Discurso durante a 102ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Transcrição do editorial do Jornal Opção, dos dias 17 a 23 de agosto do corrente, sob o título "Caroneiros da história e parasitas do erário".

Autor
Demóstenes Torres (PFL - Partido da Frente Liberal/GO)
Nome completo: Demóstenes Lazaro Xavier Torres
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
DIREITOS HUMANOS.:
  • Transcrição do editorial do Jornal Opção, dos dias 17 a 23 de agosto do corrente, sob o título "Caroneiros da história e parasitas do erário".
Publicação
Publicação no DSF de 22/08/2003 - Página 24789
Assunto
Outros > DIREITOS HUMANOS.
Indexação
  • SOLICITAÇÃO, TRANSCRIÇÃO, ANAIS DO SENADO, ARTIGO DE IMPRENSA, JORNAL, OPÇÃO, DENUNCIA, CRIAÇÃO, INDUSTRIA, ANISTIA, ESTADO DE GOIAS (GO), AUSENCIA, CRITERIOS, ETICA, UTILIZAÇÃO, RECURSOS FINANCEIROS, TESOURO NACIONAL, PAGAMENTO, INDENIZAÇÃO, PENSÃO PREVIDENCIARIA, PRESO POLITICO, PARTICIPAÇÃO, GUERRILHA, PERIODO, DITADURA, REGIME MILITAR, VITIMA, TORTURA, PERSEGUIÇÃO, NATUREZA POLITICA, PARENTE, PESSOAS, DESAPARECIMENTO, MORTE.
  • CRITICA, VALORIZAÇÃO, FALSIDADE, ATO, BRAVURA, PESSOAS, RECEBIMENTO, BENEFICIO, COMPARAÇÃO, DIVERSIDADE, PERSONAGEM ILUSTRE, LITERATURA BRASILEIRA.

O SR. DEMÓSTENES TORRES (PFL - GO. Sem apanhamento taquigráfico.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, solicito que considere como lido, para que conste dos Anais do Senado Federal, o editorial do jornal Opção, edição de 17 a 23/08/2003, sob o título “Caroneiros da história e parasitas do erário”, texto anexo.

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DOCUMENTO A QUE SE REFERE O SR. SENADOR DEMÓSTENES TORRES EM SEU PRONUNCIAMENTO.

(Inserido nos termos do art. 210 do Regimento Interno.)

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Caroneiros da história e parasitas do erário  

O Estado de Goiás está às voltas com a indústria da anistia -- 316 “perseguidos políticos” pretendem dividir um botim de 6,2 milhões de reais por ano, muitos deles fingindo-se heróis de uma luta que não travaram 
 
Filho do medo e do silêncio, Macunaíma, na expressão de seu criador, o paulista Mário de Andrade, é o “herói de nossa gente”. Mas trata-se de um herói diferente dos heróis épicos. Macunaíma é o herói “sem nenhum caráter”, o anti-herói. Libidinoso e irresponsável, ele é o avesso de Peri, o índio cavalheiro criado por José de Alencar. Enquanto Peri encarna o ideal da natureza humana, mantendo-se sempre fiel a elevados princípios morais, Macunaíma é um ser plástico, moldado pelas circunstâncias. Ao contrário do Brasil do romance O Guarani, de José de Alencar, herdeiro dos ideais da civilização ocidental, o Brasil de Macunaíma, a rapsódia de Mário de Andrade, não herda a tradição do Velho Mundo, daí a inexistência de caráter do povo, ainda por ser construído. Em outras palavras, a identidade brasileira encarnada por Macunaíma é uma obra aberta.

