Discurso durante a 86ª Sessão Não Deliberativa, no Senado Federal

Denúncia de torturas no Brasil.

Autor
Íris de Araújo (PMDB - Movimento Democrático Brasileiro/GO)
Nome completo: Íris de Araújo Rezende Machado
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA SOCIAL. DIREITOS HUMANOS.:
  • Denúncia de torturas no Brasil.
Aparteantes
João Batista Motta, Pedro Simon.
Publicação
Publicação no DSF de 28/06/2003 - Página 16561
Assunto
Outros > POLITICA SOCIAL. DIREITOS HUMANOS.
Indexação
  • COMENTARIO, GRAVIDADE, SITUAÇÃO, SOCIEDADE, BRASIL, AUMENTO, NUMERO, PESSOAS, VITIMA, DESIGUALDADE SOCIAL, FOME, QUESTIONAMENTO, NECESSIDADE, GARANTIA, IGUALDADE, DIREITOS, MAIORIA, POPULAÇÃO, EFETIVAÇÃO, DEMOCRACIA, PAIS.
  • LEITURA, COMENTARIO, ARTIGO DE IMPRENSA, JORNAL, FOLHA DE S.PAULO, ESTADO DE SÃO PAULO (SP), APRESENTAÇÃO, RELATORIO, ORGANISMO INTERNACIONAL, ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU), REGISTRO, CONTINUAÇÃO, EXECUÇÃO, TORTURA, MUNDO.

A SRª IRIS DE ARAÚJO (PMDB - GO. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão da oradora.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, há dias em que nós, seres humanos, acordamos e refletimos sobre vários assuntos. Hoje, fiquei pensando e senti, Senador Pedro Simon, V. Exª que me conhece bem, um desejo muito grande de cometer, aqui, neste plenário, uma grande imprudência. Se eu pudesse, tiraria este microfone do pedestal e faria o que eu comumente faço, como política, no meu Estado, nas praças públicas: desço do palanque e falo com as pessoas durante o meu discurso. Isso é impossível, porque nós temos aqui - é lógico - que nos submeter a determinadas regras que nos impedem, muitas vezes, de nos colocarmos como pessoas mais simples e natural que somos.

Ao ouvir as palavras dos dois oradores que me antecederam - e eu confesso, Senador Luiz Otávio, que tive que me ausentar durante o seu pronunciamento, portanto, refiro-me aos pronunciamentos dos Senadores Sibá Machado e Eduardo Suplicy -, um tratando da Amazônia, e estamos sempre muito preocupados com o que pode acontecer com essa noiva tão desejada pelo mundo todo, e o outro discorrendo com muita categoria e muita paixão sobre um projeto que ele gostaria de ver estruturado lá em seu Parque do Ibirapuera, em São Paulo, e ao observar este Plenário, perguntei-me mais uma vez aquilo que venho fazendo desde o café da manhã: será que vivemos realmente numa democracia?

Eu venho de um passado de lutas, vivi e sofri na pele as situações difíceis por que passou este País, aliás, todos nós sofremos quando foi instalada uma ditadura que torturou, matou e cerceou o direito dos cidadãos. Hoje, pensamos que vivemos em uma democracia, mas eu me pergunto, Senadores Pedro Simon, Luiz Otávio, João Batista Motta e outros que devem estar nos assistindo neste momento, será que podemos chamar de democracia um País em que os cidadãos, muitas vezes, podem até comer três refeições ao dia, o que significa ir três vezes ao dia à panela comer o arroz que foi feito de manhã? Isso não tem significado nenhum. Sou assistente social pela prática, pelo trabalho, e conheço muito de perto o que se passa nas casas de pessoas muito pobres. Elas cozinham o seu arroz pela manhã e passam o dia inteiro comendo, tanto elas como as crianças, do mesmo arroz até à noite. Será que podemos dizer que vivemos em uma democracia quando as pessoas mais velhas têm que enfrentar filas para receber a sua minguada aposentadoria? Será que podemos chamar a isso de democracia? Podemos chamar de democracia um país em que as crianças, que deveriam estar dentro das escolas, estão vagando pelas ruas, pedindo esmolas nos sinaleiros? E, hoje, vivemos uma situação mais vergonhosa ainda, pois não são apenas crianças que estão pedindo esmolas nos sinaleiros, mas pessoas de cabelos brancos.

