Discurso durante a 61ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Percepção da ruptura com o modelo histórico de influência da elite econômica brasileira nas campanhas eleitorais e nas gestões do Poder Executivo.

Autor
Amir Lando (PMDB - Movimento Democrático Brasileiro/RO)
Nome completo: Amir Francisco Lando
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
ELEIÇÕES.:
  • Percepção da ruptura com o modelo histórico de influência da elite econômica brasileira nas campanhas eleitorais e nas gestões do Poder Executivo.
Publicação
Publicação no DSF de 16/05/2002 - Página 8176
Assunto
Outros > ELEIÇÕES.
Indexação
  • ANALISE, PODER, CLASSE SOCIAL, DOMINIO ECONOMICO, INFLUENCIA, CAMPANHA ELEITORAL, ELEIÇÃO, CANDIDATO, MANIPULAÇÃO, EXECUTIVO, LEGISLATIVO, JUDICIARIO, MANUTENÇÃO, PODER ECONOMICO.
  • COMENTARIO, FINANCIAMENTO, CAMPANHA ELEITORAL, ATUALIDADE, EXCESSO, CORRUPÇÃO, ESPECIFICAÇÃO, PRIVATIZAÇÃO, CONSELHO DE SEGURANÇA NACIONAL (CSN), COMPANHIA VALE DO RIO DOCE (CVRD), FAVORECIMENTO, CLASSE SOCIAL, DOMINIO ECONOMICO.
  • ANALISE, IMPORTANCIA, SENADO, COMPETENCIA, ESTRUTURAÇÃO, PODER, APREENSÃO, ATUAÇÃO, SUPLENTE, SENADOR, MANUTENÇÃO, PODER ECONOMICO, CLASSE SOCIAL.

O SR. AMIR LANDO (PMDB - RO) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, a história brasileira está a demonstrar que, durante o regime militar, estruturou-se uma relação simbiótica entre o Estado e o empresariado nacional. Na verdade, o Estado cuidou de criar uma infra-estrutura básica (estradas, telecomunicações, energia) e de instalar a produção de matérias-primas estratégicas (a petroquímica, principalmente) para o capital produtivo privado nacional. Os setores que já se encontravam implantados (a siderurgia, por exemplo) foram inseridos no mesmo modelo. Saíram os militares, e o que se viu, logo depois, foi a tomada do controle total das estatais pelo empresariado, que privatizou, definitivamente, o Estado. Para tanto, não precisaram adquirir as Estatais, porque já detinham o poder de determinar preços e quantidades. Foi assim, por exemplo, com os produtos chamados “cipados”, que nada mais era do que um artifício de controle de preços, segundo os interesses do capital.

Esse modelo não podia prescindir, também, de um Congresso “engajado”, “articulado”, para possibilitar os instrumentos legais necessários para sua manutenção e reprodução. Essa “bancada estatista” passou a dominar, então, e ainda mais, as instituições de fomento (Sudene, Sudam, Sudeco e outras), mas os verdadeiros beneficiários dos recursos subsidiados eram, exatamente, os empresários nacionais, principalmente aqueles sediados nos grandes centros. A Sudene, por exemplo, foi criada muito antes (1960) para fortalecer o Nordeste, tendo como um dos vetores principais a descentralização industrial [O Grupo de Trabalho para o Desenvolvimento do Nordeste, o GTDA, comandado pelo Prof. Celso Furtado, que formulou a concepção daquela Instituição, pressupunha a criação de uma nova elite (burguesia) local]. Essa nova elite, de cunho mais industrial e urbano, contrapor-se-ia à local, mais conservadora, ligada, principalmente, à produção canavieira. Mas, o que se viu, foi um efeito contrário: quem mais usufruiu das benesses foi, exatamente, o empresariado paulista, aumentando, ainda mais, a concentração regional da renda. Os chamados “coronéis” locais, que deveriam ser substituídos pelos novos “burgueses”, na verdade se fortaleceram politicamente e se consolidaram como representantes regionais no Congresso. Isso aconteceu, também, em outras regiões. Isto é, não se formou uma nova burguesia local, ao contrário, se consolidou a antiga, embora com novas relações e agrupadas em partidos ditos “liberais”, que, na verdade, deveriam ser “conservadores”, “patrimonialistas” ou “coronelistas”.