É possível que Mário de Andrade estivesse certo ao fazer de um anti-herói o herói possível do Brasil. No imaginário brasileiro, parece não haver lugar para o culto de grandes figuras históricas, capazes de encarnar as aspirações do povo. Os personagens que habitam o imaginário da nação, tanto na literatura escrita quanto na literatura oral, costumam ser mandriões consumados, sobrevivendo de pequenos golpes. Covardia e esperteza são suas armas contra os revezes do mundo. Não arrostam os perigos, como os verdadeiros heróis -- contornam-nos, de preferência ludibriando os que estão mais próximos. Herdeiros diretos ou indiretos de Pedro Malasartes, o “Macunaíma” da Península Ibérica medieval, os anti-heróis do povo são engraçadamente vingativos -- é com artimanha que expõem os ricos e poderosos ao ridículo. O astucioso João Grilo, protagonista do Auto da Compadecida, do paraibano Ariano Suassuna, é um grande exemplo do caráter nada heróico da cultura brasileira.

Nos clássicos da literatura brasileira também não há lugar para heroísmo. Na obra de Machado de Assis, paradigma da literatura nacional, não existem heróis. Brás Cubas, uma das magistrais criações machadianas, é composto de indecisão e malogro, numa carreira descendente. As Memórias Póstumas de Brás Cubas -- dedicadas ao verme que primeiro roeu as frias carnes do defunto-autor -- são uma saga de sucessivas derrotas. Não a derrota provisória do herói, destinada a engrandecer sua vitória final, mas as frustrações cotidianas, capazes de esmorecê-lo para qualquer futuro. Mesmo quando a literatura brasileira cultiva o gênero épico, ela não o faz à luz da história, mas na contraluz da crítica. É o caso de Euclides da Cunha, com o mítico Conselheiro que lhe possibilitou Os Sertões, e também Guimarães Rosa, com o jagunço Riobaldo do romance Grande Sertão: Veredas.

Novos Heróis -- Essa tradição picaresca da cultura brasileira talvez seja responsável por uma nova safra de anti-heróis -- os militantes da resistência armada ao regime militar implantado em 1964. Apesar de militarmente derrotados, os militantes da luta armada são, hoje, ideologicamente vitoriosos: alguns pelo martírio; outros, pela sobrevivência. Muitos mártires ainda estão desaparecidos e suas respectivas famílias sequer puderam dar-lhes enterro decente. Muitos sobreviventes refizeram suas vidas e hoje ocupam cargos públicos de relevância. Em comum, sobreviventes e mártires têm a história do seu lado. Enquanto os protagonistas da repressão política permanecem no limbo, os militantes da resistência ao regime ocupam o proscênio da história. Aos poucos foram sendo transformados em heróis nacionais, merecendo biografias e filmes, como o camponês Gregório Bezerra, o capitão Carlos Lamarca e, antes de todos eles, como espécie de patrono da causa, a figura lendária de Luiz Carlos Prestes.

Na esteira de Zumbi dos Palmares e Antônio Conselheiro, a crítica sistemática ao legado do regime militar vai instaurando uma nova história do Brasil. Nessa história revisionista não há lugar para os feitos da história oficial, mas tão-somente para o culto às derrotas das lutas populares. Os novos heróis da cultura brasileira não são aqueles que bem ou mal construíram o Brasil de hoje, mas os que foram impedidos de construir o eterno país do futuro. O perigo desse heroísmo às avessas -- que não celebra o que foi mas o que deveria ter sido -- pode ser o desprezo da nação por si mesma. Se a história do país é reduzida a um desfile de cortes decadentes, o que é efetivamente o Brasil de hoje, na condição de fruto dessa trajetória de decaídos? Se uma árvore má não pode dar bons frutos, o passado condena o presente que, por sua vez, condena o futuro -- o que invalida o próprio culto aos heróis do avesso.

