praticamente baniu das discussões sua memória e suas propostas. Foi uma pena e um erro, que pressenti no momento em que aconteceu. Até alertei, mas fui voto vencido. Pasqualini era um patrimônio do PTB.

            Se, desde sempre, os direitistas diziam que as propostas de Pasqualini eram “comunismo enrustido” e que ele não tinha coragem de assumir o marxismo e por isso adotava uma fantasia democrática, agora eram os esquerdistas que nos condenavam, remanescentes seguidores de Pasqualini. Diziam que, se dependesse de nós, o “capitalismo selvagem” duraria para sempre, o que, trocado em miúdos, significava acusar-nos de inocentes úteis, tolos, imobilistas.

            A História mostrou que esses radicais estavam equivocados na teoria e na estratégia. Pregavam as “reformas de base”, contando com a vitória antecipada, diziam que a doutrina de Pasqualini era água com açúcar, estava superada.

            Quando mergulhamos nas trevas, em 1964, cujas desgraças e humilhações duvido que alguém conheça melhor do que nós, porque não só vivemos a nossa parte mas fomos testemunhas, confidentes das vítimas e investigadores avançados dos crimes e ignomínias praticados na ditadura, ouvi muita gente se penitenciar por haver preferido o triunfalismo histérico e o irrealismo político que nos enfraqueceram e favoreceram a direita. A falta de substância ideológica das “reformas de base” foi fatal. Ouvi suspirarem: “Que falta nos fazem as luzes e o equilíbrio de Alberto Pasqualini!” Mas já era tarde. Havíamos perdido o momento histórico, a chance de estar no poder, como esteve o PTB, e não haver executado o ideário de que Pasqualini havia sido o grande profeta e codificador.

            Refleti muito sobre a ironia desse descarte de Pasqualini nos anos 60, quando, primeiro no PTB, depois no MDB e, finalmente, no PMDB, tive a responsabilidade de liderar flancos importantes na luta contra o regime militar e desafiei as ações radicais. Mas, para a surpresa dos que nos imaginavam acomodados, exploramos vigorosamente todas as formas conseqüentes de luta contra a ditadura. E ninguém foi mais longe do que os apaixonados de Pasqualini. Enquanto combatia o voto em branco - isso, sim, um ato de capitulação -, denunciava as torturas e reclamava a punição dos torturadores, identificando-os.

            Em 19 de outubro de 1950, como candidato do PTB, foi eleito Senador da República com 385 mil votos, contra 275 mil dados a Salgado Filho. Subiu nos palanques ao lado de Getúlio Vargas, então candidato à Presidência da República. Num famoso discurso em Alegrete, fez uma análise muito interessante do PTB.

            Disse Pasqualini: “O trabalhismo é, sem dúvida, no Brasil, a obra de um rio-grandense e de um filho da fronteira: Getúlio Vargas”.

            Poderá até parecer estranho e paradoxal que o trabalhismo seja impulsionado justamente por um homem que tem as suas origens e as suas raízes no meio pastoril, que, como sabeis, é geralmente conservador. Só esse fato seria o bastante para nos dar a medida do grau de evolução e de antevisão do nosso eminente candidato à Presidência da República.

            Nos anos que passou no Senado, mais de uma vez, Pasqualini teve ocasião de prestar relevantes serviços ao Brasil. Seria demasiado longo falarmos aqui de todas as tarefas transcendentes que realizou nesta Casa. Fiquemos com algumas poucas. Em seus discursos, Pasqualini defendeu as chamadas reformas de base, analisando-as ponto por ponto, sob a análise econômica e sob a análise social. Criticou o clientelismo político e o empreguismo apaziguado de políticos na administração pública. Em diversas oportunidades, enfatizou o papel fundamental dos partidos políticos para o amadurecimento institucional do País.

            Vários de seus pronunciamentos tinham como tema central a economia, em especial a defesa do valor do trabalho e condenações veementes à inflação, que considerava “um dos maiores flagelos sociais” e “um tributo lançado sobre as massas trabalhadoras e os assalariados em geral.”