Esses “coronéis”, ou “caciques”, usufruíam, de um lado, diretamente dos recursos das instituições estatais de fomento, através de seus próprios negócios. De outro, do empresariado que tinha interesse em manter o modelo. O elo de ligação entre um e outro sempre foram o financiamento de campanha e as indicações para cargos nas estatais, num pseudocontrole, que era exercido, na verdade, pelo empresariado que, ali, instalou as suas plantas, atraídos pelos benefícios fiscais e creditícios.

No Executivo, a tarefa era menos difícil. Bastava que se colocasse, também em troca de generosas doações para campanha nas eleições majoritárias, pessoas totalmente identificadas com o modelo. A ordem era gerenciar o Estado, para usufruto do empresariado, em especial o nacional.

No Judiciário, também não se ergueram grandes barreiras para a montagem e a manutenção do modelo, pelos critérios de indicação dos magistrados, já desde então ligados, umbilicalmente, ao Executivo. Se o Executivo se movia pelas rédeas dos verdadeiros “donos do poder”, e se era ele quem indicava os magistrados, principalmente nos maiores escalões, também não é difícil estabelecer-se, aí, um silogismo.

Mas, no início da década de 90, começa a se esboçar uma ruptura desse mesmo modelo. E ela começa pelo Executivo. Uma nova elite iniciava, ali, a “tomar o poder”. Começava a sair de cena o empresário nacional (o capital produtivo industrial nacional), para dar lugar ao capital financeiro (nacional e internacional). Teria de haver, então, uma mudança de perfil nos chamados “gestores”. Nos cargos-chaves de escalões inferiores, a tarefa não seria das mais árduas. Mas, teria de haver uma ruptura radical no perfil do Presidente da República, porque ele seria a “estampa” dos “novos tempos”. E, aí, a mídia jogou papel dos mais significativos. O livro Notícias do Planalto, de Mário Sérgio Conti, que relata como se construiu a candidatura “collorida”, é, talvez, o melhor trabalho de análise do poder da mídia. O novo modelo não admitia mais os nomes já “consagrados”, ligados à estrutura de poder anterior, mesmo que eles se pautassem pela ética na política. Daí, a necessidade e a construção de um “novo”. Um Collor! 

Os empresários continuaram a financiar campanhas. Mas, é público e notório o engajamento maior dos bancos no rol dos maiores financiadores. Começam a aparecer, também, alguns nomes, antes desconhecidos, e que começam a participar, como tesoureiros, dos chamados “fundos de campanha”. Mais do que isso: não é coincidência, também, que tais financiadores passaram a comprar, igualmente, muito mais espaços na mídia. O objetivo era o mesmo.

A velha elite (ainda majoritária no Legislativo, diretamente ou através de representantes “controlados”) tentou manter o seu quinhão no Executivo. Para isso, procurou se adaptar aos novos moldes. Cedeu, inclusive, à corrupção (a relação de quem deu recursos para o Sr. Paulo César Farias, o PC, no relatório da CPMI do Collor é ilustrativa, incluindo alguns nomes, até então, “insuspeitos”). A nova elite só não contava, entretanto, com o “amadorismo” do miniesquema que se montou ao redor do então Presidente Collor (estrilavam vantagens por pagarem “as contas da Madame”, por exemplo). O Collor tornou-se, daí, um perigo, tanto para o esquema montado pela elite anterior, como pela nova. Tal amadorismo poderia colocar, a nu, os “esquemas” já estruturados nos diferentes feudos do poder. Ele tinha de ser, portanto, derrubado. E o foi, com a ajuda das mesmas forças que o catapultaram em direção ao poder. E com o auxílio da mesma mídia. Caberia ao Congresso viabilizar, segundo os ditames constitucionais, a “expulsão” do Presidente. E ele o fez. Caberia à população emprestar legitimidade ao ato. E a mídia cuidou de providenciá-lo. 

Ocorre que as sementes do novo modelo já haviam sido lançadas. O Programa Nacional de Desestatização, por exemplo, foi um dos primeiros atos do governo que se despedia. Ali se iniciou, efetivamente, o desmonte do Estado Brasileiro, ou a sua transferência para outras mãos, as da nova elite de poder.