Toda história que se preza deve ser celebração e crítica, uma mitigando os exageros da outra. Todavia, o Brasil tem-se especializado em cultivar apenas uma dessas vertentes de cada vez. Se no passado não havia lugar para Zumbi dos Palmares junto à Princesa Isabel, hoje não há lugar para Dom Pedro II ao lado de Antônio Conselheiro. O regime militar instaurado no país entre 1964 e 1984 é uma das razões desse revisionismo histórico, que, no afã de corrigir as falsidades de um passado ufanista, acaba por instaurar um presente falsamente crítico. É o que tem ocorrido com a memória das pessoas torturadas e mortas pelo regime militar. Possíveis mártires da liberdade, essas pessoas estão sendo conspurcadas pelos vendilhões da história. À sombra da luta contra o regime, instaurou-se a indústria da anistia. Em todo o país, indenizações imorais vêm sendo concedidas a supostos perseguidos pelo regime militar. Criou-se uma verdadeira indústria da anistia, premiando, indiscriminadamente, com recursos públicos, indivíduos que nunca sofreram perseguição do regime militar e, se sofreram, elas não deixaram quaisquer seqüelas que fossem passíveis de indenização.

Indústria da Anistia -- Goiás, a exemplo de outros Estados, está às voltas com a indústria da anistia. Há 316 “perseguidos políticos” esperando benesses do Estado. Eles pretendem dividir um botim de 6,2 milhões de reais por ano em pensões, pagas mensalmente, mais 2,8 milhões de reais em 105 indenizações de parcela única. Entre esses caroneiros da história, há contumazes parasitas do erário. Empresários e políticos bem-sucedidos também se encontram entre os beneficiários do trem da anistia. Muitos deles, ao invés de receber pensões e indenização, deveriam agradecer o que o regime militar fez por eles -- sem a aparente perseguição de que foram vítimas, jamais teriam conquistado o sucesso profissional e político. Há quem ficou rico à custa desse falso passado. Inclusive, há jornalistas que não se pejam de escrever artigos em defesa da indústria da anistia sem contar a seus leitores que eles próprios serão beneficiados com mais uma polpuda pensão -- de 6 mil reais por mês.

Prevista no artigo 8º do Ato das Disposições Transitórias da Constituição Federal de 1988, regulamentado pela Lei nº 10.559, de 13 de novembro de 2002, a anistia para perseguidos políticos é uma tentativa de se fazer justiça através da futurologia. A legislação prevê uma reparação econômica que poderá ser concedida em prestação única correspondente a 30 salários mínimos por ano de perseguição política até o limite de 100 mil reais. Também prevê uma pensão mensal correspondente ao posto, cargo, graduação ou emprego que o anistiado ocuparia se estivesse na ativa. De acordo com a lei, as indenizações ou pensões só devem ser pagas para pessoas que foram impedidas de exercer atividades econômicas por motivação exclusivamente política de 18 de setembro de 1946 até 5 de outubro de 1988. Até 31 de julho último, a Comissão de Anistia instalada pelo Ministério da Justiça em 28 de agosto de 2001, por meio da Medida Provisória n.º 2.151, já havia recebido 26 mil pedidos de indenização.

Em Goiás, os trabalhos da Comissão de Anistia instalada pelo governador Marconi Perillo foram encerrados em 30 de junho último. Para o jornalista Jávier Godinho, em artigo publicado no Diário da Manhã de segunda-feira, 11, o altíssimo número de 316 pedidos de pensões e indenizações no Estado é um “número dos mais razoáveis”. Segundo o articulista, “foi Goiás a unidade federativa mais golpeada pelo regime autoritário, a única submetida a intervenção federal, com deposição do governador”. Como suposta prova do que diz, o jornalista considera que “só o IPM de 1964, primeiro ano da ditadura, incriminou no Estado, em atividades subversivas, 147 pessoas”. Ora, se 1964 pode ser mesmo considerado o “primeiro ano da ditadura”, então o primeiro nome da lista de beneficiados com pensão -- o ex-governador Mauro Borges -- deve imediatamente devolver a sua ao Estado, indenizando de seu próprio bolso os demais perseguidos políticos. Pois Mauro Borges apoiou o golpe militar de 1964, a exemplo da maioria da sociedade brasileira, que saiu às ruas pedindo o fim do governo João Goulart.