            No que tange aos temas econômicos, entre seus discursos mais notáveis, destacam-se, em 1952, a defesa da instalação da usina termoelétrica de Candiota e a defesa do substitutivo ao projeto que criou o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social - BNDES. Naquele mesmo ano, em tocante pronunciamento, também abordou o problema da falta de moradias.

            Em 1953, numa de suas mais destacadas atuações em temas de natureza econômica, Alberto Pasqualini relatou a lei que criou a Petrobras*. Somente por esse fato, acreditamos que já se justificaria a indicação, na época, do seu nome para a sala da Comissão de Economia e Finanças.

            Em 1954, Alberto Pasqualini apresentou projeto criando o Sistema Federal de Bancos de Estado, mecanismo oficial para financiar investimentos públicos e privados (algo que seria mais tarde concretizado no Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social - BNDES).

            Diferenciando-se dos demais políticos de sua época pela densidade de seus conhecimentos, pelo rigor dos seus estudos, Pasqualini deu um verdadeiro substrato intelectual ao trabalhismo brasileiro. Para ele, o trabalhador estava no centro da atividade econômica e, por isso, merecia remuneração digna.

            Escreveu Pasqualini: “É o trabalho a fonte original e principal dos bens e é, portanto, o trabalho a causa principal do valor de quase todos os bens.”

            Minhas senhoras e meus senhores, do nascimento de Pasqualini para cá, o Brasil tem lutado muito para superar suas fragilidades. Na verdade, nosso amadurecimento como Nação tem-se dado a duras penas. Desde há muito, almejamos conquistar uma justiça social, mas queremos que ela seja alcançada com integral respeito aos direitos fundamentais do cidadão. Avançamos muito neste sentido, sem dúvida. Mas o caminho que temos por diante ainda é muito extenso.

            Para chegarmos até aqui foram precisos muitos anos de luta e o sacrifício de inúmeras pessoas. Pasqualini foi um desses. Em várias oportunidades, sacrificou-se por suas idéias. Chegou a dizer que foi quase um profeta. Mas, infelizmente, muitos dos males que denunciou ainda se mantêm de pé.

            Nas últimas décadas, o País se tornou mais moderno, mais dinâmico, mais produtivo, mais livre, mais democrata. Disso não há dúvida. Mas, de todo modo, eu insisto, ainda há muito o que fazer, especialmente na área social.

            Homens com grande visão política, estadistas no sentido do termo, como Alberto Pasqualini, por vezes, são esquecidos. São grandes demais para serem compreendidos. Mas eu tenho lutado para que ele, Pasqualini, tenha reconhecido o seu lugar na vida brasileira. Alberto Pasqualini era daqueles homens que, com suas idéias avançadas, antecipava o futuro. Hoje, modestamente, eu trabalho para que seus sonhos se transformem em realidade - eu e a geração dos que conheceram Pasqualini.

            Cabe aos homens públicos, creio eu, resgatar a memória dos que lutaram muito pelo País, pelo povo do seu País. Foi por isso que nos propomos fazer, aqui, esta homenagem por ocasião do centenário do nascimento de Alberto Pasqualini, um homem que preferiu o combate pela justiça social à glória e à riqueza que seu talento intelectual certamente lhe asseguraria.

            A missão fundamental de Pasqualini era falar pelos que não tinham voz. Ele conseguia enxergar a esperança quando faltava pelos que só tinham a miséria diante dos olhos. Lutava pela liberdade do homem para que, mais consciente de sua grandeza, ele ficasse mais perto da humildade de Deus. Quis eliminar as fronteiras entre pobres e ricos para que aqueles não invejassem estes e estes não vivessem do sacrifício daqueles, porque, como ele dizia, “somos todos companheiros do mesmo destino humano”.

            De certa forma, pode-se dizer que a atuação de Alberto Pasqualini foi determinada pelo olhar faminto das crianças das velhas colônias agrícolas, que ele trazia encravado no seu coração. Quando falava dos pobres, na certa ele se recordava das cruzes dos túmulos de seus amigos de infância, que não sobreviveram à fome e às doenças nas colônias criadas pelos imigrantes italianos.