Mas, no meio do caminho, tinha um Itamar. Ele parecia ser uma espécie de ator errado, na peça errada, no teatro certo. Suas idéias nacionalistas e o seu discurso em favor do Estado soberano não se adaptava aos novos comandos que se instalavam na ante-sala do poder. A “saúde” do Sr. Fernando Collor jamais poderia permitir antever a importância do vice. E, no caso, ele era a estampa mais que fiel do que já se chamava, então, de “jurássico”, “ultrapassado”. Quem sabe, uma deferência apaziguadora à elite anterior. São conhecidas as pressões sobre o Presidente Itamar Franco para manter o programa de privatizações. Quem não se lembra do discurso, sob o badalo da mídia, sobre o “perigo” da chamada “Fujimorização”, não deixando de levantar, inclusive, alguns nomes, que poderiam substituir o Presidente, caso ele não seguisse as “cartilhas”, cuja lição maior era, exatamente, a privatização das estatais. Pois bem, o Presidente Itamar, apesar da sua postura nacionalista e de defesa do Estado, deu seguimento aos leilões (fertilizantes, CSN, restante da petroquímica). Mas, pelo menos, já não havia (tanto) espaço para corrupção no Executivo. Então, todos rumo ao Legislativo. No orçamento. Não mais o Ministro. O Relator. Não mais o segundo escalão do Executivo. O Assessor Legislativo. Veio a CPMI do Orçamento e lá estavam, listados, os mesmos personagens da CPMI do Collor. Veio o pedido da CPMI dos Corruptores. E eles cuidaram de barrar, no Congresso, a sua instalação. E o Congresso, evidentemente, respondeu a contento.

Nos estertores do Governo Itamar, a nova elite não poderia correr o risco de um novo erro. Haveria de ocupar, já ali, todos os flancos, ainda no Executivo. E foi o que fizeram. Foram colocados, em todos os postos-chaves, nomes perfeitamente sintonizados com o novo modelo. Todos com o mesmo perfil, com as mesmas idéias, ejetados das cadeiras das mesmas universidades, de pensamento único. Esse foi, inclusive, o resultado de um investimento que se maturava desde muito antes. As nossas “melhores cabeças” foram moldadas nas mais famosas universidades do primeiro mundo, para que pudessem aplicar, aqui e em outros países periféricos, conhecimentos “de consenso” que prepararam a “era da globalização”. Mas, o que não se poderia, mesmo, é repetir qualquer erro na escolha do “maestro”. E, aí, surgiu o Ministro da Fazenda, depois Presidente Fernando Henrique Cardoso. Molde, figurino e modelo perfeitos.

Quando Fernando Henrique tomou posse, já haviam sido privatizadas a produção de fertilizantes, a petroquímica e a siderurgia. Já era visível, plenamente, que se tratava de um novo modelo de apropriação do patrimônio público, agora mais contundente. Na verdade, não estava havendo, no fundo, uma privatização. O Estado, como se disse anteriormente, já era privatizado. Só que indiretamente. Tratava-se de um patrimônio público posto a serviço de uma minoria, que se mantinha como tal financiando campanhas e mantendo, sob rédeas, seus representantes. No novo modelo, os novos donos tomam posse, efetivamente, desse patrimônio.

Era de se esperar que a velha elite se colocasse contra esse novo modelo. Não foi o que aconteceu, pelo menos num primeiro momento. Alguns (poucos) aproveitaram-se das rebarbas. Outros, decidiram adaptar-se às novas regras. Outros, ainda, sucumbiram. Mas, na verdade, não houve uma voz de peso contra a nova realidade que se impunha. O normal parecia ser, por exemplo, que o produtor de bens que se utilizava de aços finos (e que sobre essa matéria-prima exercia controle) levantasse a voz contra a sua entrega a monopólios ou a oligopólios privados que passassem a impor as suas próprias decisões. Ao contrário, o empresariado nacional colocou-se, então, favorável às privatizações. É bem verdade que o modelo anterior tinha lhe causado uma certa acomodação, letal nos novos tempos de globalização. Ele, então, pode ter imaginado acomodar-se no novo modelo e, dele, tirar algum proveito. 