Entretanto, no afã de justificar o injustificável, o articulista não apenas antecipa uma ditadura que só começaria para valer no final de 1968, com a edição do AI-5, como também transforma o Estado de Goiás na “unidade federativa mais golpeada pelo Estado autoritário”. O livro Brasil: Nunca Mais, que resume os 12 volumes do projeto de mesmo nome, publicado em 1985, mostra que o Estado de Goiás foi insignificante no combate ao regime militar, apesar da cassação do governador Mauro Borges e da Guerrilha do Araguaia (feita por “paulistas”). Protagonizada sobretudo por jovens de classe média, a resistência ao regime militar teve como palco os principais centros urbanos do país, como São Paulo e Rio de Janeiro, não Goiás, um Estado bastante rural à época. Para se ter uma idéia da insignificância do Estado no contexto do combate ao regime, o livro Brasil: Nunca Mais apresenta uma meticulosa tabela dos processos movidos contra organizações de esquerda de 1964 a 1979, ano a ano. Nela, Goiás aparece somente cinco vezes, enquanto São Paulo, Rio de Janeiro e os Estados nordestinos aparecem dezenas de vezes.

Benesses Públicas -- Em Estados periféricos como Goiás, até os comunistas não passavam de intelectuais dóceis, quase sempre incapazes de apresentar qualquer perigo para o regime. Amparados por jornais e universidades mais independentes, os intelectuais dos grandes centros urbanos que aderiam ao comunismo conseguiam ser ideologicamente mais consistentes, incutindo medo no regime estabelecido. Com uma massa de operários urbanos para instigar, o comunista de São Paulo poderia ser o paradigma do “comedor de criancinhas”. Mas, em Goiás, onde a única saída para as classes médias era o emprego público, os intelectuais não passavam de agregados do poder e não havia espaço para radicalismos ideológicos: até o comunista contentava-se em ser um comedor de quitute nos saraus das elites. Muitas perseguições políticas que ocorreram no Estado não tiveram origem na mudança de regime no país, mas em rivalidades antigas dos grupos políticos locais.

Como se vê, distribuir pensões e indenizações à mancheia para as pessoas perseguidas pelo regime militar é uma medida que depõe contra o que resta de sério e louvável na tresloucada tentativa de mudar um governo mediante o uso das armas. É como se o heroísmo de ontem tivesse um preço vil. Caso queiram preservar a própria história, conservando a possível nobresa do combate ao regime, os perseguidos políticos não devem transformar seu gesto nobre de ontem numa moeda de troca hoje. Como o Graciliano Ramos das Memórias do Cárcere, devem parar de culpar terceiros pelos seus supostos fracassos, a ponto de querer que paguem até a conta de seu sucesso. Enquanto muitos de seus colegas de geração culparam a censura de Getúlio Vargas pelo fracasso de sua literatura, Graciliano ensinava que a vida é feita de impedimento e o indivíduo tem de aprender a deitar-se em camas estreitas e sentar-se em cadeiras duras, porque, entre as opressões da polícia e da gramática, sempre é possível se mexer.

Eis um exemplo de herói que faltou na literatura, mas, volta e meia, surge na realidade. Infelizmente, muitos dos supostos perseguidos políticos de Goiás estão a imensa distância da grandeza intelectual e moral de Graciliano Ramos. Aproximam-se mais do personagem José Dias, do romance Dom Casmurro, de Machado de Assis. Fingindo-se um intelectual que não era e um médico que jamais fora, José Dias conseguiu tornar-se o eterno dependente da família de Bentinho, vivendo de favor na casa de Dona Glória, sua mãe. Muitos “perseguidos políticos”, ao pedir pensões e indenizações, tornam-se eternos agregados dos cofres públicos. Que a história -- onde querem pegar carona -- registre essa vilania.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 22/08/2003 - Página 24789