            Na sua infância, ele percebia que colonos, os homens e mulheres que enfrentavam o trabalho duro do campo, viviam à margem da sociedade. Com o fracionamento das terras, não havia espaço para os homens mais jovens, que tinham de deixar a propriedade familiar. Iam para a cidade engrossar a fileira dos desempregados ou para trabalhar em subempregos. As crianças eram atingidas por um alto índice de mortalidade. Assim, a convicção de Pasqualini em favor da reforma agrária não foi meramente ideológica ou intelectual. Ela teve origem em sua convivência que essa realidade, com as dificuldades que enfrentavam os pobres colonos de ascendência italiana, a sua verdadeira gente.

            Certa vez, examinando a situação dos “marginais”, “os deficitários da vida”, Pasqualini observou:

O analfabetismo, a falta de ocupação, a vida difícil e a miséria poderão criar uma grave situação de insegurança que evoluirá como uma criminalidade irreprimível. Todos aqueles que possuem bens e desejam conservá-los deveriam compreender que, quando um esfaimado ronda a porta, é mais seguro dar-lhe meio de vida do que chamar a polícia. Infelizmente, nem todos pesam assim e acham preferível e mais econômico chamar o delegado.

            Esse comentário, feito há cinqüenta anos, continua atualíssimo porque em nossas principais cidades a violência predomina e já surge a geração dos filhos dos chamados meninos e meninas de rua. Ora, eu acho que só haveremos de superar este problema com o desenvolvimento, com a justiça social e com o crescimento de emprego, porque, se o pais receberem um salário condigno os filhos não serão abandonados.

            Defensor do trabalhismo, Pasqualini frisava que era preciso fazer com que os pobres tivessem melhor condição de vida, porque, assim agindo, estavam na esteira de Nosso Senhor, “que defendeu sempre os humildes e os deserdados”. Alberto Pasqualini chegou a ser criticado porque reivindicava para os operários a possibilidade de ir ao cinema, de possuírem rádio e refrigerador, porque dizia:

É melhor conviver com o trabalhador que tem direitos a defender do que aquele que é marginalizado e tem reclamações apenas a fazer.

            A atual situação do trabalhador brasileiro não é, nem de longe, a sonhada por Alberto Pasqualini. Na média, o trabalhador ganha muito mal. E freqüentemente tem seus direitos desrespeitados. De outro lado, cresce o trabalho informal. Contudo, a verdade é que o Brasil avançou. Somos, hoje, uma democracia aberta onde, por exemplo, um operário como o Lula, de uma família nordestina que migrou em busca de trabalho, tornou-se um líder nacional pelo seu esforço e talento. Nossa democracia ainda não oferece a indispensável igualdade de oportunidades, mas, o voto é nossa arma mais poderosa para promover a justiça social.

            Meus Colegas, Alberto Pasqualini deixou-nos muitos ensinamentos. Homem de Partido, considerando a vida pública um dever, foi sempre crítico implacável dos políticos oportunistas e fisiológicos que tanto infelicitaram e infelicitam nosso País.

No Brasil, observou Pasqualini, nós, infelizmente, ainda não saímos da era do primitivismo político, caracterizado pelas formações partidárias que atuam em função de pessoas e de interesses menores.

Um verdadeiro partido político, dizia ele, não pode ter apenas objetivos eleitorais, porque, na essência, é instrumento de mobilização social, de difusão de idéias e da educação do povo. A força de um verdadeiro partido político reside, sobretudo, na grandeza dos seus ideais, na sinceridade e na eficiência de sua ação. O partido, a seu ver, deveria ter um programa, uma orientação e uma ética em que o exercício do Governo fosse um ônus a ser arcado em benefício da coletividade.

            Acontece que, infelizmente, ainda estamos mergulhados no primitivismo político, constatado por Pasqualini, e dele não sairemos enquanto não tivermos partidos autênticos, enquanto o nosso eleitor continuar sendo levado a votar em pessoas e não em programas.

            Em 1988, com a programação da atual Constituição, alcançamos finalmente a liberdade política. Mas a verdade é que ainda temos muito a fazer na área política. O Brasil necessita hoje de uma grande reforma para que a democracia representativa seja aperfeiçoada. A verdade é que ainda estamos precisando de partidos verdadeiros, orgânicos, de clara definição ideológica. Sem eles, a democracia não se realiza. Temos também que encarar e resolver logo a questão da fidelidade partidária.