Isso é democracia, Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores?

Quando passamos pelas periferias das cidades, vemos - e até me emociono ao falar disso - casas feitas de papelão, cobertas de plástico. Será que podemos chamar isso de democracia? Não, nós não vivemos realmente numa democracia.

Da imprensa de hoje, retirei um trecho da Folha de S.Paulo para ler aqui:

A tortura continua sendo uma prática comum em todo o mundo e tem assumido novas formas, conclui o relatório da Anistia Internacional (AI) divulgado ontem, Dia Internacional de Apoio às Vítimas de Tortura. A entidade de direitos humanos afirma que recebeu denúncias e tortura vinda de 106 países em 2002 - a ONU tem 191 países-membros.

(...)

A entidade também afirma que o recente avanço na legislação contra a tortura em vários países do mundo não tem evitado a prática.

O relatório, infelizmente, cita o Peru e o Brasil como exemplos de países onde isso ocorre.

Eu tive ocasião de denunciar ontem aqui, usando o espaço destinado à Liderança do Partido, cedido por delicadeza do nosso Líder Renan Calheiros, um caso de tortura ocorrido no meu Estado, em que um inocente acusado de ter roubado um motor de popa foi torturado e morto. Oito meses depois se constatou que ele era inocente.

Na época da ditadura, a que me referi, os torturados pertenciam a classe média e eram presos políticos que lutavam contra o regime opressor.

Mas, quando falo em democracia, cabe a pergunta: o aparelho policial parou de torturar?

Esse fato, que é corriqueiro, ganhou notoriedade porque foi manchete nos jornais e chegou às minhas mãos. Pergunto-me: o que deve estar acontecendo nas cadeias públicas? Será esta a democracia que vivemos, onde ainda existe espaço para a tortura, uma tortura que é capaz de matar um ser humano, para depois se constatar, oito meses depois, que ele era inocente?!

Srs. Senadores, sinto um desejo muito grande de, ao mesmo tempo de estar aqui, desta tribuna, fazendo essa denúncia, tendo poderes para fazê-lo, estar caminhando pelas ruas, no meio do nosso povo, de microfone em punho e talvez fazendo denúncias, a cada passo, a cada observação que me venha sendo trazida. Entendo que nós do Senado temos a obrigação de traduzir as palavras do meu povo, do nosso povo.

Sr. Presidente desta sessão, como se referia o nobre Senador Eduardo Suplicy, estamos aqui em um espaço arquitetônico tão maravilhoso, perfeito, que faz com que as pessoas lá fora, que só o conhecem de visita, imaginem - e há até um dito popular que já se estende por aí - que o Senado é o céu. Olhando esse espaço, podemos imaginar que sim, sem imaginar o que passa nos corações e no pensamento dos Senadores, nas Comissões, no plenário. Considero que hoje, sexta-feira, é um dia em que podemos falar com mais tranqüilidade, e, de uma certa forma, dar asas não à imaginação, mas ao bater do coração muito mais do que a cabeça possa nos ditar. E é isso que estou fazendo hoje.

Nobre Senador Pedro Simon, concedo o espaço para ouvi-lo. V. Exª sabe, e vou dizer isso aqui sem ofensa a nenhum outro Senador, que, já de há muito tempo, tem sido o meu mestre e meu modelo.