Vendidos os três segmentos, já era claro, também, que os leilões foram antecedidos de artimanhas, para que se cumprissem scripts também adredemente definidos. Esses desvios foram analisados no Relatório da CPMI das Privatizações, em 1993. Ali se colocou, por exemplo, que as informações utilizadas para a montagem dos indicadores para o modelo de avaliação adotado (o de fluxo de caixa descontado) foram definidas com o intuito claro de subestimar os preços mínimos para os leilões. Mas, o que mais chamou a atenção, nas investigações, foi, exatamente, a manipulação de resultados dos leilões. Havia uma verdadeira promiscuidade entre vendedores, avaliadores e promitentes compradores, que tornava a batida do martelo em ato formal para satisfação pública de decisões tomadas intramuros.

A CPMI poderia, portanto, pôr em risco, mais uma vez, o desembarque definitivo da nova elite. Por isso, ela tinha de ser, também, sufocada. E o foi. Mais uma vez, o Congresso foi utilizado para servir aos interesses dos novos mandarins, sob o manto, desta vez, do silêncio comprometedor da mídia.

Neste sentido, foi a mesma nova elite que alavancou o Collor, e que, depois, o derrubou, a responsável por abortar a CPMI das Privatizações. E, mais uma vez, contraditoriamente, foram os representantes da velha elite no Congresso que propiciaram a pá de cal. Não foi possível, por exemplo, investigar a verdadeira história da privatização da Companhia Siderúrgica Nacional, a CSN. Mas, a CPMI a considerou como emblemática. Não havia, ali, qualquer exercício de premonição. Os fatos falavam por si. As articulações se deram no interior do Banco Graphus, que contratou, logo depois, o Diretor do BNDES responsável pela área de privatizações (Sr. Sérgio Zendron) como Diretor de Investimentos. O Presidente da Estatal (Procópio Lima Neto), responsável pela venda, demitiu-se para participar, nas articulações, como representante do grupo comprador. Ato contínuo ao leilão, foi reconduzido para o mesmo cargo. O responsável pelo Clube de Investimentos foi nomeado Diretor, depois Presidente. Os empregados, com assento na Diretoria, foram forçados a trocar a direção de seu sindicato, no sentido de um discurso “mais engajado aos interesses privativistas”. Os novos compradores se depararam com recursos em caixa desconsiderados no modelo de avaliação, entre outros fatos.

Sem investigações mais profundas, as privatizações prosseguiram. E os fatos consignados no Relatório da CPMI se reproduziram. Com maior intensidade. As gravações das artimanhas para a privatização das “teles” reforçam a tese da promiscuidade. Tudo “no limite da irresponsabilidade”. O Executivo manipulou os fundos de pensão para que os leilões se tornassem “cartas marcadas”. E quem ganhou os leilões? Consórcios de multinacionais, bancos brasileiros e empresas que, mais uma vez, se adaptaram aos novos tempos, embora, muitas vezes, em ramos de atividades que nada tinham a ver com as novas atividades (por exemplo, nas telecomunicações, o ingresso de empreiteiras da construção pesada, fabricantes de fechaduras, entre outros).

Os fatos indicaram, depois, que essa mesma promiscuidade aconteceu no leilão da Companhia Vale do Rio Doce. Aliás, esse parece ser o caso mais emblemático da ruptura entre a nova e a velha elite. Tudo levava a crer que o empresário Sr. Antonio Ermírio de Moraes seria, enfim, o ganhador no leilão da Vale. Os três maiores fundos de pensão (o Previ, do Banco do Brasil; o Funcef, da Caixa Econômica Federal, e a Petros, da Petrobrás) formavam, com ele, o mesmo consórcio. No último momento, o Executivo, mais uma vez, manipulou os tais fundos no sentido de outro consórcio, articulado pelo Sr. Benjamin Steinbruch, o mesmo que comandou a compra da CSN, que, enfim, acabou por adquirir a Vale. Conhecidos os casos da CSN e das Teles, como não imaginar que houve, também no caso da Vale, artimanhas para que os resultados fossem os definidos com antecedência? Os fatos, mais uma vez, iluminaram a história, e aí está o Sr. Ricardo Sérgio como o seu grande protagonista. E, também mais uma vez, a questão dos financiamentos de campanhas. Tivesse a CPMI das Privatizações cumprido, integralmente, os objetivos propostos, investigando, por exemplo, com profundidade, o caso da CSN, era de se esperar que o caso das “teles” e da Vale teriam tomado outros rumos. Ou, no mínimo, melhores cautelas.