            É impossível termos um quadro de estabilidade e credibilidade política enquanto vigorar o “troca-troca” partidário.

            Ideólogo maior do trabalhismo, homem de partido, Alberto Pasqualini seria hoje uma outra voz a clamar contra essa atuação.

            Ainda no campo político, é preciso registrar que finalmente começa a aflorar entre nós a discussão sobre o financiamento público de campanhas eleitorais. Isso não se dava na época de Pasqualini, quando as campanhas eram modestas e não milionárias como as de agora. Se estivesse vivo hoje, certamente ele seria a favor do financiamento com dinheiro público, de modo a estabelecer a justiça nas campanhas para evitar a supremacia do poder econômico.

            Aliás, nas suas grandes campanhas eleitorais, ele fazia questão de dizer que, mais importante que sua própria eleição, era convencer o eleitorado da justeza de suas idéias, calcadas em dois pólos: justiça social e solidariedade.

            Um homem assim certamente ficaria enojado com os que se vê em nossos dias.

Nenhum Governo - afirmou em um de seus textos - pode ser dignamente exercido sem a liberdade de crítica honesta e independente. A imprensa A imprensa é, por assim dizer, o tribunal da opinião pública, onde as manifestações e os atos do poder público devem ser examinados, discutidos e julgados. A crítica, justa ou injusta, é uma contingência a que está sujeito o homem público. Admiti-la, acatá-la e compreender-lhe a necessidade deve fazer parte da sua própria educação política.

            Tinha Alberto Pasqualini verdadeira devoção à igualdade do cidadão e, por isso, lutou, sempre, para que as leis fossem rigorosamente cumpridas, sem distinção entre pobres e ricos, fracos e poderosos. Ético, exemplo de honestidade e independência, reconhecido até por seus adversários, deu - e as fez cumprir - ordens severas e enérgicas à Polícia, quando lá estava, para que reprimisse qualquer tipo de fraude, principalmente quando nela estivessem envolvidas autoridades ou agentes do poder político. Não admitia a imoralidade administrativa e tinha, como meta, varrê-la do Rio Grande do Sul.

            Alberto Pasqualini lutou contra os juros, considerados um direito inerente do dinheiro no regime capitalista, que visa o lucro.

A Nação - disse Pasqualini - só se libertará da servidão econômica no dia em que forem reduzidas as taxas de juros, porque, então, o trabalho valerá mais que o dinheiro, a iniciativa compensará mais do que a comodidade e, havendo mais trabalho e mais iniciativas, haverá maior produção e, conseqüentemente, maior riqueza e maior soma de bem-estar.

            O legado de Pasqualini é um tesouro farto e inesgotável, e a evolução da sociedade mostrará que, quanto mais o lermos, mais o ouvirmos, mais o lembrarmos, mais justos e mais irmãos seremos.

            O projeto político de Alberto Pasqualini consistia na criação de uma sociedade mais justa, assentada em programas de combate à pobreza, à desigualdade de renda e à falta de moradia. Temas que, infelizmente, ainda estão na nossa pauta de debates. Ao longo de sua vida, ele propôs inúmeras reformas que poderiam ter mudado a iníqua e arcaica estrutura social brasileira. Sempre que pôde, pronunciou-se pela valorização do trabalho do homem, nos campos ou nas cidades.

            Hoje, Sr. Presidente, está mais claro do que nunca que Alberto Pasqualini foi um homem muito à frente de seu tempo. Era atacado pela direita e pela esquerda, indistintamente. Ficou famosa a sua definição sobre a ideologia que praticava:

Se por socialismo - dizia Pasqualini - se entende a socialização dos meios de produção, não somos socialistas; se entender-se, simplesmente, uma crescente extensão da solidariedade social e uma crescente participação de todos nos benefícios da civilização e da cultura, então somos socialistas. Da mesma forma, se por capitalismo se entender individualismo, egoísmo e tradicionalismo, não somos capitalistas; se, porém, se entender uma função social que se exerce para o crescente progresso econômico e social da coletividade, então somos capitalistas.

