Discurso durante a 167ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Necessidade de ajustamento jurídico dos conselhos de fiscalização das profissões liberais.

Autor
Carlos Bezerra (PMDB - Movimento Democrático Brasileiro/MT)
Nome completo: Carlos Gomes Bezerra
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
ADMINISTRAÇÃO PUBLICA. EXERCICIO PROFISSIONAL.:
  • Necessidade de ajustamento jurídico dos conselhos de fiscalização das profissões liberais.
Publicação
Publicação no DSF de 05/12/2001 - Página 30188
Assunto
Outros > ADMINISTRAÇÃO PUBLICA. EXERCICIO PROFISSIONAL.
Indexação
  • CRITICA, ATUAÇÃO, EXECUTIVO, EDIÇÃO, MEDIDA PROVISORIA (MPV), TENTATIVA, ALTERAÇÃO, NATUREZA JURIDICA, CONSELHO, REGULAMENTAÇÃO, EXERCICIO, PROFISSIONAL LIBERAL, REGISTRO, DECISÃO, SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (STF), ACOLHIMENTO, AÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE.
  • FUNDAMENTAÇÃO, AUSENCIA, POSSIBILIDADE, CARATER PRIVADO, EXERCICIO, SERVIÇO, FISCALIZAÇÃO, PROFISSÃO, OBJETO, REGULAMENTAÇÃO, LEGISLATIVO.
  • DEFESA, REJEIÇÃO, PROPOSTA, EMENDA CONSTITUCIONAL, ALTERAÇÃO, NATUREZA JURIDICA, CONSELHO, FISCALIZAÇÃO, EXERCICIO PROFISSIONAL, PROTEÇÃO, DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS, PRESERVAÇÃO, INTEGRIDADE, RESPEITO, CONSTITUIÇÃO FEDERAL.

  SENADO FEDERAL SF -

SECRETARIA-GERAL DA MESA

SUBSECRETARIA DE TAQUIGRAFIA 


            O SR. CARLOS BEZERRA (PMDB - MT) - Sr. Presidente, Srªs. e Srs. Senadores, faz já quase quatro anos que o Executivo promove, de forma reiterada, iniciativas no sentido de alterar a natureza jurídica dos conselhos de fiscalização das profissões liberais, buscando atribuir-lhes personalidade jurídica de direito privado.

            São iniciativas - cumpre-me dizê-lo - profundamente equivocadas, seja do ponto de vista político-social, seja do ponto de vista jurídico-institucional.

            As invectivas contra os conselhos de profissões regulamentadas tiveram início em outubro de 1997, quando da 35ª edição da Medida Provisória n° 1.549. Naquela oportunidade, o Chefe do Poder Executivo inseriu no mencionado Diploma Legal um novo dispositivo normativo, o qual, aliás, não guarda qualquer relação com o objeto central da MP. Tal dispositivo estava contido no artigo 58, que estabelecia, em seu caput, que:

      Os conselhos de fiscalização de profissões liberais, instituídos por lei, dotados de personalidade jurídica de direito privado e forma federativa, prestam atividades de serviço público.

            Como tem sido praxe do Poder Executivo, a edição seguinte da mesma MP n° 1.549 - a de n° 36 - trazia alteração no texto do mencionado artigo 58, persistindo, porém, no propósito - flagrantemente inconstitucional - de dar caráter privado aos conselhos de profissões regulamentadas. Nessa reedição, de 6 de novembro de 1997, o caput do artigo 58 passou a ter a seguinte redação:

      Os serviços de fiscalização de profissões regulamentadas serão exercidos em caráter privado, por delegação do poder público, mediante autorização legislativa.

            O dispositivo em epígrafe, bem como seus parágrafos, foram objeto de Ação Direta de Inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal. Enquanto a Adin tramitava, a MP n° 1.549 foi reeditada mais seis vezes, até ser convertida na Lei n° 9.649, de 28 de maio de 1998, a qual, apesar das sucessivas alterações introduzidas no texto do artigo 58, manteve seu sentido privatizante.

            Como não poderia deixar de ser, o Supremo Tribunal Federal, ao julgar o pedido de medida cautelar formulado na Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 1.717-6, em 22 de setembro de 1999, deferiu-a para suspender a eficácia do artigo 58 da Lei n° 9.649, entendendo não ser possível, “em face do ordenamento constitucional, mediante a interpretação conjugada dos artigos 5°, XIII; 22, XVI; 21, XXIV; 70, parágrafo único; 149 e 175 da Constituição Federal, a delegação, a uma entidade privada, de atividade típica de Estado, que abrange até poder de polícia, de tributar e de punir, no que tange ao exercício de atividades profissionais.”