São, portanto, assuntos que guardam uma lógica: ruptura na elite de poder, privatizações, financiamento de campanha e corrupção. Tudo isso cabe no caso da Vale, agora estampado nos jornais, mas, desde muito tempo, motivo de reiterados discursos. Basta que se consulte os Anais do Senado Federal para se observar que a Veja desta semana não traz qualquer “furo de reportagem”. Tudo já havia sido dito por mim. Pouco foi ouvido. Quantas vezes repeti, da tribuna, que as privatizações são o mote para a mudança do perfil do poder, no Brasil. E que elas são o novo (e maiúsculo) foco de corrupção (depois do desmantelamento dos esquemas Collor e do Orçamento). Que as empresas estatais foram transferidas a preços vis. Que os leilões eram, quase sempre, jogos de cartas marcadas. Que nenhum dos objetivos do PND foram, efetivamente, cumpridos, como a geração de empregos (o desemprego, depois dos leilões, nunca atingiu patamares tão elevados), a diminuição da dívida pública (cujo montante mais que decuplicou, nos últimos 8 anos), a liberação do Estado de atividades produtivas para se incumbir, mais, do chamado “social” (as cidades se transformaram, cada vez mais, em palcos de uma guerra civil não declarada, dados os níveis de criminalidade). E que a corrupção mantém estreita correlação com o financiamento de campanhas. Ora, já no Relatório da CPMI do PC, dedicou-se um capítulo inteiro a este último tema, como “fator que propicia o surgimento de esquemas de corrupção”. Daí, a proposta do financiamento público de campanhas eleitorais, não como aumento de gastos públicos, ao contrário, tendo em vista ele se colocar de encontro com um dos mais importantes focos de corrupção.

Mas, por que tudo isso está vindo à tona exatamente agora? É que o tal modelo está entrando em uma nova fase. No mesmo Relatório da CPMI das Privatizações, chamou-se a atenção para a possibilidade dos adquirentes das estatais usufruírem, tanto das atividades em si, como das benesses que elas ensejavam (financiamentos altamente convidativos, por exemplo) e, em um determinado momento, o dos rendimentos decrescentes, ou exigissem maiores facilidades, ou tentassem devolver, ao Estado, algo parecido com sucatas. Não seria a primeira vez na história. O patrimônio das estatais vendidas, segundo os respectivos últimos balanços, somava US$38,3 bilhões. Os benefícios para os compradores (nos financiamentos antes e depois das privatizações, nas isenções de imposto de renda pelo “ágio” e por dívidas anteriores e nas transações com moedas podres), totalizaram US$45,2 bilhões. Portanto, o “noivo”, além de não pagar pela festa, de receber a casa mobiliada e com os armários cheios, ganhou, do “pai da noiva”, um “dote” de US$17,9 bilhões. Mais recentemente, vem a notícia de que o “conserto das privatizações” ainda está exigindo mais algo como US$9 bilhões, US$3,1 bilhões dos quais já liberados. Ora, o Governo alegava, no início, que venderia as estatais porque não tinha recursos para investir e porque teve de deslocar US$21 bilhões para socorrer essas empresas, nos dez anos que antecederam ao Programa. Ocorre que, deste total, US$12 bilhões foram para a siderurgia, grande parte transferidos para os consumidores de aço, pelo controle de preços, e o restante foi para a Rede Ferroviária Federal, para subsidiar o transporte barato nos subúrbios e para minimizar o custo de transporte de cargas. Todas as outras empresas eram sadias e davam lucros. Por que receberam, então, tamanhas quantias, depois de privatizadas?