            Ao reler os pronunciamentos de Alberto Pasqualini, um fato chamou-me a atenção. Embora o intelectual gaúcho tenha analisado com grande profundidade as mais variadas facetas da realidade brasileira de sua época, ele praticamente não trata de corrupção. Ele analisa, como eu já disse, inúmeros problemas que ainda agora se mantêm de pé. Como o da pobreza, por exemplo. Mas não se refere à corrupção.

            Isso seria impensável, hoje, para qualquer homem público que queira avaliar a vida brasileira. A corrupção ocupa o centro de toda e qualquer conversa política. Sem dúvida nenhuma, a maior urgência brasileira é a necessidade de que sejam restabelecidos os princípios éticos da sociedade. A verdade é que, nos últimos tempos, os três Poderes vêm sendo muito contestados porque as denúncias sobre corrupção se sucedem e nada é apurado a fundo.

            Tenho dito e repetido que precisamos deixar de ser o País da impunidade. Para isso, claro, é preciso mudar as leis, de modo que os corruptos e os corruptores sejam irmanados e mandados mesmo para a cadeia.

            Alberto Pasqualini sempre mostrou grande preocupação com o trato da coisa pública. Não aceitaria o que se vê todo dia. É preciso priorizar o combate aos crimes contra o patrimônio do Estado. Digo e repito que quem sonega imposto tem que ser penalizado. Alberto Pasqualini certamente concordaria comigo: temos que adotar atitudes concretas para eliminar a impunidade.

            Na verdade, o povo brasileiro é um grande povo. Não temos aqui minorias isoladas. Somos uma grande Nação multirracial. Aqui não tivemos o massacre de negros e índios, como ocorreu em outros países da América. Aqui houve uma verdadeira miscigenação. O povo brasileiro é alegre, trabalhador, de boa índole, não é de violência, nem de radicalização. A educação do nosso povo para o exercício da cidadania passa a ser uma das condições para a consolidação da democracia plena no País.

            Outro grande desafio brasileiro, sem sombra de dúvida, é o da distribuição de renda. O Brasil tem o maior desnível de renda entre cidadãos ricos e pobres do mundo. Também há um enorme desnível entre as regiões brasileiras. E isso está se aprofundando. É preciso mudar esse quadro. Mas, no momento, pouco se faz para mudar essa situação. O Congresso viveu esse drama, há pouco, quando discutimos, ao mesmo tempo, o teto máximo de salários do Governo e o salário mínimo.

            O Brasil é campeão em desigualdade social, fruto da má distribuição da renda: entre 175 países, está classificado em 79º lugar, atrás do Chile, Argentina, Uruguai, México, Cuba e Equador. Os 20% mais pobres do Brasil dividem entre si 2,5% da renda nacional; os 20% mais ricos concentram 63,4% da renda nacional.

            Para um homem como Alberto Pasqualini, que sempre propugnou pela igualdade, pela justiça social, esses números seriam inaceitáveis. Seguramente, como cristão que era, ele se revoltaria, se insurgiria, cobraria atitudes. Profetizando, ele escreveu, em 1944, que “o analfabetismo, a falta de ocupação, a vida difícil e a miséria poderão criar uma grave situação de insegurança, que evoluirá para uma criminalidade irreprimível”. Parece que ele estava antevendo a explosão da violência que ocorre hoje nas grandes e médias cidades do nosso País.

            Esse desafio há de ser enfrentado com uma efetiva política de redistribuição de renda, acompanhada de mecanismos de fortalecimento do mercado interno. Alberto Pasqualini sempre foi preocupado com a economia. Combatia de todos os modos a exploração do homem, mas achava que o País tinha de buscar a excelência da sua produção industrial ou agrícola. Isso se mantém inalterado. Necessitamos hoje de uma reforma tributária inspirada no princípio da justiça distributiva, da mesma forma que são imprescindíveis políticas de desenvolvimento da agricultura, inclusive da agroindústria, ausentes no cenário atual.

            De fato, é inconcebível que o Brasil não tire maior proveito de seu imenso território, de seu fantástico potencial hídrico e de sua população, beirando os 170 milhões. A priorização do desenvolvimento das atividades ligadas à agricultura é uma importante estratégia para a criação de empregos e, ao mesmo tempo, de combate à fome, mais um dos desafios que precisamos encarar com seriedade.