            Aquela decisão do Supremo foi de incontestável justiça.

            Os serviços de fiscalização de profissões têm como fundamento constitucional o disposto no inciso XVI do artigo 22 da Constituição Federal, que relaciona como uma das competências privativas da União legislar sobre “... condições para o exercício de profissões.”

            Fixadas essas condições para o exercício das profissões, viabiliza-se o direito individual e coletivo consagrado no inciso XIII do artigo 5° ao “livre exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão,” desde que sejam “atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer”.

            Com base nesses parâmetros, a União prossegue a ação administrativa executando a inspeção do trabalho - competência sua, conforme prescreve o inciso XXIV do artigo 21 da Constituição.

            Da interpretação conjugada desses dispositivos constitucionais, exsurge cristalino que as atividades de fiscalização das profissões constituem atribuição estatal do ente federal, que, ao dispor sobre as condições para o exercício das profissões, as regulamenta e estabelece o meio pelo qual irá proceder à inspeção ou à fiscalização do trabalho desenvolvido pelas profissões regulamentadas pelo Poder Legislativo da União.

            Logo, os órgãos criados por lei federal com a finalidade de proceder ao encargo constitucional da União de fiscalizar o exercício das profissões têm inegável natureza pública, na medida em que exercem típica atividade estatal. Não há, portanto, possibilidade de que os serviços de fiscalização de profissões regulamentadas venham a ser exercidos em caráter privado, já que a atividade de fiscalização, como decorrência da competência constitucional da União para inspecionar o trabalho, conforma os órgãos que exercem esses serviços de fiscalização como autarquias.

            Aliás, a própria Suprema Corte, em decisão do ano de 1984, já expressava esse entendimento, mantido até o presente, em ementa com a seguinte redação:

      CONSELHOS FEDERAIS DE FISCALIZAÇÃO DE PROFISSIONAIS LIBERAIS.

      Autarquias corporativas mantidas por contribuições instituídas pela União e cobradas dos respectivos profissionais inscritos.

            Apesar da decisão, cuja ementa acabamos de mencionar, ter sido prolatada em 1984 - antes, portanto, da vigência da nova Carta Magna -, o atual texto constitucional mantém a mesma orientação, pois o artigo 149 estabelece que “compete exclusivamente à União instituir contribuições (...) de interesse das categorias profissionais ou econômicas, como instrumento de sua atuação nas respectivas áreas (...)”.

            Temos claro, portanto, o caráter tributário das contribuições cobradas pelos conselhos de fiscalização das profissões, caráter esse que deriva do fato de serem contribuições de interesse de categorias profissionais, assim contribuições corporativas, na conformidade do recém-mencionado artigo 149 da Constituição.

            É incontroverso, ademais, que esses conselhos estão sujeitos à fiscalização do Tribunal de Contas da União, pelo fato de terem natureza autárquica e pelo fato de que o patrimônio das autarquias é bem público e as contribuições que os conselhos recebem têm caráter tributário.

            O Professor Celso Antônio Bandeira de Mello, eminente constitucionalista, leciona que:

      Os membros das corporações não se associam livremente: pelo contrário, estão sujeitos à filiação compulsória. Seus objetivos são previamente estabelecidos por uma vontade estatal que condiciona as ulteriores manifestações volitivas dos agremiados.

      (...)

      Algumas autarquias têm substrato (...) corporativo. Dessa espécie são as corporações públicas profissionais (...) reguladoras e fiscalizadoras de atividades de classe como a Ordem dos Advogados, o Conselho Federal de Engenharia e Arquitetura, de Medicina, dos Economistas, etc.

            A atividade de fiscalização do exercício profissional constitui função intrinsecamente estatal, e da natureza estatal dessa função é que os agentes fiscalizadores extraem a sua autoridade. As entidades fiscalizadoras de exercício profissional exercem funções tipicamente públicas e, por essa razão, regem-se pelas regras de Direito Público.

            As atribuições conferidas aos conselhos de fiscalização de profissões regulamentadas de cobrarem e executarem as contribuições anuais devidas por seus associados, bem como taxas e emolumentos instituídos em lei, constituem atribuições típicas da administração pública. Desse poder conferido aos conselhos decorre que as contribuições (anuidades) devidas pelos profissionais inscritos são obrigatórias, sob pena de inscrição na dívida ativa e execução fiscal.