O Sr. Pedro Simon (PMDB - RS) - Fico emocionado com o pronunciamento de V. Exª. Devemos dar graças a Deus quando um político de longa tradição, de longa história, de longa biografia como V. Exª, ainda consegue levantar-se de manhã, olhar o sol, olhar para os lados e ver a vida como ela é. Lamentavelmente, muitas vezes, nós, os políticos, terminamos nos embretando pelos problemas que achamos que são nossos, que são importantes, mas que dizem respeito a nossa paróquia, a nossas questões, e nos esquecemos de olhar para frente, nos esquecemos de olhar para o horizonte, esquecemos de olhar para aquilo a que todos realmente têm direito. Sinto uma mágoa muito grande em V. Exª e ela é profunda. Ontem a ONU comemorou o Dia Internacional de Apoio às Vítimas de Tortura e a Anistia Internacional diz que a tortura e a violência continuam. V. Exª lembra muito bem que, na época da ditadura, se torturavam os que lutavam para derrubar a ditadura, os homens da classe média e até da classe alta, os políticos que contestavam a ditadura e, se dependesse deles, derrubavam-na. Hoje a tortura é praticada em pobres, em miseráveis, em gente humilde, em pessoas que a polícia desconfia que praticaram um determinado delito. Há muitas pessoas na sociedade que consideram isso justo. Conheço muito policial que diz que ladrão só confessa apanhando. Certa vez, fui a uma delegacia com um amigo cuja casa tinha sido assaltada para registrar ocorrência. Ele tinha desconfiança de quem tinha praticado o crime. E o Delegado disse: “Pode ficar tranqüilo. Vamos tomar providências”. No entanto, quando perguntado, não soube explicar o que iria fazer. Então, o proprietário, sentindo o problema, agradeceu à polícia e disse que iria tentar falar com a pessoa. Essa é uma realidade. V. Exª analisa que a vida tem que mudar. Lembro-me dos seus pronunciamentos, que são fantásticos, mas lamentavelmente, nesta Casa, V. Exª tem que cumprir o Regimento Interno e ficar parada na tribuna. É emocionante assistir aos seus pronunciamentos nas manifestações do PMDB, pois V. Exª desce da tribuna, caminha no meio do povo, debate, fala com cada um, responde, discute, analisa. V. Exª é uma política que tem sentimento popular, tem alma popular. V. Exª ascendeu, foi primeira-dama, é Senadora da República, realizou uma infinidade de obras, mas conseguiu manter, no seu coração, a simplicidade, a singeleza, a pureza. V. Exª consegue, ainda, sentir-se abatida com a pobreza, com a pessoa que passa fome, que está injustiçada. Infelizmente, nós falamos em tese: “Temos que resolver o problema da fome. Temos que resolver o problema da miséria”. Falamos isso, mas, de certa forma, pela brutalidade da vida, por nos atirarmos em situações que consideramos importantes. Não se pára, como V. Exª parou, para sentir, para ver as situações, para tomar o café da manhã e lembrar que há pessoas que não estão tomando o café da manhã, que tem gente passando fome, que tem gente que não tem direito a um emprego, que tem gente que praticamente não está vivendo, está vegetando. Que beleza V. Exª conservar isso! Como seria bom se o Presidente Lula, que até ontem viveu isso tudo, não terminasse no meio dos elogios, dos aplausos: “é Bush aqui, é o Papa ali, etc”. Daqui a pouco Sua Excelência vai pensar que é um grande estadista, já vai se considerar um enviado de Deus e vai se esquecer de que a sua qualidade, o seu mérito é a sua origem; é de onde veio, a caminhada que fez. Se o Presidente Lula caminhar, mantendo, como manteve até o dia da posse, fidelidade às suas origens, o povo estará ao seu lado, torcendo para que acerte. Mas Sua Excelência precisa conservar, precisa manter a pureza do seu coração, apesar dos dramas, das dificuldades, apesar da infinidade de angústias por que passamos. Nobre Senadora, V. Exª é uma mulher bonita, moça, a quem eu não daria mais que 25 anos; mas V. Exª, que tem uma longa vida política, conserva ainda hoje a pureza, o sentimento, a singeleza do tempo em que começou. Tenho inveja e admiro profundamente a grandeza de V. Exª. Muito obrigado.

A SRª IRIS DE ARAÚJO (PMDB - GO) - Agradeço emocionada, nobre Senador, as suas palavras, porque elas me servem ainda mais de incentivo.

Concedo um aparte ao nobre Senador João Batista Motta.