            Outro importante instrumento de justiça social, a reforma agrária precisa ser transformada de medida “compensatória” que é hoje, destinada a atender, de forma paternalista, a miserabilidade rural e a pressão dos conflitos dos sem-terra, em um projeto nacional de desenvolvimento que incorpore os pequenos e médios produtores nas tarefas de produção de alimentos e insumos, gerando empregos e ampliando o mercado consumidor interno, assim como as exportações. Eis aí outro desafio com que defrontou Pasqualini e com o qual deparamos ainda hoje. Entramos no século XXI precisando resolver um tema do século XIX.

            Lembro-me de mais um outro grande desafio que já empolgava a atenção de Alberto Pasqualini. Ele diz respeito ao próprio Estado, que hoje não funciona, ou funciona mal, porque o Governo não se preocupa com a máquina pública, senão para desmontá-la. A máquina pública brasileira tem que funcionar melhor.

            Hoje o Estado está quebrado porque não arrecada de maneira eficiente. Bancos não pagam impostos, clubes de futebol não pagam a Previdência. Um número é impressionante: no Brasil, quase um PIB por ano - R$825 bilhões - está fora de controle e incidência tributária.

            De acordo com os números da própria Previdência, esse quadro gerou uma renúncia fiscal da ordem de R$20 bilhões, em 1998. Empresas devem à Previdência mais de R$100 bilhões! A Procuradoria da Fazenda considera esses créditos incobráveis. Isso não acontece em nenhum outro lugar do mundo!

            Se lembrarmos que ainda estão fora do alcance da seguridade mais de 38,6 milhões de pessoas, exclusão esta decorrente da informalidade ou do desemprego, não podemos permitir ou tolerar o desrespeito ao sistema previdenciário nacional.

            Da mesma forma, o exercício do poder regulador das atividades públicas exercidas por particulares requer um Estado forte, sob pena de sujeição dessas atividades não ao interesse público, mas ao interesse privado. Para Pasqualini, a hodierna discussão sobre Estado mínimo ou máximo só teria sentido se existisse um Estado eficiente, confiável. Um Estado que inspirasse cidadania.

            Em 1994, Sr. Presidente, providenciamos, no Senado Federal, a publicação de quatro volumes, Alberto Pasqualini - Obra Social e Política, livro cujo objetivo imediato era resgatar do esquecimento as idéias do grande pensador e ideólogo sul-rio-grandense. A reunião de textos jornalísticos e de pronunciamentos políticos ou parlamentares de Pasqualini acabou por se transformar num importante documento sobre a vida pública e intelectual brasileira entre as décadas de 30 e 60. A recepção que a obra teve entre historiadores, pesquisadores, professores e estudantes foi surpreendente. Em pouco tempo, a primeira edição esgotou-se.

            Agora, em função do crescente interesse pelas idéias do maior teórico do trabalhismo brasileiro, o Senado publica os trabalhos mais significativos entre artigos em jornais, conferências, projetos e pareceres. Entre estes, destacam-se - é claro - os pronunciamentos em que Pasqualini discute os grandes temas nacionais, como as chamadas reformas de base, o valor do trabalho, a ética na vida pública, a educação, a inflação e a carência de moradias.

            Com esta publicação - distribuída hoje - e com esta Sessão Solene em homenagem a Alberto Pasqualini, tencionamos dar ao povo brasileiro a memória de uma lição de cidadania, de civilidade e de amor ao Brasil, que tive a honra e o privilégio de ter ouvido diretamente do mestre Pasqualini. Com esta homenagem, queremos dividir o que aprendemos nestes meus mais de 40 anos de vida pública, sempre repetindo, sempre reafirmando: irmãos e irmãs, lembremos a justiça social, a ética, o respeito ao nosso País e ao nosso povo! Lembremo-nos de Alberto Pasqualini!

            Muito obrigado. (Palmas.)


            Modelo15/20/248:01



Este texto não substitui o publicado no DSF de 26/09/2001 - Página 22665