            Cumpre assinalar, outrossim, que os serviços de fiscalização de profissões desempenham relevante e prioritária função social na orientação, fiscalização e normatização do exercício profissional respectivo, objetivando a defesa da profissão e do usuário dos serviços. A fiscalização do exercício de profissões regulamentadas emerge, assim, como atividade com finalidade pública, eis que diz respeito à própria essência do interesse público. Ao contrário do interesse da corporação, os conselhos de fiscalização, investidos de poder de polícia, defendem os interesses públicos da sociedade e do cidadão usuário dos serviços profissionais.

            A inscrição do profissional nas hostes do conselho é obrigatória para o exercício da profissão. Ninguém pode exercer a advocacia, a medicina, a engenharia ou qualquer outra profissão regulamentada sem estar inscrito no conselho respectivo. O poder regulamentador dos conselhos se consubstancia por meio das normas interna corporis expedidas para regular a conduta ética e técnica do profissional, ficando sujeitos a elas todos os inscritos. Nessa medida, os conselhos têm capacidade legal de praticar atos administrativos, sobre matéria de sua competência.

            Além do mais, os conselhos possuem poder-dever processante e punitivo sobre os inscritos em seus quadros, cumprindo-lhes apurar as denúncias que chegam ao seu conhecimento, aplicando, após, o devido e regular processamento disciplinar, as penalidades previstas, inclusive de cassação do exercício profissional. A prática de atos administrativos pelos conselhos está, pois, sujeita à anulação pelas vias judiciais. Tais serviços, por serem de natureza pública, dão ensejo às ações correspondentes, inclusive mandado de segurança, conforme seja a prestação a exigir ou lesão a reparar judicialmente, valendo lembrar que o inciso LXIX da Constituição prevê a concessão de mandado de segurança “quando o responsável pela ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do poder público”.

            A delegação a um ente privado da atribuição de fiscalizar o exercício de profissões regulamentadas não encontra guarida na doutrina do mestre Hely Lopes Meirelles, que afirma não se admitir, no nosso sistema constitucional, a “delegação de atos de natureza política, como a delegação do poder de tributar”, esclarecendo ainda que “outra restrição à delegação é a atribuição conferida pela lei especificamente a determinado órgão ou agente”.

            Tratando-se de atividade constitucionalmente afeta à União, nos termos do inciso XXIV do artigo 21, a inspeção do trabalho, bem como o estabelecimento de condições para o exercício das profissões, conforme dispõe o inciso XVI do artigo 22, não é possível que a União venha a transferir essa atribuição para entes privados, mediante autorização legislativa. O texto constitucional vinculou o exercício da fiscalização das profissões ao órgão federal da administração pública, não sendo constitucionalmente possível a delegação dessa atribuição para órgãos privados.

            Outros dois elementos que revelam de maneira indesmentível a natureza autárquica dos conselhos de fiscalização de profissões são a imunidade tributária total de que gozam e a atribuição de competência à Justiça Federal para apreciação das controvérsias que os envolvam, porquanto somente tais entes possuem tais prerrogativas.

            O Ministro Sepúlveda Pertence, um homem cuja trajetória de vida está indissoluvelmente ligada às lutas democráticas travadas pela nacionalidade ao longo das últimas décadas, ao proferir seu voto na apreciação da medida liminar postulada nos autos da já mencionada Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 1.717-6, assim se pronunciou:

      A onda neoliberal, ou qual nome tenha, ainda não chegou ao ponto de privatizar o poder de polícia. E o que se discute aqui é uma das modalidades do poder de polícia mais sérios, porque envolve uma das liberdades fundamentais do cidadão, a do exercício profissional, acrescido, ademais, com poder tributário; e, como se não bastasse, com imunidade tributária.

      Tudo isso é atribuído por essa lei (a de n° 9.649/98) a entidades que se pretende sejam privadas: o poder de exercer esse serviço público de fiscalização profissional mediante delegação.

            De fato, toda a argumentação até aqui expendida demonstra, de forma cabal, a natureza intrinsecamente pública da atividade de fiscalização do exercício profissional.

            Nada obstante essa solar evidência, reconhecida pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, o Poder Executivo não se resignou com a derrota sofrida naquele foro. Em face do deferimento da Medida Cautelar que suspendeu a eficácia do artigo 58 da Lei n° 9.649, por conta de sua flagrante inconstitucionalidade, o Governo reagiu com a apresentação, por intermédio de seu vice-líder na Câmara dos Deputados, da Proposta de Emenda à Constituição n° 328 do corrente ano.