O Sr. João Batista Motta (PPS - ES) - Senadora Iris, a cada dia que passa, V. Exª nos surpreende. A sensibilidade que V. Exª demonstra no trato da causa social é realmente indescritível. Quero acrescentar às suas palavras e às do Senador Pedro Simon que, além da tortura a que V. Exª se refere, há outras que nos preocupam muito: a tortura do cidadão que não consegue um emprego para levar alimento aos seus filhos; uma outra muito grande, que aflige o nosso País, é imaginar que milhões e milhões de brasileiros têm de sobreviver com um salário de R$240,00. Não há tortura maior, não pode haver tortura mais terrível do que submeter um cidadão a conviver com sua família percebendo apenas R$240,00 de salário. Digo mais a V. Exª: o nosso País tem evoluído muito. Tivemos torturas políticas, como bem mencionou V. Exª e o Senador Pedro Simon. Existem também as torturas de policiais sobre incautos cidadãos brasileiros. Há também bandidos que torturam policiais, mas só conseguiremos combater esses atos praticando a democracia política. O Brasil, hoje, pode se considerar um país feliz, porque não passa mais pela cabeça de ninguém a tortura política. Estamos vivendo, politicamente, um momento muito feliz, em que a democracia está exercendo um papel importante. Automaticamente, havendo autoridades democratas, é claro que esse exemplo será passado para os policiais e cidadãos comuns, a fim de que possamos, em um futuro próximo, conviver com a democracia que V. Exª tanto almeja. Quero acrescentar mais: é evidente que não podemos perder o compasso daquilo que está sendo implantado neste País. Para que possamos auferir resultados e êxitos com relação a tudo isso, devemos dar uma dose maior de inteligência aos nossos atos, às determinações governamentais. Temos que partir do princípio de que não é apenas com policiais nas ruas, não é apenas com viaturas novas que iremos combater a criminalidade. O nosso problema mais grave é a distribuição de renda. Não podemos deixar os milhões e milhões de brasileiros vivendo na marginalidade como vivem hoje. Um cidadão, com a sua família - que se encontra desempregado há dois anos -, em determinado momento, recebe a proposta de vender droga na porta da escola. Para não deixar o seu filho passar fome, ele acaba aceitando a proposta. No mundo do crime, ele vai perceber que é mais fácil ganhar dinheiro. Depois, ele começa a defender o seu ponto; passa, então, a querer dividir espaço com outros criminosos, vendedores de drogas, e entra na criminalidade de uma vez. É preso e acaba deixando a mulher dentro de casa, e os filhos, passando fome, em situação pior do que quando estava desempregado. As nossas autoridades têm que analisar esse ponto de vista. Na proposta de reforma tributária que deveremos receber em poucos dias nesta Casa, temos que apelar para o Ministro Palocci, devemos emendar aquela proposta e fazer com que os brasileiros possam trabalhar; até aqueles que não conseguem emprego, que possam ter espaço para produzir feijão, arroz, para fabricar camisas, calças, e comercializá-los na feira mais próxima da sua casa, sem que o rapa ou o fiscal da prefeitura, do Estado, esteja no seu encalço. Na Inglaterra, gênero alimentício não é tributado, assim como vestuário de criança. Um governo popular, como o do Presidente Lula, tinha que contemplar, na nossa reforma tributária, a desoneração de alimentos. Não podemos admitir que este País pague imposto sobre alimentos - carne, feijão e arroz -, quando o rico empresário americano consome a nossa carne, o nosso camarão e a nossa soja sem pagar um centavo de tributo. Repito: na Inglaterra, não se paga tributo sobre alimentos, e era isso o que desejávamos que estivesse contemplado na reforma tributária. Faço um apelo às nossas autoridades para que elas se sensibilizem nesse sentido. Que a criminalidade, a tortura e a violência tenham um fim ou, pelo menos, sejam minimizadas, em grande parte por meio de medidas como essa a que estou me referindo. O Senador Pedro Simon, tenho convicção, pensa como nós. V.Exª é esposa de um cidadão que foi um grande governador neste País, um grande político e que sofreu também na época da ditadura. Conhecemos o passado de V. Exª e do seu esposo, o ex-Governador Iris Rezende e ex-Senador desta Casa. Queremos render uma homenagem a V. Exª, ao seu esposo e ao Senador Pedro Simon, um Senador tão brilhante desta Casa. Vamos cerrar fileira no sentido de que isso tudo termine e que comecemos uma nova fase neste País.

A SRª IRIS DE ARAÚJO (PMDB - GO) - Agradeço ao nobre Senador pela palavras e gostaria de aproveitá-las, secundadas pelas observações do mestre e Senador Pedro Simon, para pedir que, no momento de votarmos o projeto de reformas do Governo, tenhamos em mente objetivos acima dos interesses particulares e regionais. No momento de analisarmos cada medida, peçamos àquele que é o Senhor de todo o universo e de todas as ações, peçamos a Deus que nos abençoe, guarde e inspire para que, depois dessa votação, o Brasil possa crescer e essa democracia a que me referi realmente aconteça.

Era o que tinha a dizer. Muito obrigada.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 28/06/2003 - Página 16561