Mas, no próximo passo, para manter o poder da nova elite, é necessário que se mantenha um “gerente” atrelado à nova ordem. É interessante observar que o empresariado nacional, que legitimou as privatizações, deu conta, tardiamente, que ficou de fora, que foi otário. E, que as outras fontes “secaram”. O orçamento já não propicia vôo mais arrojado e é totalmente controlado pelo Executivo, já adaptado ao novo modelo. Agora, esse mesmo empresariado (se sobreviveu), tem que adquirir suas matérias-primas a preços de mercado; não é mais ele quem recebe as benesses dos financiamentos oficiais, entre outras questões.

Percebeu-se, então, que não é somente o discurso do Partido dos Trabalhadores que ficou mais ligth. O empresariado, na sua porção mais nacionalista, também ficou mais crítico, fato plenamente percebido pelos marqueteiros da “nova oposição”.

A nova elite sente que, mais uma vez, tem de investir em um candidato que se molde à manutenção do modelo, em uma nova fase. Quem sabe se nem mesmo o Fernando Henrique Cardoso, se fosse possível uma re-reeleição, se adequasse hoje ao novo molde. E, tudo indica, nenhum dos pré-candidatos já postos. Então, ou eles alteram seus discursos segundo a tal “cartilha”, ou serão intensificadas as pressões para que sejam substituídos.

Vale dizer que os personagens que têm aparecido mais amiúde na mídia como os “novos donos do poder”, não são, na verdade, os atores principais. São co-protagonistas e, em muitos casos, “dublês” ou, até, “gangsters”. Os verdadeiros mandantes são outros. Para estes, o novo Presidente deve ser um mero “decorador de textos”, de preferência de boa aparência e neurônios suficientes para bem “representar”. Este seria o ungido. Poderia ser, até, um poste, como já disse alguém. Tudo leva a indicar que, nem mesmo o Senador José Serra, o mais importante pré-candidato da chamada “ala governista” tem, juízos de valor à parte, esse perfil. Ele tem ligações históricas com o empresariado nacional (paulista), sempre defendeu teses consideradas mais “desenvolvimentistas”, entre outros “defeitos”, pelo menos para a elite de plantão. Será que é esse o perfil mais adequado para a equipe que hoje comanda a economia brasileira, para os bancos de investimento que mais adquiriram as estatais e para os organismos financeiros internacionais?

Não se deve esquecer, também, de outros fatos que ocorreram ultimamente e que guardam significativa correlação com essas teses. Pelo menos até as próximas eleições, o Executivo já estava perfeitamente “afinado”. Nunca se viu atores tão ajustados ao texto e à produção do espetáculo. No Legislativo, nem tanto, embora algumas mudanças significativas.

É evidente que não foram, nem o painel, nem o tal ranário, que derrubaram, respectivamente, os Senadores Antonio Carlos Magalhães e Jader Barbalho. Isso, também, como diria o folclórico personagem do Big Brother, “faz parte”. Há de se mudar o perfil do Congresso. Pelo voto, é pouco provável, pelo menos no curto prazo. Nada se erradicam raízes são profundas. Então, que se “podem” os caules. O que, parece, não ter sido levado em conta o suficiente foi o fato de que a “poda”, na maioria das vezes, robustece a planta.

Como no caso do empresariado nacional genuinamente produtivo, os “caciques” do Congresso deram-se conta, também tardiamente, de que foram inoculados pelo veneno que eles mesmos produziram. Deram suporte à venda das estatais e foram alijados do processo. Em muitos casos, como sobreviver, politicamente, sem a Sudene, a Sudam, a Eletrobrás, a Vale do Rio Doce, entre outras? É aí que se contextualiza a abortada candidatura Roseana Sarney. Foi a tentativa de demonstração do tipo “ainda estamos vivos”. Basta perceber quem estava, lado a lado, com ela. Mas, quem torpedeou a candidatura Roseana? Teria sido, como aventado em alguns jornais, um “Esquema-Serra”? Definitivamente, não. Ao contrário, foi o mesmo “esquema” que levantou e derrubou o Collor, que abortou as CPMIs das Privatizações e dos Corruptores, que comprou votos para a reeleição, entre outros fatos, que, agora, também dispara mísseis em direção ao pré-candidato tucano. É que, tudo indica, esse “esquema” ainda não possui o seu melhor “poste”. Já se conseguiu atingir algumas cabeças da elite anterior (Antonio Carlos Magalhães, Jader Barbalho e José Sarney, por exemplo), mas não moldaram, ainda, a sua própria máscara.