            Com sua proposição, pretende o ilustre Deputado Pedro Henry, vice-líder do Governo na egrégia Câmara Baixa, dar a seguinte redação ao inciso XIII do artigo 5° da Constituição Federal:

      ...é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais estabelecidas em lei, cujo cumprimento somente poderá ser objeto de fiscalização por entidade de direito privado constituída pelos profissionais interessados, legalmente autorizada e disciplinada.

            Na justificação da iniciativa, admite com franqueza o parlamentar que a subscreve que ela “tem o intuito de remover os obstáculos constitucionais que foram levantados contra a plena validade do comando legal” - referindo-se, evidentemente, ao malsinado artigo 58 da Lei n° 9.649.

            Pretende-se, portanto, mais uma vez, agora mediante alteração do inciso XIII do artigo 5° da Constituição, atribuir personalidade jurídica de direito privado aos conselhos de fiscalização de profissões regulamentadas.

            Parecem não compreender os articuladores do Palácio do Planalto que, para entregar a entes privados a fiscalização profissional, não bastará alterar um ou outro dispositivo constitucional. Para materializar esse maléfico propósito seria necessário alterar todo o nosso ordenamento constitucional.

            É que a pretendida nova redação do inciso XIII do artigo 5°, estabelecendo que o cumprimento das qualificações profissionais previstas em lei “somente poderá ser objeto de fiscalização por entidade de direito privado”, conflitaria com todos os demais dispositivos atinentes à matéria - notadamente o inciso XVI do artigo 22; o inciso XXIV do artigo 21; o parágrafo único do artigo 70; e os artigos 149 e 175 -, bem como ofenderia a própria lógica do ordenamento constitucional.

            A nova redação pretendida para o inciso XIII do artigo 5° não alteraria a competência privativa da União para legislar sobre “condições para o exercício de profissões” (inciso XVI do artigo 22); nem a competência da União para “organizar, manter e executar a inspeção do trabalho” (inciso XXIV do artigo 21); nem a obrigação dos conselhos profissionais de prestarem contas ao Tribunal de Contas da União (parágrafo único do artigo 70); nem a natureza tributária das contribuições recolhidas pelos conselhos (artigo 149).

            A alteração pretendida no artigo 5° seria conflitante com o ordenamento constitucional porque a atividade de fiscalização continuaria a conformar os serviços que a exercem como autarquias, em decorrência da competência constitucional da União para inspecionar o trabalho. A inscrição do profissional nas hostes do conselho respectivo continuaria a ser condição necessária para o exercício das profissões regulamentadas, e o pagamento das contribuições continuaria a ser compulsório.

            Os conselhos continuariam exercendo função social na orientação, fiscalização e normatização do exercício profissional, objetivando a defesa da profissão. Continuariam investidos de poder de polícia para defender os interesses públicos da sociedade e do cidadão usuário dos serviços profissionais. Continuariam a praticar atos administrativos, sujeitos a questionamento pela via do mandado de segurança. Continuariam gozando de imunidade tributária e as controvérsias em que estivessem envolvidos continuariam submetidas à competência da Justiça Federal, como previa, incongruentemente, o próprio artigo 58 da Lei n° 9.649.

            Em resumo, os conselhos de fiscalização de profissões regulamentadas continuariam a ter inegável natureza pública, na medida em que exercem típica atividade estatal, pois, como afirma Sepúlveda Pertence, ainda não se chegou ao ponto de “privatizar o poder de polícia”, principalmente no que se refere a essa liberdade fundamental do cidadão que é a liberdade de trabalho, e no que tange ao poder de tributar.

            Essa nova tentativa de atribuir personalidade jurídica de direito privado aos conselhos de fiscalização de profissões regulamentadas, consubstanciada na Proposta de Emenda à Constituição n° 328 de 2001, não pode, de forma alguma, prosperar.

            A natureza pública dessas entidades é intrínseca à atividade tipicamente estatal que exercem, é decorrência necessária do poder de polícia que detêm. É absolutamente incompatível com nosso ordenamento constitucional a delegação a uma entidade privada de atividade típica do Estado, que abrange até poder de polícia, de tributar e de punir, no que tange ao exercício de atividades profissionais.

            A rejeição da Proposta de Emenda à Constituição n° 328, com a conseqüente manutenção do atual status dos conselhos profissionais, é providência que se impõe para a adequada proteção dos direitos e liberdades fundamentais e para a preservação da integridade do nosso ordenamento constitucional.

            Era o que tinha a dizer.

            Muito obrigado.


            Modelo15/20/2412:33



Este texto não substitui o publicado no DSF de 05/12/2001 - Página 30188