Os três “caciques” citados são, todos, do Senado. Também não é à toa. É que, no Senado, estão-se dando as maiores transformações, em termos de ruptura, principalmente quando se percebe que o papel constitucional desta Casa é fundamental na estrutura de poder. Pelas suas atribuições constitucionais, o Senado, dependendo do ponto de vista, é o braço executivo do Legislativo, ou o braço Legislativo do Executivo.

            Até o início da década de 90 (também não é coincidência), os financiadores de campanha disponibilizavam seus recursos para candidatos com reconhecida densidade eleitoral. Depois, mantinham as rédeas. Hoje, algo mudou. Esses mesmos financiadores, que não seriam eleitos, colocam-se como suplentes dos chamados “bons de voto”. Os oito anos do Senado facilitam a estratégia. Ato contínuo às eleições, descarregam o seu “prestígio” no remanejamento do eleito para outros postos (Ministério, Prefeituras de capitais ou de grandes centros urbanos, direções de estatais remanescentes, entre outros). Herdam um (muitas vezes longo) mandato, sem um único voto. Empossados, procuram ocupar os melhores espaços em termos de poder (que já foi um dia, a Comissão de Constituição e Justiça, e que, agora, se concentra na Comissão de Assuntos Econômicos) e na manipulação de temas “estratégicos” (rolagens de dívidas, patentes, transgênicos, quebras de monopólios, Sivam etc). Nunca o Senado Federal teve, num curto período de tempo, tantos suplentes em exercício e, mais do que isso, à frente de postos-chaves e de assuntos (projetos, relatorias) de vital importância para o novo desenho de poder.

Na próxima sessão legislativa, o Senado deverá ser palco de discussões das mais importantes. É que aqui se sentirá, de fato, a divisão de posturas, a ruptura. No Executivo, três hipóteses, pelo menos: ou um governo dito de oposição, com a participação de parte do empresariado nacional, ou um governo crítico (mas nem tanto) ao novo modelo, mas que não mudará, radicalmente, a sua lógica, ou um terceiro, perfeitamente sintonizado com a ordem vigente. Entretanto, qualquer hipótese que se viabilize no Executivo, terá de conviver com um mesmo cenário no Congresso, particularmente no Senado. A “convivência” entre o velho e o novo. É que os “caciques” voltarão, disso não há qualquer dúvida. E, a tal “poda” pode ter lhes fortificado.

De que lado ficar, neste debate? Do “cacique” ou do “gangster”? É bem verdade que não se trata do melhor dos mundos, mas, por linhas tortas, a história já escreveu a resposta. Por interesses e objetivos radicalmente opostos, a defesa do Estado une opositores e “caciques”. Os primeiros, para reconstruir a soberania do Estado Nacional. Os últimos, para dele reconquistar a sombra. Tudo indica que a nova elite ainda será minoria no Senado, a partir do próximo ano. Os opositores não terão força (nem número) para reconstruir o Estado. Eles vão ter de contar com o número (e a força) dos “caciques”. E estes voltarão “escaldados” sobre propostas que antes mostravam-se “tentadoras”.

Portanto, no Senado Federal, sobressair-se-á aquele que conseguir articular os discursos de opositores e “caciques” no sentido da reconstrução do Estado brasileiro, para viabilizar um plano de desenvolvimento verdadeiramente nacional, que inclua a soberania, a democracia e a cidadania. Quem conseguir essa façanha será, naturalmente, o líder (de fato) da maioria e deverá conduzir, na prática, o debate sobre temas dos mais relevantes para o futuro (político, econômico e social) do País, como privatizações, financiamento de campanhas, papel do Congresso Nacional, orçamento público, entre outros. Quem o fizer, deverá desempenhar, com certeza, papel político dos mais fundamentais nas eleições de 2006. Nem que seja para colocar luz no tal “poste”.

Era o que eu tinha a dizer.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 16/05/2002 - Página 8176